Caleidoscópica

O Ponto Final de Woody Allen

por Dulce Quental
Foto: Divulgação
23/02/06


Ela colocou o perfume imaginando se ele notaria o cheiro exótico da fragrância, levemente acentuado pela presença do gengibre. Era a sua colônia predileta, assim como da filha e do ex. Um segredo de família, cultivado através da intimidade dos anos, apesar das inevitáveis mudanças e separações.

- Você está linda mamãe, comentou a menina, antes que o vapor da fragrância se dissolvesse no ar.

Ela estava linda e adiantada. Faltava ainda meia hora para o encontro marcado. Pouco habituada a sair nos dias de semana, tinha feito um esforço hercúleo para aceitar o convite. Não queria parecer, aos olhos do rapaz, uma mulher complicada.

Para tanto, negociou com a filha, deu explicações ao ex, orientou a empregada e estava praticamente pronta quando o cavalheiro ligou cancelando o encontro. Por causa da chuva que ameaçava cair, porque ela havia dito que não estava bebendo, porque ele tinha que acordar cedo no dia seguinte, porque as sessões de cinema começam tarde, porque ele queria convidá-la para jantar, mas ela já tinha jantado, etc, etc, etc... enfim, ela estava sendo desconvidada. Ou melhor, quem sabe, um outro dia, amanhã ou sexta...

O que fazer? Ela tinha feito tudo certo. Exatamente como a amiga havia ensinado. O manual inteirinho. Arrumou o cabelo, fez as unhas, enfrentou o medo, o comodismo, a tensão pré-menstrual. Às 8h30 estava pronta e perfumada. Mas ele não.

"Acho que eu vou a cinema" - ela disse à filha, se sentindo meio boba depois de tamanha agitação - "quem sabe não pego a última sessão. O último Woody Allen está passando num cinema do Leblon."

No táxi, se lembrou da amiga de sempre. Pensou em ligar para ela, que morava há alguns quarteirões dali, mas já era tarde e faltavam apenas alguns minutos para a sessão começar. Então achou melhor não ligar. Tinha um milhão de pensamentos para elaborar.

Depois de encontrar um casal amigo, mergulhou na cadeira, desligou o celular - não antes sem ligar para a filha e se certificar de que ela não estava colocando fogo no apartamento - abriu bem os olhos, e esqueceu de que estava mais uma vez sozinha. Ela estava no cinema, a sala onde é permitido sonhar. E o filme já ia começar.

"Match Point não se parece em nada com um filme de Woody Allen. Poderia muito bem ser um Brian de Palma. Lembra enormemente O Talentoso Ripley. E é um filme extremamente belo. Perfeito em termos cinematográficos. Não se sente a presença de Bergman, como em outros dramas woody-allenianos como Interiores ou A Outra. Não: Match Point é um outro Woody Allen. Trágico. Amargo. Dá saudades do trapalhão romântico, do neurótico falante, do idealista de calças curtas", ela pensou, enquanto matutava o que teria acontecido com o velho Woody.

"Deve ser duro chegar a conclusão que a vida é uma questão de sorte. Se estamos de tal forma abandonados, boiando dentro de cenários de realidade, como personagens numa cena do acaso, o que fazer das nossas vidas? Libertar-nos das ilusões pessoais, que vêm da família, da educação, não seria essa a função da psicanálise", ela se indagava, procurando razões, além do poder das imagens em ação.

Encontrou mais que respostas tentando entender a desilusão do diretor. "Em Match Point", pensou, "Allen parece que tocou, de forma bem diferente, muitas das questões levantadas pelos seus outros filmes: se somos impotentes para mudar o que nos cerca, pois o que determina as nossas vidas é a sorte, e estamos entregues a um mundo psicopata e claustrofóbico, por que lutar? Para que e para quem seremos livres se perdermos as nossas ilusões? O que nos restará além da sala de projeção?"

O desencanto woody-alleniano calou fundo dentro dela. O universo das quadras de tênis e dos finais de semana "roliudianos" (Glauber escreveria assim?), era um mundo fechado e exclusivo, somente para quem nasceu em "berço de ouro"; um mundo que ela conheceu de perto, mas do qual não fazia mais parte.

"Escolhi conhecer o outro lado e não me arrependo", ela disse para si mesma, dando conta das escolhas que tinha feito. Estava ficando melancólica, quando se lembrou da alegria do amigo Cazuza. "O tempo não pára", ela pensou. Pode se repetir, principalmente para aqueles que "não mudam quando é lua cheia e vivem contando dinheiro". Para esses, é melhor pedir piedade. "Pois há um incêndio sobre a chuva rala". (Cazuza)

Uma chuva tímida caía, quando ela rompeu a calçada em direção a rua. Ameaçou abrir o guarda-chuva, mas parou, pensando: "se estava na chuva era para se molhar". Então seguiu caminhando, o tempo necessário para que o universo das imagens que acabara de ver, pouco a pouco, fosse se dissolvendo. Enquanto o filme estivesse presente, ela poderia adiar os próprios pensamentos.

Não por muito tempo. Quando o 157-Central/Leblon, que se aproximava a toda velocidade, diminuiu a marcha, ela fez o sinal, correndo em sua direção. O ônibus freou, o tempo necessário para que ela saltasse pra dentro dele, sem se estabacar. Foi a deixa. Um suspiro e mil interrogações se seguiram a partir daí: "Pra que lado a bolinha de tênis haveria de cair, se eu estivesse com você? Que lado da moeda você gostaria de ser se eu te desse chance de escolher? O que a vida poderia nos dar se o futuro fosse logo ali? Estamos mais para quem ou o que se formos nos render?", ela se torturava, procurando não pensar, pra não ter que decidir.

Cara ou coroa, dama ou valete, Coringa ou Batman, black or white, vermelho ou negro, Lennon ou McCartney, Jane or June, Clark or Garbo, Jerry ou Tom,
ping-pong ou boliche, bang-bang ou big-bang, King Kong ou Man Ray,
Honky Tonk Woman ou Wong kar-Wai?

"Ah! Sei lá", ela pensou. "É só uma crise de idade, uma tempestade de neve no verão. Logo, logo o velho Woody voltará a filmar como um trapalhão, com seu vagabundo chapliniano de estimação; espantando o coro dos infelizes. O mundo não é inglês. Graças a Deus. E graças também, um pouco, a norte-americanos como ele, que criam com paixão. Artigo tão em falta nos dias de hoje, e pelo qual o mundo se inspira para renascer. Quando vê e filma uma Mariel Hemingway, uma heroína inocente e charmosa. Onde está nossa Diante Keaton? Vamos fazer filmes de amor de velhinhos. Você querido Woody, será sempre um lorde dentro desse mundo sem cavalheirismo".

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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