Caleisdoscópicas
Pensador
Independente
por
Dulce Quental
01/06/05
Quando você menos espera já tem um passado. É quando ele começa a ganhar mais importância que o presente que chega a hora de se preocupar. Você vai passar mais noites em claro do que agüentaria, o seu day after vai começar bem mais lento; você simplesmente não consegue cumprir a agenda do dia, envolvido que está com diálogos mais que sobrenaturais com personagens da sua estória.
Tudo começa quando alguém classifica você como pertencente a uma década. Você passa então a ser um legítimo representante do pensamento, ignorância e comportamento de uma geração. Simplesmente porque ousou escrever um livro, fazer uma canção ou encenar uma peça de teatro. É interessante perceber o quanto a nossa sociedade valoriza resultados. Fulano de tal está lançando um livro, um CD, apresentando um programa de televisão, encenando uma peça infantil; haja fôlego!!!
Nos dias de hoje, estamos cada vez mais produzindo para o mercado. Escrevemos para ser publicados, pintamos para expor, fazemos música para gravar discos. Isto é o mesmo que dizer: nossa arte existe como parte de uma engrenagem; somos uma das pontas da linha de montagem da indústria; existimos para criar produtos e não para viver um processo que nos enriquece e que pode ou não gerar produtos.
Na minha época, ou seria melhor dizer, na minha década, costumávamos experimentar as coisas. Não sabíamos cantar muito bem, mas cantávamos mesmo assim; não sabíamos harmonia muito bem, mas íamos tateando, até achar um acorde interessante; não achávamos que sabíamos escrever, mas fomos vencendo timidamente as nossas limitações, e procuramos escrever como falávamos. Isso tudo pra dizer que: não estávamos prontos, não éramos profissionais, e sabíamos disso. Não éramos tão geniais como a geração passada. Mas quem foi que disse que só se pode escrever, pintar ou compor se você for um gênio? Podíamos experimentar, podíamos errar. A crítica metia bronca, nós ficávamos chateados, mas não deixávamos de produzir por causa disso. Pelo menos alguns de nós. Sei que muitos pararam. Os que continuaram, tiveram que conviver com muitos rascunhos e muitas canções engavetadas.
Tenho visto muita gente talentosa ir para o buraco porque não faz sucesso; não aparece nas revistas, não toca no rádio, não consegue emplacar nenhum produto no mercado. Mas, também, observo pessoas que não estão na mídia, e no entanto, continuam a produzir, e são reconhecidas pelo seu trabalho. Reconhecimento: um conceito muito mais importante do que sucesso; resultado do trabalho de toda uma vida; geralmente, muito mais difícil de conseguir. Não premia você com carro último tipo, nem fins de semana paradisíacos; não faz de você um milionário; mas é bom quando chega. Tem gosto de vinho de safra superior, envelhecido em barris de carvalho.
Olhando pra trás, me sinto aliviada por não ter perdido as minhas referências. Hoje tudo é tão fake, tão profissional, tão asséptico. As obras de arte são como tomates produzidos artificialmente. Artistas aparecem prontos para serem consumidos como produtos, embalados em campanhas de marketing; aliás, mais importantes do que eles próprios. E os jovens são as maiores vítimas. Principalmente os de classe média e baixa.
É sintomático o fato do sistema apresentar seus produtos sem dizer ou mostrar como foram feitos. Por isso, o processo de criação, gestação, amadurecimento, nunca é mostrado, nunca é valorizado, porque ele é cheio de altos e baixos, cheio de falhas, típicas do aprendizado. E para o sistema, não existem primeiros passos. Seus ídolos de plástico nascem prontos, com prazo de validade já vencido.
Isso me lembra um filme que assisti recentemente chamado Histórias Proibidas, do diretor Toddy Solondz, autor do já aclamado, Felicidade. Através de duas histórias distintas, Solondz expõe a violência das relações interpessoais na sociedade americana. No segundo episódio, um rapaz, adolescente, prestes a fazer os exames que o permitiriam entrar na universidade, sonha em se tornar um astro da tv, uma celebridade; no entanto, se recusa a estudar e não tem nenhum interesse intelectual. Perguntado como pretende realizar o seu sonho, o jovem não consegue responder; ele não faz a menor idéia de que para se tornar alguém, precisa realizar alguma coisa; e que para isso, precisa investir, estudar, trabalhar. Ele quer ser famoso, simplesmente.
Assim como ele, grande parte da juventude de hoje sonha em obter sucesso da noite para o dia. Não podemos culpá-los. A mídia esta cheia de trampolins facilitando o acesso ao estrelato, que depois de conquistado, se auto-alimenta indiscriminadamente, gerando subprodutos de subprodutos sem fim. Pessoas objetos que vendem a sua intimidade como produtos, para o consumo de voyeurs de plantão.
