Caleidoscópica
Um
Gato Aos Pés Do Rio
por
Dulce Quental
Foto: Divulgação 18/06/06
Ele faz cinema, ele faz cinema, ele é demais! Aprendeu o domínio
da linha do tempo com a literatura e hoje é a maior expressão
da Música Popular Brasileira. Escreve romances e faz músicas
que levam anos pra amadurecer. Quando prontos, caem sobre nós
com um poder que só o sabor da fruta fresca tem. Ele é Chico
Buarque, carioca, poeta, escritor, homem, amante; um gato aos
pés do Rio; a mais perfeita tradução dessa cidade; que há de
penar para estar a altura de tamanho criador.
Seu novo disco Carioca é encantador. Mas não pega agente de primeira; não é como aqueles amores à primeira vista; não; Carioca é um conquistador contemplativo; vai se insinuando aos poucos; quando vemos, virou trilha sonora das nossas vidas.
Chico é uma ilha de tranqüilidade e sofisticação dentro do caos do Rio. Um homem delicado, com alma feminina. Ama de verdade as mulheres. Arrisco a dizer que, igual a ele, só tivemos Vinícius; não é à toa que no filme de Miguel Farias a melhor definição do poeta tenha partido de Chico.
Mas o que faz de Carioca um disco excepcional a cada audição é sem dúvida nenhuma a contribuição do violinista e arranjador Luiz Cláudio Ramos que acerta em cheio na criação da atmosfera do disco. Luiz Cláudio criou uma moldura mais do que perfeita para a voz e a poesia de Chico ao optar por criar uma espécie de trilha sonora para cada canção, como se cada obra individualmente fosse o plano de um filme, composto de partes e movimentos, como numa sinfonia.
Para isso, deu um acabamento clássico às canções inscrevendo-as dentro de uma sonoridade atemporal; ao escutarmos Carioca temos a impressão de estar flanando sobre uma linha de tempo; como se estivéssemos suspensos, assistindo nossas próprias vidas passarem, enquanto vivemos.
Não seria essa a função da canção popular, fazer com que o ouvinte
tenha a impressão que o que está sendo cantado, não só é possível
de acontecer, como esta acontecendo no momento exato em que
a canção está sendo tocada? Essa sensação de aproximação, de
intimidade com o interlocutor, é a grande arte da canção. Ao
aproximar o canto da fala, e criar uma dicção própria, o compositor
se torna para o ouvinte uma espécie de confidente, sussurrando
conversas intimas ao pé do ouvido.
Se além da habilidade com as palavras ele for também um bom melodista, o serviço estará completo, pois é a melodia que carrega o texto e transporta a experiência. No caso de Carioca, eu diria que os arranjos de Luiz Cláudio Ramos deram milhões de outras vozes às melodias de Chico, de modo que essa sensação de ser transportado para um outro lugar, um outro espaço, essa sensação de transcendência que a canção evoca, se materializou de forma perfeita tornando Carioca, um clássico instantâneo da Música Popular Brasileira.
Instrumentos como clarinete, flauta, violoncelo, acordeom, tuba,
banjo, pandeiro e violão, sob a regência de um maestro a serviço
da poesia, fazem de Carioca um manifesto de delicadeza.
Em todos os meus 46 anos de praia nunca escutei tamanho requinte
num só álbum, nem mesmo no clássico LP Amoroso de João
Gilberto, regido por Claus Oberman.
Talvez encontremos paralelo na Obra de Jobim, com seus arranjos polifônicos, mas pra mim, Carioca é um disco inaugural, uma espécie de marco na MPB. Escuto nele as infinitas possibilidades de se sonhar uma música popular brasileira e universal; uma música que se projete no mundo contemporâneo com o que de melhor ela criou; nos fragmentos de discurso amoroso de Carioca podemos encontrar o melhor da nossa tradição; do choro ao samba, da valsa à bossa, passando pelo baião e pelo rap-repente.
Não saberia dizer, quais das canções gostei mais. Acho que entre todas, minhas prediletas talvez estejam entre: Sempre, Outro Sonho, Ela Faz Cinema, a já conhecida parceria com Tom Imagina, Dura Na Queda, As Atrizes, Bolero Blues e Porque Era Ela, Porque Era Eu. Há frases de uma simplicidade latejante, mas que, ditas na hora certa, soam perfeitas, como em Dura na Queda: "A dor não presta, felicidade sim", citação acidental de uma frase de Vinícius: "Tristeza não tem fim felicidade sim".
Bolero Blues evoca com o seu atonalismo melódico um universo meio que esquecido pelos cariocas e previamente explorado pelas vanguardas paulistas, Arrigo e afins. Com uma letra absolutamente original de Chico e música de Jorge Helder, percorre três momentos distintos dentro de uma mesma linha de tempo, ao construir a sua narrativa evocando um sonho passado, fazendo-o acontecer no presente, e nos levando a antecipar o seu futuro. Faz assim cinema em forma de música pois cada imagem sintetizada numa cena se desenvolve como se estivesse na nossa frente, acontecendo no instante em que a canção se desenrola. Pura magia.
Em As Atrizes, o homem-poeta se desnuda com uma coragem que só costuma acometer mulheres. Chico dá como uma mulher; ele se entrega, se desarma e conclui com um paradoxo infalível: "com tantos filmes na minha mente é natural que toda atriz presentemente represente muito pra mim"; a palavra 'represente' aí toma uma dupla conotação irresistível, oferecendo dois pontos de vista diferentes: o daquele que representa como um ator para alguém e o daquele que como observador toma o que o outro faz como significante; as mulheres representam muito para Chico; interpretam, mentem, mas nem por isso deixam de significarem, pelo contrário, essa espécie de mentira sincera lhe interessa. Tanto, que em Leve, parceria com Carlinhos Vergueiro, apesar do poeta reafirmar a brevidade das relações, e a peculiaridade do querer masculino - "não me leve a serio, passou esse verão, outros passarão" - o homem Chico não deixa de expor a ambigüidade também do seu desejo - "meu coração parece que perdeu um pedaço", "não se esqueça depressa de mim" - típicas de quem está também apaixonado e não quer perder o seu objeto de paixão.
Nesse sentido, parece haver um mapa escondido dentro da cartográfia de Carioca. Um mapa que se inscreve além das esquinas, ruas, cemitérios e quiosques da cidade. Podemos decifrá-lo seguindo as pistas que Chico nos oferece quando canta as possibilidades das relações amorosas nos dias de hoje.
Apesar do romantismo latente nas canções, o discurso de Carioca é duro e realista: o coração inflama, nunca estamos onde o outro está, há um lapso de tempo entre o olhar do nosso desejo e a realidade das nossas histórias; o mundo das bundinhas e peitinhos comuns é errante, lá nos perdemos e nos enganamos, com nossos eternos olhos infantis: "penso que todos os passos perdidos são meus", conclui Chico em Renata Maria.
Para as mulheres segue algumas pistas; o ponto de vista de um olhar delicado; olhar de um homem e seu filme canção apontando novos sentidos.
Como ele nos filma?
Não devemos nos atirar do terraço, nem perder a cabeça. Melhor evitar muita cachaça e se possível levar a vida mais na brisa. Não levar os homens muito a sério. Ir devagar. Não esquecer suas marcas rápido demais, no entanto, deixar passar os amores; como passam as estações; como passam os verões.
Chico acende a esperança das cariocas: encontrar um amor de alma delicada num tempo de total brutalidade.
Dulce
Quental é cantora e letrista.
Email: contatodulce@dulcequental.com
Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com
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