Caleidoscópica
Como Caem Os Amores

por Dulce Quental
27/07/06


"Leonardo! Leonardo! Encontrei meu Judas", gritava ela, enquanto o jantar ainda não estava na mesa. Não era a Última Ceia, mas ela sabia que a partir de agora cada refeição teria um sabor diferente. Ela estava livre. Livre pra ser qualquer coisa; um pássaro; uma mulher; um acrobata; livre pra cantar e encantar o mundo; com alguma coisa que ela sabia possuir de verdade. Seria essa coisa identidade? Singularidade? O contorno de um corpo; o ângulo de um rosto; um sorriso meio torto mas que se abre como uma pétala; um botão; com sua caixinha de surpresas; direto do coração ?

Sim. Ela sabia do que se tratava, pois aprendera a ferro e fogo a cuidar do jardim plantado no canto do olho; e afinal, depois de olhar, estudar, pensar e não comer; depois das noites em claro, dos dias em branco, dos lençóis rasgados, das dividas acumuladas no banco; ela finalmente chegara a conclusão do que faltava: foi quando viu aquele rosto encravado no meio da multidão de homens anônimos. Qual era seu nome? Aonde ele vivia? Por que estava ali esperando por ela? O que o atormentava? O que o prendia? Ela sabia; pois tudo tem um fim; e o dela; e o dele; já havia chegado.

"Puro orgulho" - a velhinha debaixo da barraca de frutas falou - "o maior dos pecados; maior do que a inveja, a luxuria e a ganância; a traição de um grande amor por orgulho é o maior dos pecados; foi assim que Judas traiu Jesus, porque não foi capaz de suportar o amor que sentia por ele. O amor o envergonhava; o rebaixava a condição servil e ele era orgulhoso demais para tanto. Mal sabia o quanto iria pagar por esse capricho da alma; esse defeito mais do que congênito; vagar sozinho pelo mundo incapaz de amar ou ser amado de verdade por alguém."

"Sim", ela respondeu, faltava alguma coisa para que se completasse o sentido daquele olhar: a voz, o cheiro, o silêncio. Ela precisava de tempo; tudo que ela nunca teve: "Seja na Itália, na pequena Vinci de Leonardo, seja no Rio, no enorme Brasil onde vivemos, parece nunca haver tempo suficiente pra estudar, conhecer, realizar o que sonhamos, o que desejamos", pensou. Há tanto por fazer e tanto que se perde pelo caminho. Assim como o afresco do convento de Santa Maria delle Grazie estava fadado a desaparecer, carcomido pela umidade e ação do tempo, sua voz também sumiria, apagando da memória cada nota que ela emitira.

Foi preciso tempo pra encontrar a chave que abriria a porta da frente; o rosto que a conduziria pelas mãos até o interior da câmera escura; as palavras que revelariam o terror, o absurdo daquela condição.

"Ah! Niccola! Fostes tão boba quanto eu há pelo menos sete séculos atrás. Ah! Perutz! Nascestes na cidade mais bela da oriente europeu, onde minha juventude se perdeu, nas mesmas tabernas onde bebestes a melhor das cervejas do universo. Ah! Messer Leonardo, jamais ouve um gênio igual com quem pudéssemos aprender a arte da suprema servidão aos homens, reis e paises; que guardasse toda a inteligência e sabedoria do mundo; que soubesse amar os seus pares e a sua época, apesar da enorme solidão, desamparo e abandono dos que se diziam próximos e familiares.

Sim, e apesar disto, fostes um leão derrubando gerações de reis que passavam e caiam, como caem as nações, os amores e as bandeiras, e ficam os artistas, as obras e suas lendas. Perdestes quase tudo que construístes, mas entre os escombros das tuas perdas, pintastes a maior obra prima da história da pintura; uma tal de Gioconda, chamada de Monalisa, que com seu sorriso desafiou a eternidade fulgaz dos jovens Miguelangelos de plantão, os mesmos e sempre leitorzinhos apressados, criticozinhos desmunhecados, homenzinhos de cartas marcadas; sempre prontos a destruir e a esvaziar o talento e a beleza, por qualquer tostão furado que valide a estatura da sua pequenez e insensibilidade."

"Sim Behaim, Perutz/Leonardo encontrou em você o Judas, a peça que faltava para que ele terminasse seu afresco/livro. Eu encontrei num diamante falso a quimera que tanto me atormentava. Agora, livre desse estupor, sou minha. Posso concluir a minha obra que não é prima nem dona mas somente minha", ela suspirou, sem se importar com a velha locomotiva, que inconformada com a sua condição, disparava impropérios na tentativa de reanimar a sua atenção. Mas era tarde demais. Ela já estava em outro lugar, ocupada em aprender a servir, como fazem aqueles a quem chamamos de artistas.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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