Caleidoscópica
Amantes
Inconscientes
por
Dulce Quental
19/02/07
Os espectadores vão debandando. O filme chega ao fim só com a metade da platéia. Apesar dos meus joelhos - mudei de lugar colocando-me ao lado do corredor logo que as cadeiras vazias começaram a vagar - resisti bravamente. Não havia lido nada sobre "Amantes Constantes". Tinha apenas a recomendação de um amigo: "o filme era parecido com as minhas canções e eu iria me reconhecer nele". Agora, depois de viajar nas três horas de projeção, posso entender por que meu amigo saiu de São Paulo só pra me dizer isso. Ele não só foi atrás da única copia distribuída no Brasil, cumprindo o itinerário de todo amante de cinema, como sabia que eu, por ter vivido em Paris aos vinte anos, iria amar o filme.
"Les Amants Réguliers" é o primeiro filme do cineasta Philippe Garrel lançado no Brasil. Para quem não conhece, Garrel é da mesma geração de Godard e Bertolucci. Não há como não sentir a presença desses dois monstros do cinema durante a exibição de "Amantes". Eles estão lá, seja através da presença de Louis Garrel, filho de Philippe e também protagonista de "Os Sonhadores", de Bertolucci, seja pela própria maneira de filmar, que nos remete ao estilo de Godard. Mas são apenas citações, pois no nosso imaginário, Garrel se fixa único e inaugural; sensação parecida somente experimentada com "Limite", de Mario Peixoto, e com "Encouraçado de Potenkin", de Sergei Eiseintein; pois "Amantes Constantes" é cinema na veia.
Você fica sem saber se o filme foi desenterrado de alguma cinemateca poeirenta ou se foi recém filmado. Você perde qualquer referencia de tempo. Aos poucos vai sendo transportado para a Paris de 68/69 através de uma atmosfera onírica que se constrói sem efeitos especiais, muitos cortes ou diálogos contundentes. É apenas quando algumas citações aparecem que nos damos conta que o filme foi feito hoje. E é aí então que se estabelece a força da vinculação do tempo passado com o tempo de agora, aumentando a sensação de estarmos lá e aqui como se tudo estivesse acontecendo pra nós .
A narrativa é lenta. Nela o espectador está lá, não para assistir, mas para testemunhar; não para ver, mas para experimentar. Como Garrel consegue isso? Eu diria que com aquilo que os irmãos Lumière nos revelaram: o movimento da luz.
A luz através da fotografia ganha em "Amantes" a importância de estrela; pois é através da maneira como a luz bate na superfície do que é filmado que as imagens se formam e se revelam pra nós. Como bem salientou o "não-critico", como ele mesmo se intitula, Bernardo Krivochein, ao escrever sobre o filme: "o que se permite iluminar, dane-se o naturalismo, no contraste do P&B! É tudo aquilo que se esconde ver, ou melhor, lembrar! Quanto mais você se recorda, mas formas cortam o quadro - e mais luz engole um bom numero de legendas". Cabe aqui ressaltar que a cópia brasileira engole algumas legendas, o que como diz o Bernardo, não faz diferença nenhuma. Muito pelo contrário, contribuindo mais como um efeito e realçando o efeito do tempo passado.
E é esse tempo passado que é lembrado, e porque não, revivido
por cada um de nós. E se existem aqueles que não vivem, nem
sentem nada em "Amantes", é porque não há nada para eles ali.
Nada o que buscar, nada o que experimentar. A luz só reflete
em algo que existe, registrado na memória do corpo e dos sentidos.
É o que Garrel nos faz lembrar ao colocar na boca de um dos
seus personagens uma reflexão que só poderia ter sido produzida
por alguém que tivesse vivido a desilusão com as utopias que
nós vivemos. Pois se um dia desejamos fazer a revolução com
o proletariado, hoje já podemos dizer que seria melhor quem
sabe fazê-la apesar dele. Não é o que as massas nos fazem desejar
hoje, agora que as conhecemos melhor?
Enquanto houver jovens morrendo de crack, êxtase e drogas sintéticas em acidentes de carro e mortes estúpidas poderemos sempre refazer a pergunta. Quem se dispõe a ficar quinze horas numa "rave" num mundo como o de agora é capaz de fazer a revolução? A contemplação exige um estado de entrega. Mergulhar num outro tempo. Dançar. Cantar. Fumar. Se apaixonar. Morrer e lutar. Nesse sentido, "Amantes Constantes" é muito mais do que um exercício estilístico; é o próprio desejo em ação. Desejo vivo em Garrel, em mim, em você, e nos jovens que morreram em mais um acidente de carro no Rio; mesmo que inconsciente. Amantes Inconscientes poderia ser um bom titulo pra nós.
Dulce
Quental é cantora e letrista.
Email: caleidos@uninet.com.br
Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com
Leia as colunas anteriores:
01 - Em Paris, Cancun ou
Rio, a revolução somos nós!
02 - O Pensador Independente
03
- Pra Falar de Cinema
04 - Um Fim de Semana nos
Anos 80
05 - Patrulhas da contra-cultura
06 - Por que gostamos de Woody
Allen
07 - Cinema, morte, êxtase,
provas de amor
08 - As Dores do Crescimento
09 - Desejos de Mulher
10 - Os Sonhadores
11 - Humano, Demasiado Humano!
12 - Como se renovar sem se tornar
cinza?
13 - Se até o king-kong me entende por que os homens
não?
14 - "2046" - Overdose
de ficção e realidade
15 - A Voz da Chuva
16 - O Ponto Final de Woody Allen
17 - Polaroides Frias
18 - Confissões de Divã
19 - Downloadiar
ou não, eis a questão?
20 - Ideologia, não quero uma pra viver!
21 - Uma Impossibilidade Possível 22 - Educação Sentimental
23 - Um Gato Aos Pés do
Rio
24 - Saudades de Dylan e Caetano
25 - Guerrilha no Harém
26 - Como Caem os Amores
27 - Palavras Vivas Em Sentimentos de Pedra
28 - A realidade imitará a ficção?
29 - "O
Expresso do Oriente Leva Tanta Gente",
Eu Já Te Contei?
30 - Sexo, Drogas e Bebop
31 - O Poder do Desejo
32 - Tragédia ou Comédia
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