Caleisdoscópicas
Pra
Falar de Cinema
por
Dulce Quental
17/06/05
Descobri. Faço canções pra falar de cinema. Quase não ouço mais
música. Temo querer dizer que não gosto mais de música. "Por
que será?", arrisco a me perguntar. E a resposta me transporta
numa viagem pelo tempo. Acho que agora entendo o que aconteceu.
Quanto mais envelheço, mais preciso de silêncio. Um silêncio
que a música de hoje parece não guardar.
O mesmo não acontece em relação às imagens. Mesmo com todo bombardeio
da propaganda e de todo tipo de poluição visual, a minha tolerância
parece ser infinitamente maior. Acho que desenvolvi um mecanismo
de autodefesa anti- Spam, deletando quase que automaticamente
da minha percepção, o que não interessa. De forma que não chego
nem a ver o que não quero.
Por isso, tendo a estar mais receptiva para a luz que me chega
através da retina. Seja numa caminhada pela lagoa, seja numa
sala de cinema. A pureza de uma imagem me toca de cara. É epidérmico.
Já o som, só se houver muito silêncio. Mas não um silêncio que
signifique empobrecimento. E sim um silêncio conceitual. Um
trabalho entre sons.
É engraçado, não sei se já aconteceu com vocês, mas comigo acontece. De vez em quando. Estar na rua, numa loja, e de repente começar a prestar a atenção numa música, na voz de quem está cantando, numa frase pela metade. Ouvido seletivo, disse o meu analista. Mesmo fazendo várias coisas ao mesmo tempo somos capazes de prestar a atenção naquilo que nos interessa, se de fato aquilo tem algo a nos dizer. Isso quer dizer que para escutar algo relevante não precisamos estar totalmente atentos. O que significa: no meio de tantos sons, ruídos e significados, escutamos somente aquilo que nos toca, seja porque compreendemos aquela língua, seja porque não compreendemos mas ela toca o nosso desejo, ainda desconhecido pra nós; o silencio que ainda não tem voz.
Talvez o desafio para nós músicos seja o de conseguir colocar dentro dessa massa sonora que se tornou o mundo contemporâneo, espaços vazios, ilhas de interrogações ou até mesmo, negação, "esgarçando o tecido das grandes corporações", como bem lembrou o Jabor, no seu "sexo, amor e poesia". Talvez seja essa a nossa nova alegria.
O mesmo paralelo poderíamos fazer com o prazer visual. Mas talvez, e aí me arrisco a opinar num terreno que não é o meu, seja mais fácil produzir imagens com vazios que falem, do que música com silêncios falantes.
Falar de imagens e vazios é lembrar de Wim Wenders, de Godard, de Tarantino, de Paul Eluard. Como me lembro agora de outro Paul, Paul Desmond, com seus solos silenciosos, ou mesmo Chet Baker e seu trompete. E pra chegar mais perto, João Gilberto e o silêncio de Calcanhoto com sua música de poeta.
E aí chegamos no segredo da força das canções, que eu não escuto mais mas que de vez em quando me ponho a compor. Pra falar de imagens. Pra falar de cinema.
Dulce
Quental é cantora e letrista. Saiba mais sobre
a cantora no www.dulcequental.com
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