Caleidoscópica
Downloadiar ou não, eis a questão?

por Dulce Quental
19/04/06


Não há mal que dure para sempre, nem bem que um dia não chegue. Para ela, o inferno estava no fim e o melhor da festa ia começar. Quando seus leitores estivessem lendo essas malfadadas linhas, o pior já teria passado. Ela estaria mais velha. Acontece todo ano, mas esse ano tinha sido pior. Desde que a filha completara dez anos, há um mês, o relógio interno insistia em acelerar: a contagem regressiva iria começar; a ansiedade disparara num nível insuportável; adrenalina, cortizol, não havia droga pior. Passou a comer feito doida, a chorar como louca, a brigar com as paredes. O tempo, ela sabia, era um senhor irascível. Não arredava, nem congelava no freezer. Nada aconteceu de repente. Os fatos já vinham se insinuando lentamente. Mas o que desencadeou toda a crise pareceu ser a gota final: o iPod nano da Apple, presente de aniversário do ex-marido para a filha.

Até aquele momento ela nunca tinha colocado as mãos em um. Depois de perder alguns minutos contemplando a caixa de designer arrojado - "uma verdadeira obra de arte", pensou - se viu diante do pequeno aparelho, do tamanho de um pacotinho de Tridents; um monolito preto high-teck, com uma pequena tela na superfície superior e duas entradas, uma para fone, outra para um cabo USB. Sim, ela sabia o que era um cabo USB, apesar de não ter a mínima idéia de como fazer aquela grande pastilha preta nas suas mãos funcionar. Mas ela não podia dar mico. A filha saltitava ao seu lado, inquieta, para ver o seu mais novo brinquedo em ação. Ela tinha que ser rápida. As mães não sabem sempre tudo?

Foi assim, de repente, a partir daí, que ela percebeu: estava envelhecendo. Já não tinha a mesma curiosidade de antes, muito pelo contrário, estava desenvolvendo uma espécie de aversão e desinteresse por novidades tecnológicas. Achava tudo supérfluo e inútil. Mas esse distanciamento, ela sabia, estava levando-a uma espécie de suicídio profissional; ela, mais do que ninguém, tinha que estar a par dos novos meios de produção e difusão musical, já que era esse o seu meio de vida. No entanto, se não fosse pela filha, teria com prazer adiado mais uma vez esse encontro.

Já havia vivenciado, há dois anos, um impacto semelhante, quando depois de anos fora dos estúdios, gravara um disco utilizando os mais modernos programas de computador. Até hoje, ela se lembra do deslumbramento que sentiu, ao ver os engenheiros de som, manipularem notas e acordes alterando o desenho dos gráficos na tela do computador - cada gráfico tinha uma cor diferente, representando um instrumento gravado - a duração das notas, as mudanças de tonalidades, tudo manipulado visualmente em silêncio total. A música era um quadro abstrato composto por mágicos pintores de sons. Todas as artes numa só.

Agora, acontecia de novo. O monolito de chiclete nano a deixava extasiada com a mistura de designer arrojado, engenharia e arte.

Começou a cutucar o objeto para descobrir como funcionava, pois é claro, não havia um manual dizendo como. Manual é coisa do século IXX e XX, pensou. Quem precisa de manual para fazer um iPod funcionar? Qualquer criança sabe. Mas um indivíduo nascido na era do vinil não. Era o caso dela. Ficou procurando um botão. Algo para apertar e abrir. Mas o monolito não abria. Ele não tinha botões. On and off eram coisas de outra era. O monolito nano tinha sensores. Você passava a mão nele, e ele acendia. Você se esquecia dele, ele apagava sozinho.

Depois de meia hora descobriu: o sensor do iPod funcionava como uma espécie de mouse. Através de movimentos circulares podia-se acessar o menu, volume e todas as propriedades do aparelho. Vou confessar para vocês, foi um choque para ela.

Depois disso, tudo pareceu fácil. Ela havia penetrado no aparelho. O próximo passo era ligá-lo no computador através do cabo USB. Fácil. Ela já sabia gravar CDs em formato mp3, então copiou algumas músicas para a filha através do iTunes. Foi o suficiente. A menina saiu feliz com o seu pacote de chicletes. Não sem antes passar um dever de casa para a mãe: ela teria que baixar uns programas de rádio no UOL através do iTunes, os tais dos podcasts.

