Caleidoscópica

Uma Impossibilidade Possível

por Dulce Quental
11/05/06


O portão bate. Ao longe, um barulho de televisão ligada. Liquidifico a dor descendo pelo elevador, acompanhando o soar das vozes, misturado ao burburinho de barulhos indistintos. Uma pequena pausa, um suspiro e estou a caminho. Sob o efeito de uma escuta atenta, disparei o gatilho. Serei capaz de ouvir uma mosca morrer? Se sou capaz disso, sou capaz de quase tudo.

Música barata entra pela janela. O silencio é uma página. Uma pétala de rosa. Uma lágrima. Quem precisa de assunto para escrever? Só precisamos pensar alto e matar o tempo, sílaba por sílaba. Uma linha de cada vez. O presente se torna suportável. O desespero vai embora. Agora mesmo, um minuto atrás, enquanto você me olhava por trás, sem perceber, me distraí, vasculhando prateleiras, a procura de um livro pra ler. Voltei pra casa vazia. Estou cheia demais pra escutar a dor alheia. Preciso fugir dessa cidade. Da civilização. Escrever é um ato selvagem, de alto risco. Nada pode ser mais perigoso. Por isso quero ir pro mato e virar um gato. Pra caminhar invisível pela noite, com meus olhos de foice.

Tento capturar o tempo para que ele não me pegue de calças curtas. Gosto de uma literatura enxuta. de frases curtas como uma letra de canção. Compor é escrever visões, padronizar inflexões, mascarar o tagarela. Agora que estou livre da composição posso escrever longas canções em prosa que serão escutadas apenas por quem passar por aqui. Rezo para que os que passem, sejam de boa índole e não me julguem apressado. Estou trocando de casca, como uma lagarta. A partir de agora, serei outra pessoa, terei outra profissão; você não me reconhecerá em nada do que fui. Pois na verdade, acredito mesmo que nunca fui quem achei que era.

Agora, sou apenas o que dizem os meus pés na terra. E eles estão enterrados até a metade, tentando me desvencilhar do entulho ao redor. Logo que me livrar desse ar nos pulmões, estarei livre para caminhar sozinha. Preciso apenas agüentar o peso do corpo e das horas.

Assisti a um filme, essa noite, que me fez ter a certeza que Daniel Dan Lewis é um grande ator. Parece haver uma verdade latejante em cada nervo do seu rosto, o que me faz pensar que a arte de representar exige uma disposição para o risco e um mergulho na própria identidade, com uma intensidade e habilidade, que só um mestre seria capaz. Quando nos deparamos com um pela frente, nos sentimos meio que enganados, pelos tantos outros, pois ele brilha com uma luz tão mais forte e profunda, capaz de nos tocar de um jeito arrebatador. O olhar de Daniel Lewis em A Vida de Jack e Rose, encarna uma desilusão geracional de tal tamanho, que morremos um pouco junto com ele.

Morri muitas vezes e renasci tantas outras. Hibernei. Fiquei doente. Vi filmes medíocres na Tv. Ressuscitei no meio de uma entrevista com Marguerite Duras. De vez em quando tenho a sorte de pescar alguma coisa inteligente, que faz com que o tempo em frente da telinha, não seja um desperdício total.

Pra quem não sabe, Duras foi uma das maiores escritoras de língua francesa. Nascida na Indochina, autora de vários romances, peças de teatro e roteiros de cinema, como Hiroxima Meu Amor, Os Amantes e O Vice-Cônsul, entre outros. Morreu em 1996, algum tempo depois de dar essa entrevista, onde discorre sobre a morte, a solidão e o oficio da escritura. Trata-se de um relato ao mesmo tempo poético e dramático.

Duras fala como escreve. Com uma naturalidade e verdade desconcertantes. Me lembrou a coragem de Clarice Lispector. No final da vida, viveu totalmente reclusa, escrevendo compulsivamente: "Escrever é como voltar a um estado de selvageria. Não é preciso ter algo a dizer porque escrever tem muito mais a ver com pensar, com um impulso desesperado, com atravessar a escuridão da noite e da loucura."

Falava muito de uma escritura de sono, de lentidão, e do enorme prazer que advêm da liberdade conquistada, depois da devastação que o processo de escrever provoca. Ser o ouvido do mundo tem um preço, muitas vezes caro demais. Mas eram outros tempos e enquanto o humanismo, o existencialismo e as ideologias da época tremulassem suas bandeiras, sua voz seria ouvida e seus livros se espalhariam pelos quatro cantos do planeta. Era muito orgulhosa, de cada deles. Não era pra menos, o mundo em que ela viveu foi o mundo duro das guerras, das grandes revoluções e das palavras de ordem – Duras foi militante do Partido Comunista e membro da Resistência Francesa. Adorava Michelet, seu escritor predileto. Teve vários amantes, sempre mais jovens do que ela. Uma mulher de um outro tempo.

"Uma possibilidade impossível", como diria Olgária Mattos, filósofa brasileira; uma mulher como Duras não teria sobrevivido a esse tempo de insignificâncias, onde tudo só pode acontecer porque não vai durar. Onde a fluidez dos sistemas econômicos, torna o tempo alheio e estranho a nós, pois tudo é imediato e breve e está sobre efeito do cálculo e do interesse mercadológico. "Tudo é desatenção; para consigo próprio e para com o próximo. Adotamos a lógica das máquinas e imitamos os jogos amorosos das mercadorias com nossos corpos maquínicos, moldados nas academias de ginástica, com anabolizantes e próteses", diz Olgária. Não me admira que a maior parte do tempo nos sintamos miseráveis. Diante de demandas cada vez mais surreais, o que fazer?

Venho capengando de crise em crise, destruindo ilusões, catando miolos de pão, para encontrar o caminho de volta. Foi me dito que a disposição para a ilusão era um estado desaprovador. Mas as palavras de Olgária me encheram de esperança. Pois para essa filósofa, professora catedrática de Filosofia da USP, ilusão não quer necessariamente dizer desengano, e sim jogo: "Ludos", no sentido de lúdico. Vem do latim "iludere". Então, quer dizer que se você jogar e ganhar, a ilusão pode ser realizada? Quer dizer que nem toda ilusão é perda e desengano? Uma ilusão pode vingar? "Se você não se ilude, não se idealiza, não constrói o seu objeto de amor. A ficção vem antes do
amor, é uma espécie de disposição para o amor. Que é uma espécie de engajamento", afirma Olgára.

Quer dizer, que ao contrário de me censurar por sonhar demais, eu deveria dar graças a deus por ser quem sou, por perder o tempo que perco, com os meus pensamentos, minhas canções e meus sonhos? Devo dar graças a um deus filósofo, sábio e escritor, por ser capaz de desafiar toda e qualquer poder e dês-razão na sua prepotência? Devo simplesmente acreditar que o princípio do prazer pressupõe a eternidade, pois se o desejo se sublima na resistência e é essa que cria o vinculo, a continuidade do afeto, temos todos que ser mais ou menos arquitetos, filósofos e deuses?

Amém.

Minha (oni)potência está salva. Posso continuar a ser uma artista, maldita na minha condição.Tenho uma razão para não desaparecer. Assim como Marguerite Duras e Daniel Dan Lewis, carrego dentro de mim a tradição dos ladrões de fogo; uma impossibilidade possível.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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