Caleidoscópica
Tragédia Ou Comédia, "The Thrill Is Gone"
por
Dulce Quental
03/01/07
"The Thrill is Gone", sussurra Chet Baker fazendo a ficha cair mais rápido que um tiro no coração. Corro pro "Collins Cobuild", "English Language Dictionary" pra saber o sentido exato da palavra "thrill", embora eu já saiba exatamente o que ela quer dizer: "Posso ver nos seus olhos, posso escutar nos seus sinais, sinto o seu toque e realizo, a excitação se foi"; palavras e música de Lew Brow e Ray Henderson; gravações na voz de Nina Simone, Julie London e Chet Baker, entre outros.
"Cabe bem nesse momento', pensei, "uma boa canção para se ter no repertório": "Esse é o fim, então porque insistir. As noites são frias quando o amor é velho. Eu estou nos seus braços e você está me beijando. Mas parece estar faltando algo nos seus beijos. O amor que nós conhecemos é só uma memória. Ele se transformou numa comédia. Agora eu não sou interessante pra você, a excitação se foi."
Fico pensando na tragédia grega que se tornou a minha vida, apesar dos lances de comédia e melodrama. Pareço mais com aquelas heroínas gregas tentando consertar o impossível atingindo o inatingível, do que com a mocinha ingênua e virgem esperando ser salva pelo príncipe encantado. Pobre do príncipe que não entendeu nada. Pobre da princesa eternamente idealizada no seu imaginário. Pois o buraco da vida se mostrou mais embaixo.
Estava na hora de desistir para não morrer. Para não se deixar morrer. Para não se deixar ser assassinada por um príncipe-sapo ou um rei maluco. A minha razão estava em outro lugar. A minha briga era outra. Eu havia abandonado o meu campo de batalha.
De volta a ele, na batida do meu coração, começo a ouvir de novo a minha canção. E ela toca uma melodia amorosa e não melosa. Ela quer romance e aventura, não estabilidade. Um lugar aonde possa caber tudo menos caretice. Nas minhas escolhas nunca couberam saídas fáceis. Faz tempos que me comprometi com alguma coisa muito além de relações estabelecidas. Padrões de normalidade não me interessam. Desculpas baratas não me interessam. Valores burgueses não falam de mim. No lugar do vazio do amor só cabe a criação. Só a criação está à altura do amor. Só a criação é capaz de responder a adicção que a droga do amor produz. O que colocar no lugar de momentos perfeitos? O que pode substituir o ar rarefeito do encontro amoroso, a nudez dos corpos e almas imperfeitas, o estado de rendição dos egos?
O amor é uma droga. Nossos corpos produzem a droga. Quando o efeito dela passa o corpo pede mais. E é aí que começam os problemas. Há aqueles que tentam substiui o "manque", a falta, o vazio, com toda sorte de coisas. Consomem, traem, se entopem de comida, malham, bebem e se drogam pra esquecer. E há aqueles que sentem a falta. Sofrem a falta. Falam sobre a falta. Observam a falta. Testemunham o que ela lhes traz e então criam. Desenham, pintam, cantam, escrevem, compõem, filmam. Não deixam de sentir. Não abortam o sentimento. Não tentam diminuir a razão que provoca os sentimentos. Encaram o sentir como uma coisa boa. A dor como uma coisa que faz parte do amor. Como a outra face do amor. Pois não se pode ter amor todo o tempo. Não se pode viver só no prazer. Amor e dor são faces de uma mesma moeda. Abolir um será excluir o outro. Se recusar a amar é se recusar a viver. Quando desejamos, entramos no circulo do tempo e não podemos controla-lo, nem aos seus acontecimentos. Podemos estar fora do tempo apenas quando abrimos mão do desejo. Quando não desejamos nada. Quando estamos apenas a observar a vida de fora. Assistindo a novelas ou lendo revistas de celebridades. Imaginando como é ter uma vida perfeita, um amor perfeito, um nirvana na terra.
Eu espero que em 2007 a vida nos traga novos brinquedos. Que nós encontremos novos amores pra partilhar nosso fogo. À nós dedico essa canção que escrevi, quando por fim consegui esquecer o amor que te dei e parti.
Odisséia
Aqui estamos nós e a nossa odisséia querendo partir
Testando a vontade de viver agora aqui e alí
Sem pressa sem medo sem mais do que a hora está a pedir
Vivendo o instante que rola num tapa no tempo de ir
Não vou chegar atrasado nem olhar pro lado se eu já sou
Vou estar bem pertinho sentido o presente no que eu te dou
Tendo você de vez em quando benzinho pra me acender
Já não esquento se soprar o vento e o fogo morrer
E quando o desejo vencer o sono não vou me distrair
Nem perder o rumo do meu destino pra te merecer
Sem lances sem dados não quero um trono pra me sentar
Se eu já não sinto o que falo, envelheço, sou falho, não posso te amar
Se essa odisséia é uma quimera possível na terra eu quero viver
Ou se é mais uma fera indomável de se alcançar não quero saber
Tendo você de vez em quando benzinho pra me acender
Já não esquento se soprar o vento e o fogo morrer
Dulce
Quental é cantora e letrista.
Email: contatodulce@dulcequental.com
Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com
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