O trabalho do artista se assemelha muito ao trabalho do artesão; trabalho feito de atenção e repetição, feito de experiência. Atrás
do "glamour", tão supervalorizado pela mídia, existe o trabalho, similar ao da natureza - a não linearidade e a descontinuidade da produção, feita mais de idas e vindas e contratempos, do que de continuidade - que constrói e destrói; e de vez em quando mostra a sua exuberância. Pensando nisso, me lembro do trabalho da formiguinha ao carregar uma folha maior que o seu tamanho. De quantas tentativas ela vai precisar para fazer chegar, ao seu destino, o alimento de que precisa. Somos como ela, precisamos de tempo. Mas isso é tudo que a indústria não pode nos dar. Ela não quer arriscar. Por isso, prefere investir em plástico em vez de seda pura. Sabe que tem sempre alguém disposto a pagar um preço mais barato.
Outro dia, fui assistir ao show de um grupo novo, aqui do Rio, chamado Bossacucanova.
Eu já ouvira falar neles como sendo um grupo que estaria reciclando a Bossa Nova,
com elementos eletrônicos. O grupo é formado pelo Marcio Menescal, filho do Roberto
Menescal, um craque da velha guarda da Bossa Nova, o DJ carioca Marcelinho DaLua,
já com bastante sucesso por aqui, Alexandre Moreira nos teclados e o próprio
Menescal, na sua clássica guitarra acústica. Sentamos, tomamos uma caipirinha,
casa lotada, o show ia começar. Uma velha amiga minha, cantora reconhecida no
meio, procurando lugar e não encontrando, sentou-se conosco. O show começou.
Na segunda música a moça
disse que ia embora. Eu disse: "fica um pouco mais, você ouviu tão pouco,
já sei: não gostou da cantora". "Não", ela respondeu, meio sem graça,
"não é isso,
eu até conheço ela, ela é gente boa". Fiquei pensando então, no que teria incomodado
a minha colega e acabei mergulhada em pensamentos que me levaram à constatação
de que nossos ouvidos e olhos, e por que não, toda a nossa sensibilidade está comprometida.
Estamos tão ávidos por resultados, fórmulas, sínteses prontas que deixamos de acreditar no descompromisso do prazer ocasional. Estamos sempre tão preocupados com acabamentos, que perdemos a possibilidade de exploração das tendências possíveis contidas nas experiências reais. Vamos a um show e queremos que ele nos seja útil no nosso trabalho, de continuação da linha evolutiva da MPB. Que besteira!!! Como podemos romper as fórmulas desgastadas e encontrar novas sonoridades e ritmos para a nossa música, se não conseguimos ver, nem escutar nada, com olhos e ouvidos livres? O inaugural, por ser novo, muitas vezes não contem em si todos os elementos da mudança, embora contenha na maior parte das vezes, a semente, o detalhe, e elementos que possibilitarão a transição para alguma espécie de síntese. Artistas quando experimentam, trabalham com o tempo. Ainda é um pouco de passado, com possibilidades de futuro, acontecendo ali. A nossa impaciência muitas vezes estraga tudo. Apressamos o processo para obter resultados que achamos que vão saciar a sede do mercado por produtos. E aí, nos ferramos.
Hoje, o consumidor tem um mundo pra escolher. Muitas vezes, no entanto, não escolhe. Prefere que alguém escolha por ele. O ser humano é altamente influenciável. Por isso, informação é tudo nos dias de hoje. Basta uma gotinha de informação no lugar certo, para colocar muitas interrogações onde antes só havia certezas.
Não acreditem no que falam os críticos, as propagandas de filmes, os cartazes
de rua. Cruze informações, tenha a sua própria bússola de navegação. Seja um
pensador independente. Não compre o DVD da moda, nem a roupa da butique do anuncio
da tv. Você não é o que aparenta. Você não tem como mostrar o que é numa imagem.
Você não é um produto. Se conhecer alguém, não pergunte o que ele ou ela faz,
não procure saber se tem ou não sucesso, não preste atenção no seu carro nem
na sua roupa. Veja se essa pessoa faz você se sentir bem, se você se diverte
com ela, se ela te faz rir. Principalmente, consuma arte e comida saudável. Caminhe
todos os dias, se possível. Exerça a lei da relatividade; o tempo passa mais
devagar quando nos movimentamos. E quanto mais devagar, mais dentro dele estaremos,
mais no presente estaremos. O passado vai te assustar menos. Até porque ele se
refaz a todo instante. Os personagens daquela foto congelada vão te encarar do
alto da eternidade. Pra eles, o tempo parou, mas você tem todo um jardim pra
semear e colher; mas dá trabalho.
Dulce
Quental é cantora e letrista. Em sua voz podem
ser ouvidas canções como Viver, Natureza Humana, Terra
de Gigantes, Caleidoscópio e Onde Mora
o Amor, entre muitas outras. Sua "caneta" já assinou
parcerias com Frejat (O Poeta Está Vivo, Pedra,
Flor e Espinho), Leoni (O Fim da Estrada)
e Cidade Negra (Cidade Partida). Dulce lançou Beleza Roubada, seu quarto álbum
solo, em 2004. Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com
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