Caleidoscópica
"O Expresso do Oriente Leva Tanta Gente"
Eu Já Te Contei?

por Dulce Quental
13/10/06


"Eu tive fora uns dias numa onda diferente. E provei tantas frutas que te deixariam tonta. Eu nem te falei da vertigem que se sente. Eu nem te falei. O Expresso do Oriente levou tanta gente que eu até perdi a conta", preconizava Herbert Vianna, ainda há léguas de distância do futuro que nos esperava.

Eu, sentada ao seu lado, nos estúdios da EMI, na velha Mena Barreto, em meio às paredes de feltro vermelho; testemunhas silenciosas da nossa voz e de tantos outros: João Gilberto; Elis; Vitor Assis Brasil e seu quinteto; já era uma sobrevivente.

Ali, onde Renato Russo desenhou os segredos do seu violão; onde os Paralamas jogaram futebol; onde Simone cantou quase nua; eu gastava mais uma vida das minhas sete. Foi ali que cantei pra Cazuza Gato de Sete Vidas, uma canção inédita que falava de um nós, que tanto podia ser eu quanto ele; mas que ele achou que era mais ele.

É claro que eu não era a bruxa que ele pensava que eu fosse pois ainda não sabia da sua doença nem da viagem à Boston para tratamento. Mas nossas vidas eram tão parecidas e entrecruzadas que bem que poderia ser.

Estávamos em 1988. Pra mim já passara o pior. Numa espécie de antevisão, eu já começara o meu ingresso no estaleiro. O medo me protegera. Mas eu jamais estaria preparada para assistir a queda das melhores cabeças da minha geração. E elas foram caindo às pencas. Muitas, sem nem terem tido a chance do reconhecimento.

Muitos verões depois aqui estou eu; num ritual de iniciante; cantando nos porões de uma pequena livraria no coração de Ipanema; na esquina da rua onde Tom encontrou Vinícius; há duas quadras do 107 da Nascimento Silva; rua onde morou Vínícius, onde mora Carlinhos Lyra; e onde eu moro.

Uma delícia. Jamais imaginei que eu poderia um dia ser tão feliz fazendo música. Com um trio dos sonhos; silencioso, sofisticado, simples. Sem muito dinheiro, sem muito barulho, sem grandes mídias. Confortável, como o prazer quando chega. Sem pressão.

"É assim que eu gosto, baby, que eu sempre gostei mas não sabia", ela dizia para si mesma sabendo o quanto custara e ainda custaria o preço de mais uma ousadia. "A vida não perdoa. Os tempos são de covardia. Não há lugar pra tamanha simpatia."

"Eu sei que não vai durar, mas e daí? Pouca gente vai ver, o que me importa? Ninguém pra bajular e aplaudir, ainda bem! Tenho a chance de crescer em silencio. Tenho a chance de amadurecer minha semente. E se um dia ela estiver madura, tenho certeza que os seus frutos terão o sabor da eternidade. Eu não tenho mais pressa. Corri demais. Peguei atalhos demais. Tive sorte demais. Perdi tempo demais."

"O Expresso do Oriente passa rápido, passa rente, e leva tanta gente, que eu até perdi a conta", eu já te contei?

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: contatodulce@dulcequental.com

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