Caleidoscópica
Ideologia, não quero uma pra viver!

por Dulce Quental
02/05/06


A doença das idéias acontece de século em século levando algumas almas sensíveis para o abismo do niilismo. Fui vítima dela durante anos e ainda luto desesperadamente para me livrar dos seus sintomas. A doença das idéias já se chamou ideologia, teve o nome de idealismo, derrubou muros, gerações, e governos; muita gente interessante caiu por ela, quase sempre, com muito o quê dizer. Costuma gostar de arietinos, aqueles nascidos no signo de fogo, fundadores das grandes artes e revoluções.

A doença das idéias tem muitas faces. Conheço quase todas elas. Já fui escrava e camelo. Hoje, persigo o homem livre em meio à névoa e a chuva ácida. Embora ele caminhe com as próprias idéias, e não precise de reconhecimento, ainda carrega uma quimera em seus ombros, herança de um passado recente.

Homem livre é igual em qualquer tempo. A princípio não se nota na aparência nada que denuncie a sua condição. Invisível aos códigos de conduta e ao olhar contemporâneo ele caminha. Há um quê de loucura em seus olhos, beirando a exclusão. Alguma coisa que se parte e está sempre partindo. Corpo, membros, coração.

Mas nem sempre é assim. No mundo da idéias abstratas às vezes cabe a concretude. É quando a ilusão do balé das sombras toma a forma de pensamentos que se transformam em fotogramas e palavras. Cinema é cachoeira dizia Humberto Mauro. Está lá, como a vida, correndo subterrânea e ininterrupta, até que alguém, movido por um desejo de eternidade, resolva querer parar o seu fluxo e congelar alguns dos seus momentos, pra se juntar com o movimento da vida e se perpetuar como o vento, a água e as nuvens...

Esse desejo por si só não é loucura, se dentro dele houver a consciência da total impossibilidade de um pensamento ou idéia totalizante. Pois tudo se move e é mutante. Tudo nos escapa e se agiganta. Tudo se perde, escorre e desfalece e a única certeza que temos é a de que estamos passando sobre uma paisagem que também está em movimento, mesmo que tudo pareça não sair do lugar.

Há aqueles que passam a vida seguindo um manual. Aprenderam a lição de casa e todos os dias jogam na cara do mundo o seu orgulho. Há também aqueles que não aprenderam nada, culpam a deus e o mundo pelo seu infortúnio e passam a vida sem realizar nada. E há aqueles, que cumprem o seu karma e descobrem que tudo aqui se faz e aqui se paga. Esses, não esperam o paraíso, passam por todo o inferno e vivem mil vidas em uma. São eles chamados às vezes de poetas e muitas vezes de vagabundos. Poetas com caras de vagabundos ou vagabundos com cara de poetas. Inúteis páreas, "bons vivans", "Flaneurs", embriagados de tudo; poesia, virtude, vinho, não importa. Cada gota do seu prazer nasce de um sonho impossível que se torna real. Caçadores de tornados. Sempre no olho do furacão. O que esperar de loucos como esses, se a razão que movimenta as suas vidas, desafia todos os dias, a existência da sua própria condição?

Quem ama o abismo precisa ter asas, dizia Nietzche. Não é possível amar o abismo e ao mesmo tempo esperar que ele te dê casa, comida e roupa lavada. Motivo pelo qual temos hoje em dia "entertainments" em vez de artistas. Não há nada melhor que agradar as massas com um bom molho de tomate.

Mas o homem livre, o caçador de tornados, o vagabundo chapliniano, o homem que parece nunca ter nada, o derrotado, de onde encontra forças pra transformar bolhas de ar em chocolate ao leite? Faço essa pergunta desde que me dei por gente; e ainda hoje vivo a procurar respostas na lanterna mágica do tempo. E aprendo muito com o homem simples, o homem da rua, mais do que com o burguês ou o homem da tecnologia; pois há muito sou a má consciência da burguesia perdendo as suas últimas ilusões.

Há alguma coisa que se perde pra se ganhar de novo. Em cada ilusão perdida parece haver uma contrapartida numa nova vida, de forma que pedaços vão ficando por aí, de vez em quando, contando fragmentos de histórias reais, mistura de cachoeira com um desejo de fuga, tudo dependendo da luz caleidoscópica e da projeção, nessa caverna de Platão onde estamos.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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