O inferno recomeçou. Ela se viu cada vez mais envolvida com novos programas, downloads, sites, fora questões éticas que lhe tiraram algumas noites de sono: "Não conheço mais ninguém que vive esse tipo de drama", pensou. "As pessoas baixam músicas sem a menor culpa. Parece que a tal lei de Gerson virou de tal maneira senso comum que todo mundo acha natural se dar bem. Ou então, acha que não está prejudicando diretamente ninguém e que se está todo mundo fazendo, não tem problema", pensou. Mas o fato é que ela se via cheia de perguntas que gostaria de dividir com mais alguém.

"Sou uma compositora que mal vive de direitos autorais. Vivo mal, vivo dura, e vivo compondo novas canções que serão gravadas por mim e por outros loucos iguais", pensou. "Essas canções serão vendidas em CDs que ninguém vai comprar, pois se comprassem eu não viveria tão mal assim. No entanto, por que comprar um CD ou uma música, se você pode ter ela de graça?", ela se indagava. "Você baixa o programa de troca de arquivos, faz uma busca rápida da música que deseja, baixa ela através de um download em MP3 e pronto. Você se torna um delinqüente virtual diminuindo as chances de um artista, como eu, sobreviver. Porque músicos, produtores, intérpretes, compositores, editores, técnicos, estúdios, e todos os demais profissionais que ganham indiretamente com a venda de um disco, ou uma música, estão deixando de receber por ela; e se o trabalho dessa gente toda não for remunerado, ele deixará de existir. Então a música que você ama, e que por isso você rouba, é a musica que você está matando. Careta esse raciocínio não é?", ela pensava, se sentindo o homem primata de Stanley Kubrick.

"Pois é. Essa tecnologia que me repele e me assusta tanto, posso dominar e aprender em algumas horas. Mas o conteúdo para colocar dentro dela, o conteúdo que vai alimentar e justificar a existência de um aparelho como esse, que é a música, a canção, esse conteúdo demora para ser feito, requer arte, requer experiência, requer aprendizado, por isso tem que ser respeitado, pois tem um valor", pensou.

"De nada adiantam grandes avanços tecnológicos se não tivermos, junto com eles, novas formas de pensar e organizar o mundo sensível. Seremos como aquele sujeito que criou a energia nuclear e depois enlouqueceu com a bomba atômica. Precisamos que a filosofia, a ética, o estudo da dialética, de todas as ciências humanas sejam mais valorizado dentro desse nosso mundo globalizado da economia, do mercado e das ciências exatas", pensou. "Mais psicanálise e menos neurociências. Mais filosofia e menos economia. Mais ética e menos estética. Mais consciência e menos displicência. Mais militância. Nem que seja num grito solitário. Num ato suicida e otário."

Ela não podia dar um tiro no próprio pé. Não podia baixar canções na rede sem pagar. No entanto, entendia a sedução que atingia milhares de pessoas: a facilidade era bastante grande. No caso de programas de computador a situação era mais séria. Os programas são excessivamente caros para a maioria das pessoas. "Acho que eu não conheço ninguém que tenha um programa original em casa. 90% dos programas de computador caseiros são piratas. Para a maioria de estudantes, professores e pesquisadores, é uma questão de sobrevivência profissional", pensou. Lembrou-se do sofrimento do amigo médico que trabalhava num hospital público, centro de referencia para doenças imunológicas. Ele era obrigado a comprar programas piratas porque o hospital não tinha dinheiro suficiente para sustentar os laboratórios de pesquisa. Era o mesmo caso da quebra de patente de alguns remédios essenciais para a população, pensou. Em alguns casos não há como negar que a questão ética tem que ficar em segundo plano.

"Mas e no caso da música, como é que ficamos?", ela se perguntava. "Adoramos a música, mas ela se tornou supérflua para a maioria das pessoas, atolada com as despesas mais imediatas. O CD é caro e não dá para ficar comprando toda hora. Então compramos somente aqueles que mais gostamos e o resto a gente vai downloadiando. É triste mas é verdade", suspirou, constatando a dura realidade dos fatos.

"Downloadiar ou não eis a questão? Ser ou não ser mais um pirata?", formulou. "É melhor procurar outra profissão, você vai morrer de fome", a melhor amiga aconselhou. "Mas e o download pago", ela retrucou. "Já é uma realidade na Europa e nos Estados Unidos", comentou. "Espero que essa onda pegue", respondeu a amiga, "mas no Brasil você sabe como é: as coisas demoram para acontecer", completou. "Mas tem muita gente perdendo dinheiro. Isso não vai durar muito mais tempo", ela falou. "É verdade"”, a amiga retrucou: "Por sinal, enquanto isso não acontece, será que você poderia baixar para mim aquela música que fecha o novo filme do Spike Lee? Como se chama mesmo? Chaiyya Chaiyya, do indiano Ar Rahman?"

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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