Caleisdoscópicas
Patrulhas da contra-cultura
por
Dulce Quental
26/07/05
As patrulhas da contra-cultura estão de volta. Com elas, toda
uma ideologia politicamente incorreta em defesa do que se costumou
chamar de "alta cultura". Pureza na arte nos tempos de hoje
é um conceito careta e superado, mas os defensores da "arte
séria" insistem em afirmar existir um padrão de qualidade, que
é claro, é estabelecido por eles, senão não se chamariam formadores
de opinião, nem escreveriam nos principais jornais e revistas
de grande circulação.
No entanto, em nome desse suposto padrão, milhares de trabalhos
artísticos sequer alcançam o grande público e por isso não chegam
nem a ter a experiência de ser ou não reconhecidos e validados
artisticamente, por aqueles a quem de fato caberia a função.
Pois é para o público que o artista canta. É ele seu ouvinte/leitor
e patrão.
O fato é que validar um trabalho artístico ou um artista nos dias de hoje ficou difícil e arriscado. Qualidade, consistência, histórico: em que se apóia a mídia ou os formadores de opinião para classificar uma obra ou destacar ser ela merecedora de ser repercutida?
Parece que, como diz Chico Buarque, não precisamos escrever
livros, nem compor mais canções para existirmos artisticamente.
Basta que pareçamos estar fazendo alguma coisa, ou simplesmente,
que já tenhamos feito um dia algum trabalho artístico, seja
livro ou disco, para que aquilo gere notícia e aconteça ad finitum.
Seremos julgados eternamente pelos nossos primeiros trabalhos
mesmo que tenhamos feito coisas bem mais interessantes depois.
E como podemos infelizmente constatar, grande parte dos jornalistas
considerados "sérios" já tem uma idéia formada sobre tudo antes
mesmo de escrever o que quer que seja. Então, porque se dar
ao trabalho de pesquisar?
Se fossemos levar a sério o que esses caras escrevem, jamais
sairíamos dos nossos quartos, nem escreveríamos canções. A Bossa
Nova não teria existido. Vinicius de Moraes, saído dos salões
literários e embaixador da canção popular, não teria nos brindado
com suas letras com cheiro de calçada e chope. Graças a Caetano
e Gil a geração dos 80 existiu. Os tropicalistas eram abertos.
Sem lenço, sem documentos.
E as gerações vão se reverenciando umas as outras. Os yuppies dos 90 não teriam existido sem os oitentistas. Eles chegaram com suas vozes tecnológicas num terreno já irrigado muitas estações atrás.
Aos tempos sisudos da ditadura, guitarras elétricas. À caretice da MPB setentista, roquinho bobinho de bermudas, por que não? Caiu bem a bessa naquela época. A esquerda pós-ditadura era ranzinza e retrógrada. Cantar na época : "Não sou dou tipo que faz comício tenho horror a compromisso", fez todo um sentido. Difícil de ser analisado nos dias de hoje, ainda mais sob as lentes fascistas das elites intelectuais.
Posso entender essa preocupação em preservar a "cultura autêntica",
o samba de raiz, o que é nosso. Mas vejo, e não é de hoje, o
prazer quase sádico com que essa turma patrulha os expoentes
da nossa geração por ter sido uma geração formada pelo rock
e pelo cinema, as maiores manifestações de cultura de massa
do nosso século.
Em vez de tentarem enterrar a nossa geração, antes do tempo, esses caras deveriam voltar pra universidade, para tomarem uma lavada de história da cultura pop. Rock é atitude. É política. É comportamento. Já que é pra falarmos ao pé da letra. Mas isso não se aprende na academia ou na escola. Ah! então ta explicado!
Dulce
Quental é cantora e letrista. Saiba mais sobre
a cantora no www.dulcequental.com
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