Caleidoscópica
Guerrilha no Harém

por Dulce Quental
15/07/06


A indiferença é uma arma. Atinge o peito onde há uma chaga. Esconde o medo, o orgulho, a vaidade. Foge e constrói uma razão sem piedade. A indiferença veste roupas limpas, colarinhos brancos, frases prontas. Não há espaço pra contradição no mundo onde tudo é falso como um reality show.

Gosto do gosto do teu vinho mesmo quando amargo. Que tempo é esse em que estamos condenados a vagar, onde encontramos no estranho o que nos é familiar?

Ele não falava a mesma língua que ela, mas quando seus lábios tocavam seus mamilos, o que antes era só um nó no umbigo, um cordão sem pontas, se tornava um novo dialeto, um idioma unindo dois corpos como planetas distantes se encontrando em combustão, sugando toda a luz e escuridão ao redor. Assim era o amor desses dois seres, desconhecidos entre si; esses Et's com seus umbigos voltados pro céu.

Como isso aconteceu? Ele precisava da fala dela para se ver. Suas palavras eram o bisturi simbólico para as dores e os brancos que ele não conseguia penetrar, pois há algum tempo optara por não correr riscos demasiados. Para tanto, usava uma máscara sobre a pele marcada. Através dela, manipulava seus personagens como marionetes num cenário imaginário. Ele não se conhecia, por isso ela o perdoava, pois sabia que ele tinha também um desejo oculto. Qual seria ele? Que luto ele carregava sob a capa da indiferença e da frieza? Que culpa original espiava para se nutrir e se fertilizar? A potencia do mal nele criava raízes. Por isso ele narrou a história toda ao contrário. Ato falho?

E ela, por que estava ali? Fazendo o que? Vendo a bola rolar, rolar e nunca cair? Em qual perda ela se encontrava? Porque tudo que ele falava ressoava, ressoava? Eram tantas as mentiras encobertas que nelas pareciam caber enredos de mil e uma noites. Personagens vinham tomando corpo na medida em que a estória era contada, mas no final, qual seria a versão que melhor os retratava? Ela se perguntava, afinal ela era o narrador e não o ghost writer: "Faço de você também meu herdeiro e testemunha, pois ao falar de mim e do que me acontece, perpetuo a tradição oral dos meus antepassados, contadores de histórias, fofoqueiros de ocasião. Mas faço-o usando os recursos da modernidade. Não sou analfabeta, sei batucar com meus dois dedos o passaporte da minha alforria", ela sussurrava baixinho de modo que mais ninguém no Harém dele escutasse.

É meus caros amigos: ela sem saber caíra no harém de um príncipe, um homem das cavernas moderno. De nada adiantariam seus sensores simbólicos diante de tamanho aparato tecnológico. Ela estava fadada a fracassar mesmo que não desejasse, pois onde encontraria lugar para colocar a sua escova de dentes? E as meias sujas, e o lixo? Aonde diabos esse homem coloca o seu lixo, a sua bagunça, a sua angústia, o seu medo, a sua fragilidade? Quem sabe se ele se mostrasse também humano ela não encontraria um espacinho aonde pudesse caber também a sua força? Pois até agora ela precisava ser a problemática, a difícil, a que está fora do mundo, para que ele se sentisse seguro do seu lugar.

É meus caros amigos, não é isso que acontece em todas as relações sociais? Temos que desempenhar nossos papeis para que todos se sintam seguros dentro dos seus. E dá-lhe um tal de empurra merda uns pra cima dos outros. Quem sabe não cola? "Apropriar-se, apoderar-se, subjugar, dominar são caracteres da força ativa. Apropriar-se quer dizer impor formas, criar formas explorando as circunstâncias". Assim funciona o ciclo da vida. A aparente cadeia alimentar dos fortes devorando os mais fracos, embora muitas vezes sejam os fracos os verdadeiros agentes de transformação e os chamados fortes, as forças mais conservadoras, como bem preconizou Nietzsche.

Você vai ao psiquiatra e ele tem que te medicar porque você é o paciente e ele é o médico; até que você o convença de que na verdade está lá para conhecer melhor as suas fragilidades e limites; que você prefere conviver com a sua dor, do que se entorpecer de drogas tranqüilizadoras que vão transformar a sua mente numa geléia, num pastiche bem adequado ao discurso normalizante.

O mesmo acontece na escola da sua filha. Você é chamada para uma reunião com as professoras dela e compra o grilo que a menina tem problemas de aprendizado porque, segundo a professora, distorce a realidade - na opinião dela a versão da criança não é a verdadeira, como se a realidade não fosse uma questão de ponto de vista; Einstein; a lei da relatividade, dois corpos não ocupam o mesmo espaço; nem pensar. No final fica tudo bem, você tranqüiliza os professores de que eles estão fazendo um bom trabalho e acaba até escutando que a sua filha é genial; mas para tanto teve que desempacotar o discurso que tentaram te empurrar goela abaixo.

O mesmo acontece se você se meter a querer ser um cidadão menos egoísta e procurar fazer algum tipo de trabalho social com meninos de rua. É impossível não perceber a discrepância entre os fatos narrados por meninos, pobres, negros, analfabetos, sem família e sem direito à palavra e a versão oficial de educadores, muito mais preocupados em classificar "os infelizes" como doentes mentais e drogados. Para tanto, não se intimidam em fabricar fatos e produzir discursos que justifiquem a incompetência, despreparo e responsabilidade de um poder público, que deveria oferecer condições mínimas para que esses menores pudessem recomeçar as suas vidas, em vez de jogá-los em abrigos públicos que funcionam como verdadeiras prisões.

E se no final de tudo isso, você ainda escutar do tal príncipe desencantado que você está fudida porque está fora do centro do poder, do sucesso e do dinheiro - e por isso desclassificada para ser objeto do desejo de alguém - talvez você possa suspirar e pensar que "luxo é ter recursos para melhorar o mundo que nos cabe, e recurso não é só money: é atitude e informação." E se mesmo assim, isso não for suficiente para convencer o rapaz, que teve uma educação, segundo ele, melhor do que a sua, talvez seja melhor mesmo você chutar o balde e assumir que pra ser quem você é, talvez seja necessário estar exatamente onde você está: perto dos loucos, das crianças e dos meninos de rua.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com


Leia as colunas anteriores:
01 - Em Paris, Cancun ou Rio, a revolução somos nós!
02 - O Pensador Independente
03 - Pra Falar de Cinema
04 - Um Fim de Semana nos Anos 80
05 - Patrulhas da contra-cultura
06 - Por que gostamos de Woody Allen
07 - Cinema, morte, êxtase, provas de amor
08 - As Dores do Crescimento
09 - Desejos de Mulher
10 - Os Sonhadores
11 - Humano, Demasiado Humano!
12 - Como se renovar sem se tornar cinza?
13 - Se até o king-kong me entende por que os homens não?
14 - "2046" - Overdose de ficção e realidade
15 - A Voz da Chuva
16 - O Ponto Final de Woody Allen
17 - Polaroides Frias
18 - Confissões de Divã
19 - Downloadiar ou não, eis a questão?
20 - Ideologia, não quero uma pra viver!
21 - Uma Impossibilidade Possível
22 - Educação Sentimental
23 - Um Gato Aos Pés do Rio
24 - Saudades de Dylan e Caetano