Caleisdoscópicas
O Desejo da Mulher
por
Dulce Quental
04/10/05
Assunto perigosíssimo sujeito a infinitas variantes, pois nada
é mais ambivalente e difuso hoje em dia que a sexualidade feminina.
No País do carnaval de bundas e próteses de silicone, falar
de mulher antes de tudo é falar no plural, pois somos muitas
e singulares histórias, com corpos e desejos diferentes entre
si. Por isso, vou me limitar apenas a falar daquilo que conheço
ou quero conhecer: a mulher que teima em se esconder em mim
ou aquela que não reconheço nas imagens do cinema e da propaganda.
Quero falar de um desejo e de uma mulher que não se encontra
fácil. Não se encontra porque não se exibe, não se expõe e não
se vende como um produto a ser escolhido pelo olhar do homem
e do voyeur. Assim sendo, segue seus próprios impulsos, muitas
vezes contrários às tendências do mercado da sedução. Ela quer
escolher, mas para tanto teria que tomar iniciativas muitas
vezes contrárias às regras sociais. Iniciativas essas que poderiam
ser mal interpretadas. Por isso, cada vez que o desejo pinta
ela não deixa de pensar duas vezes: vale a pena correr tantos
riscos?
O grande problema de hoje, para mulheres que não se encaixam nos padrões estabelecidos, é encontrar normas de conduta, onde não existem parâmetros, nem modelos onde se espelhar. Nem mesmo o cinema, a grande fonte do nosso imaginário, foi capaz de criar exemplos de comportamento, adequados aos dias de hoje. Com raras exceções, vemos mulheres em cena falando de desejo sem vulgaridade.
As mulheres no cinema ou são divas fatais, inalcançáveis, mulheres idealizadas, que nada se parecem com a mulher comum; ou ingênuas poliânas, prostitutas do lar. Exceto no cinema europeu, onde vez por outra vemos mulheres entre 50 e 60 anos atuando como protagonistas em cenas de sedução, não temos no nosso imaginário, diálogos, cenas, situações vividas em que mulheres maduras tomam a iniciativa no jogo amoroso. Vêem-me a memória especialmente Charlotte Rampling em Swimming Pool e Catherine Deneuve em quase todos os seus últimos filmes. Assim como Fanny Ardant e recentemente Isabelle Huppert em A Pianista.
Mas o fato é que há de se inscrever ainda uma cartografia que nos guie através do desejo feminino, afim de que então possamos vislumbrar as novas praticas de sedução que estão a se construir ainda agora. Pois não há como negar que ao nos aproximarmos do desejo da mulher chegamos invariavelmente mais perto de algumas espécies de loucura: de que se diferencia a histérica de ontem, com a sua sexualidade recalcada, da neurótica de hoje, eternamente em busca da sua satisfação através do olhar do outro?
Conhece-te a ti mesmo senão vagarás na escuridão eterna, dizia
Freud. Parece que nesse aspecto estamos ainda na Idade da Pedra
pois a mulher que o mundo conheceu e aprendeu a amar está longe
de ser tudo que uma mulher pode ser e dar.
Na minha época, mulher de bem, pra ser respeitada por um homem, não podia ser fácil. Foi assim que aprendi, desde cedo, a arte de dissimular e dizer não , mesmo sem querer. Porque querer significava ter que dar, e dar era proibido para moças do bem. E olhem que eu nasci em 60, em plena "Revolução Sexual". Mas essa liberdade não era pra nós, meninas do Rio, da alta burguesia, filhinhas de papai. E assim crescemos, aprendendo a esconder o desejo pois não cabia a nós escolhermos e sim sermos escolhidas.
Uma mulher que não tem medo de mostrar a sua força e ao mesmo tempo feminilidade. Que quer ser tratada com delicadeza, porém sem ser infantilizada. "Sou adulta, independente, pago as minha contas, mas quando sou convidada pra sair gosto que o rapaz me apanhe em casa, pague o jantar, me empreste o paletó ou abra a porta do carro. Cavalheirismo é também romantismo", me confidenciou uma amiga, após a decepção do seu último encontro. Os papeis podem se inverter nesse jogo mas a diferença é que os dois jogadores têm os mesmo direitos embora os usem de maneiras diferentes.
Podemos criticar por vários motivos o conservadorismo da sociedade
americana, mas que outro País teria produzido os diálogos deliciosos
de Sex And The City? Acho que desde o relatório Hite
não víamos mulheres falando de sexo de maneira tão explicita.
Explicita, porém com altas doses de feminilidade. Acho que pela
primeira vez uma geração inteira de mulheres, que nunca tinham
falado abertamente dos seus desejos e procuras, se viu representada
numa série de tv. Daí o sucesso do programa.
Sucesso também, diga-se de passagem, pelo tom da série, que tratava as trapalhadas e desventuras dos personagens com muito humor; do tipo que geralmente só é usado em situações típicas de iniciante. Por isso o programa obteve larga aceitação, apesar do tom apimentado de vários episódios. Éramos todos aprendizes na arte de falar e ver mulheres no comando do seu prazer.
Mulheres jamais serão iguais aos homens. Seja no trabalho, seja na cama. No trabalho, por mais capacitadas que sejamos, usamos muito mais a intuição e uma espécie de sexto sentido do que a velha racionalidade e objetividade de mercado. A natureza da mulher é cíclica, hormonal. Útero, canais, orifícios. Somos uma caixinha de surpresas. Produzimos mais secreções e estamos sujeitas a mais infecções do que sequer imaginam os homens.
Por isso não entendo como pode ser possível essa nova onda do "ficar", em que adolescentes transam uns com os outros numa mesma noite. Para uma jovem garota de quinze anos, ficar com muitos garotos num só dia só poder ser um desastre total. Para os garotos, um exercício sem conseqüências maiores. Mas sexo para a mulher é coisa séria e sempre vai ser. Seja por amor, para ter filhos, ou mesmo só por prazer. Vai ser sempre diferente do que é para o homem.
Já faz algum tempo que começamos a nos interessar por homens não mais para constituir uma família, filhos, estabilidade ou segurança, mas porque procuramos alguém com quem possamos viver alguma espécie de aventura e sintonia. Não queremos as mesmas desculpas de antes, o "ligo depois pra você". Queremos nos divertir em noites de magia e prazer.
Mas não a qualquer preço. Temos muito que perder. Então, pra rolar tem que ser bom. Não pra repetir velhas historias e padrões que conhecemos e que não funcionam mais. E é aí que está o problema. Vamos ter que dizer muitos "nãos". Passar muitos sábados sozinhas. Isso, porque optamos pelos riscos e pelo direito de escolher e seguir o nosso desejo, que muitas vezes não nos levará a lugar nenhum, mas que deixará uma brecha aberta para um encontro real, onde estaremos prontas pra corresponder ou enviar mensagens.
Olhares cruzados, a palavra certa, um jeito de corpo, toda e qualquer bossa, pra cantar e ser cantado. Encantados, não é o queremos ? Momentos de encantamento que durem por toda a semana e nos façam esquecer os chatos, as contas, os compromissos inadiáveis, pois sabemos que temos um encontro marcado com o nosso desejo, por mais solitário que ele seja.
Dulce
Quental é cantora e letrista.
Email: contatodulce@dulcequental.com
Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com
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