Caleidoscópica
A realidade imitará a ficção?
por
Dulce Quental
24/09/06
Estou com saudades da minha antiga vida, dos cabelos que ainda não cortei, da minha antiga inocência, das ilusões que sonhei. Quando foi mesmo que acordei? E agora que só tenho o presente dos dias, como viver? Como alimentar a esperança na corrida do tempo; na ausência de silêncios; com a interferência de vozes que não são minhas?
Alguém do outro lado da tela vive a mesma agonia. E por também não encontrar razões fáceis, rompe o silencio e a distancia jogando perguntas na minha: como se consegue esperança?
Essa foi à pergunta que um supereconomista fez ao público depois de falar horas sobre o fim das utopias. Acho que essa é a grande questão dos pensadores atuais. Como fazer as pessoas continuarem a trabalhar, a respeitar as leis, a viver com tão pouco, quando não se tem por que nem razão para tal.
Segundo o palestrante, o mundo como o conhecemos hoje não é muito diferente do dos últimos 300 anos. Os mesmos países que protagonizaram a história, com suas guerras e revoluções, continuam a comandar os principais acontecimentos. Seja em Darvos, na Suíça, ou nas reuniões do G7, o mundo é controlado por meia dúzia de grandes corporações. Empresas multinacionais com tentáculos espalhados por todos os países.
Não importa muito se hoje já não temos a antiga polarização que separava o mundo capitalista do comunista. Hoje, a bipolaridade é outra. O aparthaid não é político, mas econômico. Em nome da tal globalização o mundo ficou mais próximo, mais misturado, mais homogêneo, pelo menos virtualmente, pois o que na verdade observamos é que a distância entre os paises ricos, aqueles que sempre foram os agentes principais da história, e os países pobres, aumentou significantemente.
Nosso dinheiro vale menos do que o deles. Para sair do Brasil, numa simples viagem de lazer, temos que passar por um verdadeiro enduro. Entrevistas em consulados, vistos especiais, comprovantes de renda e moradia fixa, etc... Ao chegarmos nos aeroportos internacionais, caso não tenhamos privilégios especiais, somos considerados suspeitos, até que se prove ao contrário. Somos culpados até provarmos que temos dinheiro, estamos com reservas em hotéis de luxo, temos data e passagem de volta já marcada; isto é: não somos emigrantes fugindo dos nossos países. Mas tudo isso só pra quem não tem posses, pois no Brasil a maioria sequer tem a chance de pegar um avião para um outro continente.
"Alguma coisa está fora da ordem. Fora da ordem mundial", dizia o mano Caetano há uma década atrás. Enquanto o "cinema catástrofe" americano nos ensina, o que nenhuma teoria é capaz: colocar a visão em perspectiva.
Num desses filmes, em que a gente sequer lembra o nome, a América é vítima de um super aquecimento da Terra. Em virtude do derretimento das camadas polares e da dessalinização do mar, o nível dos oceanos aumenta provocando um desequilíbrio total no clima. Para salvar a população, o governo americano é obrigado a pedir ajuda aos países pobres. Grande parte da população americana é deslocada para as regiões mais quentes do México e da América do Sul.
Não deixa de ser uma ironia que na ficção americana esses países prestem ajuda e acolham a população de "refugiados americanos", pois sabemos que em situação inversa o mesmo não aconteceria. Dificilmente teríamos ajuda. Como já não temos. Hoje o Brasil, para conseguir salvar milhares de doentes de Aids, é obrigado a ameaçar a indústria farmacêutica multinacional, com a quebra da patente de remédios que ele mesmo fabrica. O que demonstra que a política da reciprocidade para os americanos só funciona para eles.
Um bom exemplo disso aconteceu esse ano quando assistimos a América enfrentar uma das piores temporadas de furações da sua história. Vimos à cidade de Nova Orleans submergir diante dos nossos olhos. Por se tratar de uma região onde a maior parte da população é pobre e negra o governo americano demorou a prestar socorro e a tomar as providencias necessárias para evitar danos maiores. Nesse sentido, imaginar que num futuro próximo a profecia relatada no filme possa se realizar, não é fantasia nem especulação.
Por isso, o Brasil como nação, com a extensão territorial e as riquezas naturais que possui, tem que fazer jus ao seu poder. Não podemos submergir nem aceitar acordos econômicos que comprometam a "saúde" do país. Como faremos para convencer a população a votar de novo num governante de "esquerda", um governante comprometido com a questão social, que respeite o valor do trabalho e não a razão dos banqueiros e investidores internacionais? O que diremos aos milhares de jovens que saem das universidades, aos que trabalham 8 horas por dia em sub empregos pra sustentar suas famílias, aos desempregados nas filas das agencias de emprego?
Se já não existe o trabalho como o conhecemos e hoje somos todos informais, vivendo de expediente, fazendo um pouco de tudo para fechar as contas, como vamos criar nossos filhos e educa-los? Para que mundo? Para serem escravos brancos da América e Europa?
E eles, quando as bombas dos radicalismos começarem a cair destruindo milhões, ou as catástrofes naturais do desequilíbrio criado por eles mesmos se acentuarem, para onde correrão? A realidade imitará a ficção?
O pensamento é perigoso. Um pensador tem uma grande responsabilidade ao lançar idéias no ar. Idéias podem derrubar presidentes, explodir embaixadas, destruir pessoas e sonhos. Mas a esperança é difícil de construir. Requer mais que palavras.
Por isso ao tentar responder ao meu interlocutor, do outro lado da tela do computador, me peguei pensando em dignidade, em simplicidade, em união, em escutar a razão do outro, em sair do estado de narcisismo utópico, em romper o isolamento e as relações promiscuas, em romper relações de simbiose doentias, em agregar diferenças, em aceitar limites, em transparência, em ética, em projetos coletivos, seja no campo social, seja no político; ou nas artes, em alguma esfera da comunicação, e porque não, agora e aqui, na rede, onde não há um poder mas poderes, pensamentos, tentativas de se criar uma nova ordem social a fim de se romper com esse antigo padrão que nos faz escravos de uma civilização fadada à extinção. Pois não haverá paz em nenhum lugar no mundo enquanto houver exclusão. Por uma nova arte da ação.
Dulce
Quental é cantora e letrista.
Email: contatodulce@dulcequental.com
Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com
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