Caleidoscópica
Vida
longa para Amy Winehouse
por
Dulce Quental
30/07/08
A pulsão destruidora dizia Freud, é a condição primordial de toda sublimação, uma vez que a característica do homem - se é que esta existe – não é senão a aliança, no próprio homem da mais poderosa barbárie e do grau mais elevado de civilização, uma espécie de passagem da natureza à cultura.
Não sei exatamente aonde pesquei esse pensamento, se no novo
livro da Roudinesco, "A parte obscura de nós mesmos",
ou se em alguma das conferências do ciclo, "Vida Vicio
Virtude"; mas sei que as palavras de Freud vieram bem a
calhar sob o efeito do coquetel molotov provocado pela audição
de "Frank", de Amy Winehouse.
Eu sei, eu sei, estou atrasada pelo menos cinco anos, o primeiro
CD da inglesinha junkie saiu em 2003 e estamos já em meados
de 2008, quando ela já lançou o segundo, "Back to Black";
de volta pro negro, ou de volta para a black music, para o lado
escuro da vida, para a escuridão, eu me perguntava. Não escutei
ainda "Back to Black" como escutei "Frank".
Passei na Travessa e numa dessas torres de escuta dei uma zapiada
rápida, já que me recuso a baixar musica pela Internet. Mas
de cara, já deu pra sentir que "Back do Black" não
chega aos pés de "Frank". Mesmo pra quem não conhece
a história da cantora, dá pra perceber que alguma coisa ficou
no caminho. Aonde é que teria ido parar aquela garota com cara
de bebê, recém saída da adolescência, com uma pureza de criança
levada?
Faz tempo que não ouço alguma coisa tão boa como Amy Winehouse
em seu primeiro CD. Por que gostei tanto? Porque é perfeito.
O domínio técnico da voz a serviço da emoção mais pura. Uma
puta personalidade nas interpretações e uma sinceridade que
salta aos ouvidos, deixando todo o resto das cantoras desse
século no chinelo. Amy tem a viceralidade que só encontramos
em Billie Holiday, Karen Dalton e Piaf. É um gênio da canção.
Isso pra não falar das musicas; todas, composições de sua autoria,
destilando inteligência e ironia em crônicas amorosas em forma
de canção. Como em "Stronguer Than Me"; "You
sent me flying", 'I head love is blind"; "There
is no greated love", ou Take the Box”, minhas prediletas,
junto de "Cherry", a irresistível canção que fala
do amor por um violão.
Por que as letras são irresistíveis? Porque não tem mentira.
Amy não é uma boa garota. Não está a serviço do desejo do outro.
Tem coragem pra falar e pra viver o que sente. Isso pode parecer
fácil, mas é difícil pra caramba. Uma garota chegar e dizer:
"Eu não pude resistir a ele. Seus olhos pareciam com os
seus. Estava escuro e eu estava deitada. Eu nem me lembro do
nome dele. Mas ele não significou nada pra mim. Eu bebi demais
e precisava do seu toque. Você não estava lá. Mas eu não deixei
ele segurar a minha mão. Não foi infidelidade. Você estava na
minha cabeça. Eu escutei, o amor é cego." Não me lembro
de ter visto uma garota dizer isso no ultimo século. Esse personagem
do traidor sempre foi desempenhado pelo homem, não pela mulher.
Coube sempre ao homem escolher, seguir o desejo irresistível,
porque nos foi ensinado que assim era a sua natureza.
Amy nos diz que não. A natureza destruidora é também uma face
humana da mulher. Em "Take The Box", fala da sua relação
com a droga, guardada numa caixa, onde ela pede que o fetiche
do seu objeto amoroso seja guardado junto com ela: "O sutiã
do Moschino que você me deu no ultimo natal, coloque na caixa.
Frank está lá e eu não ligo. Bota na caixa".
A passagem de Amy Winehouse pelo mundo da musica tem sido brutal. Sua entrega, no entanto, é gentil e generosa para com um mundo brutalizado como o nosso. Amy parece estar pagando um preço muito alto. Em apenas cinco anos envelheceu vinte. Me lebrou Piaf que morreu aos quarenta e oito anos parecendo uma velha de setenta. O que eu me pergunto é: Como uma artista que consegue sublimar dentro de si tamanha escuridão, a ponto de produzir uma arte tão grandiosa, volta pro escuro com tanta rapidez? Amy não é o primeiro caso na história, dos grandes talentos do jazz, do cinema ou da literatura, a charfundar na lama depois de chegar ao topo. Parece haver uma relação de forças muito frágil dentro de personalidades como a dela; alguma coisa que brilha forte, mas que não é capaz de se sustentar por muito tempo.
Eu torço pra que Amy encontre o caminho de volta e saia de novo
da escuridão. Essa, ela parece conhecer desde pequena. Não é
novidade nenhuma. Se já saiu uma vez e nos brindou com "Frank";
não há nada que nos garanta que não estará de volta no futuro
com um disco branco; branco e iluminado, como a canção "There
is no greated Love"; uma das mais belas canções de "Frank".
Essa sim, seria a grande vingança de Amy. Dar a volta por cima
e passar da escuridão e do caos em que vive hoje, ao grau mais
elevado da sua arte e do seu talento.Vida longa para Amy Winehouse!
Dulce
Quental é cantora e letrista.
Email: caleidos@uninet.com.br
Blog: http://caleidoscopicas.blig.ig.com.br
Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com
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