Caleisdoscópicas
Um fim de semana nos anos 80

por Dulce Quental
04/07/05


Fui passar um week-end em Sampa. Como numa viagem no tempo estacionei minha aeronave nos anos 80 por dois dias. Convidada a participar da gravação de um show que vai virar cd, dvd, etc...

Perdida na selva da paulicéia, já não tão desvairada, sofri como o diabo. Já não sou mais uma jovem balzaquiana. Estou pra lá dos 40. Memórias do passado e fantasmas me assombram. É melhor deixar os mortos e as canções em seu lugar.

Não sou nada retrô. Vivi os 80 com toda velocidade. Uma década como se fosse mil. Foi bárbaro, intenso, deixou muitas histórias inenarráveis, mas acabou. Graças a deus. Sobrevivi. Sem melancolia. Sem ressentimentos. Me curei. Não olho para trás. Não contabilizo perdas. Quero avidamente o presente e clamo novas oportunidades.

Há alguns anos escrevi sobre a emoção que senti ao assistir o show de lançamento de um CD do Frejat, Amor pra Recomeçar. Nele, meu parceiro querido passeava pelas canções que marcaram a nossa geração, num show, para mim, memorável. Mesmo passados todos esses anos, e sem os personagens que fizeram das noites dos 80 lendas vivas, senti nesse show algo de genuíno e conclusivo, como se ali se encerrasse definitivamente um ciclo; como um epílogo ou pós-facio da história da nossa geração.

Dois anos depois, aqui estamos nós. Turistas de guerra no Ibirapuera, voltando a cantar as mesmas canções. Por que? Eu me pergunto. E o mercado me responde. As pessoas sentem saudade da época. As novas gerações se ressentem de algo que perderam por serem jovens demais e querem viver de alguma forma aquilo que não encontram na música de hoje. Talvez como nós, artistas dos 80, nos sentíamos em relação à contra-cultura e todo o movimento do 60. É, pode ser.

Mas a importância dos anos 80 não se deu tanto na música, mas na atitude. E é essa que fica difícil de trazer de volta numa sociedade onde tudo é mercado, produto e consumo. Como ensinar os yuppies a sonhar como nós sonhamos? Idealismo e romantismo estão tão fora de moda.

Alguns continuam numa espécie de resistência à francesa, às vezes, meio kamicase, como é o meu caso. Outros se apegaram a velhos sucessos, conservando em formol suas carreiras, e há aqueles que hoje produzem uma música totalmente inócua para o mercado. Um rock descerebrado para massas anestesiadas. Uma música que funciona como droga, no que a droga tem de mais maléfica. Não produz viagem, não te leva a nenhuma percepção maior sobre nada. Não muda a sua maneira de pensar. É como um hambúrguer, fast-food. Como uma rapidinha. Anestésico para dor de todo dia.

O fato é que grande parte dos artistas envelheceu. Não falo de idade cronológica. Falo de um outro tipo de envelhecimento. Os artistas pararam no tempo. Mumificaram-se. E arrisco a dizer que isso aconteceu devido a grande dificuldade que temos em perder. As coisas passam. Momentos são únicos. Criar é um processo ininterrupto. Para estar vivo é preciso se ligar no processo e acompanhar as novas ondas. Pegar novas ondas é deixar pra trás as que passaram. Perder status. Perder dinheiro. Perder amigos. Recomeçar sempre e arriscar como um iniciante. Para manter a chama acesa.

Recentemente escrevi uma letra com o meu mais novo parceiro. Ele tem 70 anos e é considerado o vovô do rock. No entanto não há alguém hoje que personifique mais o que foi os 80 do que essa gracinha de quem estou falando. Ele é o espírito vivo do rock and roll, com sua inteligência corrosiva misturada a altas doses de saúde. Ele, a propósito, me lembra uma foto recém publicada no jornal com o emblemático título de “O tempo passa”. A foto retratava os Rolling Stones numa apresentação à impressa. A alegria e a dignidade desses sessentões é de causar arrepios. Os Rolling Stones não envelhecem jamais. Por que? Porque são como João Gilberto.

Ourives, sapateiros, carpinteiros, artesãos, tocam a mesma canção. Mudam uma vírgula, um acorde, pequenas alterações que fazem toda a diferença. A repetição exaustiva até a descoberta; o salto pra um outro nível de percepção; a viagem na grande espiral; passando pelos mesmos caminhos enquanto outros se abrem; os grandes solos dos mestres do jazz; o eterno retorno, como dizia Nietzche.

O gosto pelo presente e uma atração irresistível pelo futuro é a chave. Um olhar de criança que não se perdeu. Beleza Roubada, meu disco, fala disso, não sei se alguém entendeu. A volta que se tem que dar para se chegar ao início. Recuperar o desejo, o tesão, a inocência de criar. É preciso jogar fora milhões de rascunhos e ganhar a vida de novo, como canta Frejat, na linda letra do poeta Mauro Santa Cecília inspirada em Victor Hugo. É preciso "amor pra recomeçar". Dialogar com a tradição do passado. Mas sem saudosismo. Sem medo de arriscar.

Vamos tirar nossos quadros da parede. Vamos criar pelo prazer. Não para satisfazer a demanda de um mercado voraz, corrupto e predador. Não vamos conservar nada em museus, nem guardar velharias, nem cultivar quinquilharias. É preciso ser mais rápido do que o mercado. Se ele nos usa e nós sabemos disso, não adianta lamentar, nem se vitimizar. Somos nós os criadores. Vamos criar, criar e criar, para jogar fora. Já que tudo será esquecido, apagado e reduzido em compêndios e enciclopédias virtuais. Só contamos com a nossa própria percepção, com a nossa sensação. Como um super homem nietzniano que vive o presente. Mais forte que a eternidade das obras de arte. No mundo de homens bomba seremos homens em estado de arte pura. Como heróis gregos desejando a bela morte. A morte do guerreiro. Vamos ser ridículos de novo, mas por outros motivos certo!

Pra terminar segue a letra ainda inédita que eu e meu amigo e guru Ezequiel Neves fizemos. Espero que vcs não gostem!!!

Vanguarda Envelhecida
Ezequiel Neves e Dulce Quental

A vanguarda envelheceu
Mas não é o nosso caso
Não penduramos na parece novos quadros

Cartas de amor não guardamos
Recordações em guardanapos de papel escrevemos
Pra que requentar eternidades num museu de cera
Se tudo é agora, e o agora já é pra jogar fora

Então vem meu bem, vamos fazer outros planos
Reinventar a história, pra também jogar fora
Pra também jogar fora

Me dá um beijo pra valer
Mas por favor, não guarde nada
Porque tudo nessa vida será retido na memória

Mágoas, canções, não guardaremos
Punhaladas certeiras no coração não apagaremos
Pra que requentar novidades num museu
Se tudo é agora, e agora também já envelheceu

Então vem meu bem, vamos fazer outros planos
Reinventar a história, pra também jogar fora
Pra também jogar fora

Olho pra cara do presente
Onde o horizonte é sem fim
Nele cabem mil molduras
Instalações sem frescuras

Dulce Quental é cantora e letrista.
Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com