Caleidoscópica
Toc! Toc! Toc! Pode Haver Ninguém Interessado!

por Dulce Quental
27/04/07


Há uma coisa boa e uma coisa ruim em se dar. A coisa boa é descobrir-se capaz de amar. A ruim é ainda precisar falar muito de si. Há que se perdoar e também agradecer o fato de saber-se inteira pra dizer: te amo, te odeio, até que a terra estremeça.

Deveríamos calar de vez essa voz auto-referente que insiste em tagarelar ou deixar pra trás todas as desculpas e assumir de vez que falamos pra ninguém? Que as máscaras caiam. Porque estamos falando apenas pra nós mesmos com a desculpa de estarmos preocupados com os outros.

A verdade é que nunca falamos tanto pra ninguém. A Internet está cheia de blogs, sites, portais onde todos os dias milhares de pessoas expõem a sua privacidade sem o menor pudor, na ilusão de que serão escutadas, reconhecidas e se transformarem, como que num passe de mágica, em pessoas públicas, especiais, célebres, saindo assim do anonimato das massas, da indiferenciação.

Seja nas paginas do Orkut, My Space ou no Youtube, a popularidade é medida em termos de números de adesões; quanto maior o número de "amigos" mais famosas e reconhecidas, as pessoas se sentem. Trampolim para a expressão do próprio narcisismo ou ausência total de auto-estima? O que essa falas, fechadas em si, tem a oferecer ao outro? São tão auto-referentes quanto impossíveis de interessar a alguém mais, além do próprio falante; quando não provocam o voyeurismo entranhado em cada um de nos.

Novas tecnologias para novas neuroses e novos desafios: O que fazer com a quantidade de lixo produzido pela Internet? O que fazer com a quantidade de spams amigos? Gente que escreve toda sorte de coisas e manda para você achando que é a coisa mais importante do mundo?

As pessoas perderam totalmente a noção do ridículo. O pior é que essa febre de blogs acabou por contaminar alguns eminentes jornalistas e cronistas de jornais de grande circulação, a ponto de eles perderem a noção de para quem estão escrevendo. Falam de si próprios em colunas semanais como se estivessem em blogs, contando detalhes de entrevistas, paqueras, passeios noturnos, preferências sexuais, como se fossem celebridades. Aliais, acredito que é exatamente o que eles se tornaram: celebridades escrevendo para tablóides que serão lidos por formadores de opinião que somos nós.

Mas nem sempre foi assim. E também não acontece com todo mundo. Há poucas e boas exceções. Gente que tem o que falar e para quem o assunto é o foco mais importante; além da forma, da fama e da cama. Esses, vale a pena escutar. É com esses que se aprende alguma coisa. Mas para isso é preciso passar uma certa temporada no inferno; até aprender a pensar com as próprias pernas; como, quem sabe, um Rimbaud; na busca de uma África possível; num último bastião de liberdade; junto ao anonimato ou no silencio da intimidade; pois é preciso alguma coisa mais do que um punhado de palavras digitadas aleatoriamente no computador; é preciso alguma coisa que está na ordem do simbólico; e que se chama linguagem; tempo; processo; história; cultura e arte.

Todo mundo pode escrever. Mas nem todo mundo deveria publicar o que escreve. Assim como os grandes escritores não publicam os rascunhos dos seus romances até que eles estejam prontos; não deveríamos publicar nossos pensamentos, até que eles estivessem maduros e se tornassem responsáveis para com os outros. Pensamos milhões de coisas todos os dias, a cada momento; mas não saímos por aí falando o que pensamos. Seria o caos. É o que se passa na Internet. Milhões de pessoas falando ao mesmo tempo num automatismo psíquico que nem o mais inventivo dos surrealistas poderia sonhar.

A Internet jogando tudo pro ar ao invadir o espaço da nossa intimidade, através da facilidade com que podemos nos comunicar, tornou-nos responsáveis pela nossa promiscuidade; ao mesmo tempo em que paradoxalmente nos mergulhou na mais completa solidão. Temos todos, hoje, a responsabilidade civil de quem produz pensamento e informação. Por isso temos que exercer mais do que nunca a autocrítica; vulgarmente chamada de "desconfiômetro".

Toc! Toc! Toc! Convém bater antes de entrar; parar no sinal antes de avançar; afinar a escuta depois de digitar. Antes de mandar e-mails; postar textos e fotos; criar blogs e links; favor olhar no retrovisor; ajustar o desconfiômetro; calibrar a autocrítica; e só assim teclar o enviar; pois no que tange ao público é melhor pensar antes de publicar; antes de mergulhar no ar; detalhes tão pequenos de nós dois; pode haver ninguém interessado.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: caleidos@uninet.com.br
Blog: http://caleidoscopicas.blig.ig.com.br

Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com


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