Caleidoscópica
Se até o king-kong me entende por que os homens não?

por Dulce Quental
10/01/06


O rapaz me pegou pela cintura disparando pelo salão como um pião em cima do tabuleiro. Eu era a sua bailarina, ele, meu soldadinho de chumbo. Por uns minutos desmanchei nos seus braços, antes que os pensamentos de estimação tomassem as rédeas de sempre. Eu estava com medo. Apavorada para dizer a verdade. Fazia tempos que não me soltava. Eu era apenas uma mulher nos braços de um homem rodopiando ao som de uma velha canção do Chico. Foi quando pensei: "Como ficou difícil ser mulher depois de ser mãe. Acho que desaprendi quase tudo, menos a dançar, é claro, o que é quase tudo", pensei. Então por que não começar por aí?

Se pudéssemos ir devagar. Um passo de cada vez. Uma mão na cintura, um rebolado, um olhar de lado. Depois de uma sessão de cinema, um chope, um telefonema. Flores, e-mails, pequenas delicadezas. Para que então pudéssemos ter certeza de que não nos machucaríamos, que não diríamos verdades duras de que nos arrependeríamos. Mas quase sempre botamos tudo a perder. "Quase sempre", eu disse, "mas não dessa vez", pensei.

Se pudéssemos esperar que o tempo nos desse a chance de nos conhecermos melhor, quem sabe o que poderia acontecer ? Alguns amassos, sussurros no ouvido, uma mão boba debaixo da saia, antes que o sexo chegasse com a realidade das nossas imperfeições, nossos segredos revelados, teríamos uma reserva, uma margem de segurança, algo em que nos agarrar; nesse salto no escuro que sempre é o jogo do amor, quando estamos a beira de nos apaixonar. Mas viver é a arte do encontro. E também do desencontro. E os tempos de hoje são cruéis para quem pensa.

Nós mulheres não deveríamos pensar. Como diz uma grande amiga minha:
"Você está radiante. Não fale nada. Fique apenas calada e deixe as coisas acontecerem que os homens virão."

Não posso deixar de rir dos seus conselhos e achar que, no fundo, ela tem "bastante" razão. Recentemente li um artigo no jornal que pregava a volta das mulheres ao lar, revelando que algumas jovens, formadas nas grandes universidades americanas, estavam escondendo a origem dos seus diplomas, para não afugentarem os possíveis pretendentes. Na mesma reportagem li que uma nova geração de mulheres estava abandonando a vida pública para voltar a cuidar pessoalmente dos filhos, da casa e dos seus maridos.

Realmente não dá para não pensar sobre o assunto, pois é inegável que o "women's lib" trouxe, para a maior parte das mulheres, uma jornada dupla de trabalho e infinitos novos problemas nos relacionamentos, apesar das conquistas alcançadas. Quem ousaria supor que - depois de queimarem sutiãs em praça pública - as mulheres usariam próteses de silicone? Liberdades conquistadas são liberdades conquistadas porra nenhuma! Nunca vivemos um período tão obscuro quanto hoje, onde o feminino tem a sua imagem explorada de todas as formas possíveis. Não me admira nada que muitas jovens joguem para o alto um século de liberdades em busca do amor romântico e do casamento tradicional. Que opções elas tem? O modelo atual também está em crise e nele as mulheres perdem duplamente.

Eu não tenho do que reclamar. Tento ficar com o melhor dos dois mundos. Liberdade sexual com silicone free. E me salvo, creio eu, porque penso e também sinto. Aprendi a escutar o meu pensamento e a pensar com o coração. Ainda acredito no poder das palavras, apesar dos sub-textos e dos subtendidos. Gosto de ouvir claramente no meu ouvido o desejo do outro assim como tento, embora ainda de forma bem neolítica, expressar também o meu. Desejo tímido, envergonhado, medroso, às vezes inseguro. Mas se até o king-kong me entende por que os homens não ?

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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