Caleisdoscópicas
Humano,
Demasiado Humano!
por
Dulce Quental
09/11/05
Tenho medo que me roubem o tempo. Agora mesmo estou sendo roubada por essas palavras. Assim como fui ontem assaltada por mais que imagens. Amantes em dias de chuva, deveriam ficar em casa. Para não serem secados por corações solitários perdidos na noite.
As imagens são minhas amantes, pensei, logo que as primeiras cenas de Crash - No Limite rolaram na tela. Eu não tinha idéia do que me esperava. Do choro convulsivo à compaixão meu coração passou por todas as temperaturas. O diretor Paul Haggis não poderia ter acertado mais na escolha da temática para a sua estréia no cinema. Periga, ele ter realizado o primeiro filme de alguma espécie de "novo humanismo".
É difícil falar da contemporaneidade. Não temos distanciamento
suficiente para escrevermos e compormos personagens tão próximos.
Tendemos a imprecisão, a inverossimilhança, a glamurização da
vida que temos ou gostaríamos de ter. Mas falar de sentimentos
e diferenças, na complexidade do mundo de hoje, não é pra qualquer
um.
A subjetividade é extenuante. Sínteses, num mundo fragmentado, são difíceis de fazer. Mas isso não parece ter sido problema para Haggis. Em Crash, o diretor faz um recorte no tempo e introduz seus personagens do modo como a vida faz: na arte do encontro e desencontro.
Não há verdade, mas versões de uma possível verdade. O que o outro conhece de nós é apenas uma máscara do que somos. Multifacetados, incoerentes, ambíguos, somos como a realidade é. Humanos, demasiadamente humanos. Somos tudo o que nos interessa.
O policial, que aos olhos do parceiro ainda novato, tem um comportamento racista, mas na verdade esconde razões íntimas que ninguém conhece; o diretor de cinema que age como covarde aos olhos da mulher, mas que no fundo faz uso da racionalidade, o que lhes salva a vida; o pai de família, prestador de serviços, que troca a fechadura da casa de um casal assaltado, e é vítima da desconfiança da dona da casa pelo modo de se vestir; negros racistas, policiais generosos, mulheres belicosas; homens que ostentam poder e segurança, mas que na verdade são frágeis; enfim, o mundo como ele é: com sua beleza e crueldade; faces da mesma moeda; vítimas do mesmo desamparo; sujeitos de qualquer sorte.
Crash é uma crítica contundente a venda de armas nos
Estados Unidos. Claramente mostra a facilidade com que elas
são vendidas e disponibilizadas à população, que as compra totalmente sem informação. A insegurança em
que todos vivem, entregues a própria sorte, já que o que vale
é a lei do olho por olho.
O filme também nos mostra de uma maneira excepcional - nos oferecendo
a chance de viver uma experiência quase real - as escolhas que
podemos fazer. Numa das melhores cenas já realizadas no cinema,
um comerciante persa, vítima da ação de grupos extremistas,
vai até a casa do homem que para ele é o responsável pelo assalto
sofrido na sua loja - o rapaz não consertou direito a fechadura
da porta e por isso facilitou o assalto - com a intenção de
matá-lo. Sem no entanto saber quem ele é, e preocupado com a
dor da sua perda, com o seu desespero, o comerciante atira no
rapaz no momento em que a filha do chaveiro corre em sua direção.
No entanto, a menina não se fere, por um tremendo acaso do destino,
e vale ver para descobrir.
A história ganha uma densidade dramática graças à composição
da trama que introduz os personagens nos mostrando as razões
de cada um: o medo da menina traumatizada com a violência dos
bairros em que morou; as histórias amorosas inventadas pelo
pai para tranqüilizá-la; o desamparo do comerciante diante da
segregação religiosa e política; e finalmente o acaso que leva
todos a se encontrarem num desenlace que poderia ter sido fatal;
se um anjo, como diz o comerciante, não tivesse interferido
na trama. O anjo no caso é a filha do chaveiro que foi "salva"
da morte, e salvou seu pai, evitando a morte de uma pessoa inocente.
Afinal, temos a chance de escolher todos os dias como queremos
viver ou morrer.
A vitória dos milhões de "nãos" na recente votação do referendo relativo a venda de armas no Brasil ainda me tira o sono. Embora procure entender a razão dessa imensa maioria não consigo me convencer que o direito de se defender com uma arma possa gerar algum tipo de segurança. Acho que há mal entendidos demais. Dês-razões demais. Desencontros demais. Acasos demais. Mortes demais. E o medo gera um tipo de violência incontrolável. Enfim, a razão do outro é um outro. É preciso respeitar e entender. Mas também lutar pra defender o que ainda resta de humano, demasiado humano em todos nós. É o que Crash - No Limite faz magistralmente.
Dulce
Quental é cantora e letrista.
Email: contatodulce@dulcequental.com
Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com
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