Caleidoscópica
Polaroides frias

por Dulce Quental
09/03/06


Escrever demanda energia, algum assunto e bastante tempo. Era o que ela tinha de sobra nesse Carnaval. Poderia deitar e rolar. Quatro dias de folia dava até para desperdiçar. Assunto é que não faltava. Idéias pareciam brotar de todo lugar. Mas ao contrário do que ela esperava nada aconteceu.

"Tudo acontece sem que a gente se dê conta", pensou. "Boas idéias, quando não vão logo para o papel, desaparecem, dando lugar a outros enredos, que por sua vez, se não forem desenvolvidos, também jamais existirão. E assim, a vida passa, desimportante, para quem não lhe dá atenção."

Depois do quarto dia, já às vésperas da quarta-feira de cinzas, ela não agüentou. Afinal, o que estava acontecendo? Tudo ia tão bem. Fugir do Carnaval, se entupir de DVDs e livros até não poder mais, parecia um plano mais do que perfeito. Até aparecerem os silêncios e a sensação de isolamento:

"Faz seis anos que eu me separei. Era terça-feira de Carnaval. Eu usava um cabelo curto, como o de um rapaz, e havia decidido desfilar com ele, atrás da primeira banda que passasse, numa espécie de manifesto pessoal, sinal da independência que eu acabara de proclamar. Minha filha, ainda pequena, me acompanhava, brincando entre os travestis que desfilavam provocando os foliões, "voyers" daquele Carnaval para entendidos. Assim como eu , ela não fazia idéia do que seria a nossa vida dali em diante. Quem imaginaria que após tantos Carnavais estaríamos tão longe do clima de festa daqueles primeiros dias?", ela pensou.

Tudo que havia agora eram flashes desconexos, polaroides frias, que não a ajudavam a sair do lugar: "Tenho visto filmes demais. Acho que estou precisando descansar", suspirou. "É preciso haver caos para dar à luz a uma estrela dançante", dizia Nietzche. "Caos havia de sobra", pensou. O que estava faltando mesmo era alguma coisa mais - fora os assuntos acumulados na porta de entrada do gerador de texto - aquilo que motiva uma pessoa a escrever e faz com que ela vença a dispersão, as milhões de outras solicitações e demandas cotidianas e encontre tempo e razão para sentar e cutucar palavras, horas e horas, até encontrar uma maneira delas combinarem melhor. "Que maneira mais engraçada de passar o tempo", pensou. "Um ponto de vista", exclamou, sem titubear. "Ter um ponto de vista e algo a dizer. Ter a expectativa de percorrer um caminho e dentro dele descobrir outros caminhos e viver experiências diferentes e aprender enquanto o caminho se faz. Parar o tempo. Fugir para um outro lugar", devaneou.

Era exatamente o que ela tinha previsto para esse Carnaval. Um mundo de aventuras diante da tela do computador. Ela mimaria as palavras e elas a transportariam para um outro lugar. Cheio de tudo aquilo que ela não consegue encontrar. Um mundo para respirar, para inspirar, para tomar fôlego e ensiná-la a suportar o que não é possível mais adiar. Quem sabe aonde ela poderia chegar, se conseguisse traçar uma rota de fuga? Encontraria um refúgio onde não se afogar?

A principio, pensou em escrever sobre os Stones; os queridos velhinhos malcriados do rock. Mas depois, de rever o texto na cabeça milhões de vezes, sem passar uma só palavra para o computador, acabou desistindo. Quem haveria de querer ler mais uma versão do mega show da banda no Rio? Tudo havia sido dito. Além do mais, pensou, ela poderia voltar ao tema sempre que quisesse, bastando apenas que a sua memória fosse ativada por um incidente qualquer; toda a exuberância daquela noite estaria de volta. Ela não precisava ter pressa. Os fatos em si nunca a interessaram. O que restavam deles, sim. Misturados às milhares de informações e experiências diárias, o ritual pagão do Stones in Rio dariam um bom caldo. Mas essa sopa ficaria pra próxima. Por enquanto, era melhor ficar calada. Ela retornaria ao tema no momento oportuno. Quando as guitarras começassem a rosnar no seu inferno.

Pensou em escrever sobre os filmes que viu, mas com todas as imagens embaralhadas na cabeça de que adiantaria? Se ela queria enlouquecer, essa era a chance: "Eu, você, João, já temos um passado meu amor, a bossa, a fossa, a nossa grande dor, e outras mumunhas mais", se lembrou da canção saudosista, de Caetano Veloso, paródia da Fotografia de Jobim. "Paródias, paródias, paródias. Roteiros imperfeitos. Mapas que seguimos, cegos de desejos, enquanto os filisteus, os seus, os meus, os nossos, saúdam o carnaval", divagou.

Não havia o que fazer. Era tempo de comemorar. E já que não havia razão, então por quê não brindar o aniversário da separação? Que fosse a seco, com dias em branco, em silencio. Foi o que ela fez, até agora.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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