Caleidoscópica
A
resistência de Carly Simon
por
Dulce Quental
25/06/07
Estou perdidamente apaixonada pela voz de uma mulher. Melhor seria dizer, pela voz de uma mulher que canta como quem compõe. Estou falando de Carly Simon em "Into White", seu mais recente álbum, que chega sem muito alarde ao mercado brasileiro; não lembro de ter lido muita coisa sobre o lançamento de "Into White", um disco concebido totalmente na contramão do mercado.
Oferecer à escuta interna e à própria voz, alguns dos maiores clássicos da musica folk é tarefa que muitos almejam mas poucos conseguem. Carly Simon, talvez, por ter intimidade suficiente com a arte de fazer canções, e não ser uma picareta, tira o desafio de letra.Muitas dessas canções, que já foram gravadas à exaustão, aparecem revigoradas na voz dela.
A primeira audição é um choque. O universo sonoro de Simon gira de tal maneira em outra rotação que não há como não sentir um certo estranhamento, uma "tasca" de melancólica "deprê", eu diria, misturada à beleza incomum de melodias e arranjos, quase todos de uma simplicidade estonteante.
"Into White", célebre canção de Cat Stevens, composta na década de 70, abre o disco, produzido pela própria Carly, cercada pelos filhos, Ben e Sally, e pelo atual marido, David. O álbum tangencia a tradição das composições "folks" originais, sem no entanto engessá-las em velhos formatos, o que permite à intérprete gerar novas releituras. Talvez esteja aí, a chave para entender porque "Into White" não se parece com um disco de "covers", embora a maior parte das canções não seja original.
Das 14 que atravessam o álbum algumas se destacam pelo traço interpretativo. São elas: "You can close your eyes", do ex-marido James Taylor - não há quem tenha vivido no século passado e não a conheça; "Into White", de Cat Stevens - faixa que dá titulo ao álbum; "Blackbird", de Lennon e McCartney; a antológica canção celta gravada pelos irmãos Garfunkel, "Scarborough Fair" - em versão "new age" com direito a flautas e percussão; "Quiet Evening" - inédita composta por David, o atual marido; além de "Manhã de Carnaval", de Luiz Bonfá, cantada à capela. Mas é na parceria de Ben Taylor e David Saw em "I will Just Remember You", que Carly Simon reencontra a sua mina de ouro e nos oferece o seu jardim secreto.
Ultima faixa do álbum, "I will Just Remember You", é enfim a recompensa que recebemos pela travessia, onde todo o vazio parece se encher de luz: "Eu não lembro dia e noite. Não lembro das brigas.Não lembro o que fazer.Só lembro de você", canta ela, tendo como base um piano, que em alguns momentos lembra Jobim, pela belíssima melodia e harmonização. Para enfim concluir: "Não posso trazer de volta a brisa de verão. É tempo de ir viver a vida do meu jeito. Algum dia eu vou acordar revigorada. Aí vou me lembrar dos céus de azul, e da graça dos garotos que eu quase conheci".
Música com um alto poder de cura; xamântica. Não trás o amor perdido mas age como um antiinflamatório contra amor-próprio ferido e toda sorte de mal estar: surdez, indiferença, egoísmo, egotismo, burrice. Deve ser escutada de preferência a dois, debaixo do cobertor, no frio do inverno ou numa manhã ensolarada, de frente pro mar. Pode ser também apreciada no andar da bicicleta, plugada no ipod, ou na cama, antes de dormir. Não serve pra fazer ginástica nem correr. Não dá pra dançar, só se for a dança dos corpos nus sob o lençol.
Saia correndo de casa e compre "Into White" para dar de presente para alguém que você ama de verdade.O efeito será lento mas devastador.
Dulce
Quental é cantora e letrista.
Email: caleidos@uninet.com.br
Blog: http://caleidoscopicas.blig.ig.com.br
Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com
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