Caleidoscópica
Overdose de ficção ou realidade?

por Dulce Quental
31/01/06


2046 me deixou exausta. Não que eu não goste de decifrar enigmas cinematográficos de filmes cabeça, mas o novo longa metragem de do chinês Wong Kar-War literalmente me quebrou a cabeça, e pra não dizer a coluna, depois de quase três horas de estado de lentidão forçada; saí com os sentidos embaralhados e com o K7 pifado; depois de tantos rewinds e fowards no tempo. Os cinéfilos de prontidão que me perdoem, mas não sei se gostei do filme "tanto assim". Gostei um pouco.

Por que não gostei muito, eu me perguntava na saída da sessão, me sentindo já meio burra e maldizendo a minha má formação cinematográfica. Talvez eu estivesse cansada demais para enfrentar um filme como aquele, depois da semana exaustiva de batalhas emocionais. Eu estava cansada de lutar. E não dá pra negar que o filme de Wong Kar-War não seja um desafio pra mente, corpo e todos os sentidos.

Cansada de competir com homens em mind-games intermináveis; cansada do eterno jogo de sedução; eu esperava alguma espécie de entorpecimento, uma compensação pelo fato de ter suportado mais uma semana de impossibilidades. A ultima coisa que eu precisava era assistir a minha realidade maquiada. Se era pra sofrer mais eu preferiria não ter saído de casa.

A desesperança do chinês me deixou um gosto amargo no fundo da garganta. Eu que luto contra essa espécie de idealismo impregnada na minha formação, que faz com que eu tenda a ver a realidade sempre distorcida pelo meu desejo de absoluto, perfeição e beleza, quase engasguei numa overdose, com a ficção lisérgica desse chinês. Onde eu iria encontrar uma droga mais do que perfeita pras minhas adicções?

Wong Kar-War parte do pré-suposto, de acordo com a sua própria vivencia , que o encontro com o outro é de fato impossível, que estamos sempre atrasados ou adiantados no tempo, que estamos e estaremos sempre sós, incapazes de nos entregarmos de alma a alguém. Um ceticismo fácil de vender pois assim se construiu o mito do amor romântico, na literatura e no cinema no último século. O culto à infelicidade banhado em novos enquadramentos, fotografia espetacular, um ar Nouvelle Vague retrô, seria essa a nova formula do cinema de autor?

Mas o fato é que essa é a experiência de alguém, que pra se proteger do mundo que o machucou, opta por se envolver apenas com pessoas inalcançáveis. Desejar o impossível passa a ser a forma que Mo Wan Chow, personagem principal da trama, encontrou para reviver eternamente a sua primeira experiência, quem sabe na esperança de sublimar ou encontrar as respostas que tanto procura. Esse lugar, cabe bem ao personagem Mo Wan/Wong Kar, o escritor/cineasta, aquele que vive de contar histórias, possíveis de serem vendidas. O desencanto também vende.

Mas e os coadjuvantes? As belíssimas mulheres que se apaixonam, sofrem e morrem de amor? Seriam elas mais capazes de amar? E por que quase todas as mulheres do filme são prostitutas? Só com a prostituta um homem não corre o risco de se apaixonar? Exceto, é claro, a mocinha, pela qual o personagem de fato se apaixona. Mas aí, mais uma vez a lógica romântica impera: João que amava Maria que amava José que não amava ninguém. Ele se apaixona por ela porque ela também é uma impossibilidade.

Somos incapazes de amar. Amamos apenas imagens. Nossas imagens refletidas no desejo do outro. Somos narcisos insaciáveis. Vampiros de todas as eras. Nos ressentimos do passado, sonhamos com um futuro idealizado e perdemos o presente. Nos comportamos como andróides defeituosos. Estamos sempre atrasados. Há uma espécie de delay nas nossas emoções. Elas precisam antes passar por barreiras, desarmar defesas, antes de expressarem os nossos sentimentos. Mas quase sempre é tarde demais pois o outro já não estará mais no mesmo lugar e as nossas lágrimas cairão no vazio.

"O vazio é um meio de transporte pra quem tem coração cheio"; adoro essa frase de Paulinho Moska, filósofo incidental da MPB. Me ocorre que nela cabem muitas versões, muitas possibilidades e uma nova visão, que infelizmente não cabe no cinema de Wong Kar.

Eu quero acreditar numa espécie de redenção, entrega ou estado de paixão. Algo que reside além das imagens perfeitas e glamurizadas do cinema e que é anterior a organização da linguagem e da literatura. Antes da palavra falada. Talvez mais próximo da poesia sentida. Uma espécie de desejo de nada. Ao contrário do nada de desejo. Nesse desejo de nada caberia tudo o que couber, o que se encontrar. A própria experiência. Que está no presente. No que é possível.

Gosto da idéia de aprender a gostar de quem também gosta de mim. De gostar do que me faz bem. Mas para viver isso talvez tenhamos que estar vulneráveis. Talvez seja necessário sair do estado de defesa, do estado de medo, dos jogos de poder. Nietzche dizia que tudo é poder, principalmente as relações. E descobriu, tardiamente, ser possível encontrar na amizade, a confiança e a sabedoria para o amor. Mas quem está falando de amor aqui? Estamos falando de sobrevivência, de paixão, de amores predadores, de poder econômico e sexual. No submundo de Cingapura ou no coração de Ipanema é tudo igual. Mas pode também não ser. Se sairmos da repetição narcísica, do idealismo fetichista, e arriscarmos de novo a quebrar o coração, a cara, o bolso... Ou então viveremos asfixiados nas salas de projeção, sofrendo desnecessariamente pelos mesmos filmes, em novas versões, como é o caso de 2046.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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