Caleidoscópica
Como ser forte e sozinho num mundo como esse?

por Dulce Quental
01/06/08


“É preciso que se faça ouvir a voz dos vencidos da história”
Walter Benjamim

“Nós somos projetos e por isso precisamos de liberdade e de espaços abertos”
Heidegger

“Contra a intolerância dos ricos e a intransigência dos pobres a exuberância dos livres”.
“Eles me enxergam onde eu não estou, atiram onde eu não sou, e o tiro não me mata”.
Eugênio Bucci

No domingo de uma noite chuvosa, depois de uma sessão de cinema, após um ano de ausência volto a escrever aquilo a que dei o nome de Caleidoscópicas, Crônicas da Internet. Por que parei tanto tempo; como consegui estar em outro lugar e não aqui; onde me assaltaram outros movimentos; de quais entretenimentos precisei me incumbir. Não sei, só sei que enquanto as Crônicas de Narnia rolavam na tela do cinema, um outro enredo parecia desenrolar o meu pensamento de modo que, onde antes só havia um vazio, agora eu encontrava um lugar. “Preciso aprender a deixar a mente em repouso”, pensei, “informação demais pode levar a um esgotamento mental. Será essa a razão da enxaqueca monstruosa dos últimos dias”, eu me perguntava, já prevendo a resposta.

O que nos conecta? O que nos separa? A sensação de isolamento só persiste quando não nos permitimos ser tocados por alguém. Pelas palavras de alguém. Quando sentimos que nada, nem ninguém será capaz de dar conta, de entender o nosso ponto de vista. Quando nos sentimos isolados no nosso modo de entender o mundo. Mas aí acontece o inesperado. Alguém consegue furar a barreira de isolamento e nos tirar de nós mesmos; e consegue isso, porque tenta entender o que sentimos. Alguém que se propõe a sair de si mesmo e escutar o outro. Alguém que reconhece a dor e a razão do outro. Alguém principalmente que diz: “me machuca ver você assim. Quando você sofre, eu sofro também.” (It hurts me too - Bela canção de Bob Dylan, especialmente na gravação de Karen Dalton)

Se você tem alguém com quem partilhar a vida nesse nível de intimidade, mesmo que não seja da sua família, um amigo, ou amiga, com quem você pode se abrir e conversar, você tem tudo. Basta um só amigo, em apenas um bom encontro, ou um telefonema no fim da noite, pra mudar a sua energia e fazer a alquimia; pois o isolamento só sobrevive no isolamento. Quando saímos dele toda a sua força se esvai.

Um brinde à amizade. A cumplicidade da amizade. Ao efeito sadio das pequenas confissões. Vamos investir mais nos encontros. Ver menos tv. Trabalhar menos. Ser menos máquina. Mais humano. Mais coração. Menos ciência exata. Mais emoção. Mas não a emoção barata do sentimentalismo covarde; das chantagens emocionais; da vitimização; do amor servil. É preciso saber cultivar e fazer crescer as verdadeiras amizades. São elas que dão sentido à vida, que só vale a pena ser vivida se puder ser compartilhada.

Eu proponho então que façamos um brinde às boas amizades. Vamos nos embebedar de sentido, nos entorpecer de conteúdo; gerar textos que nos façam tecer uma rede de resistência; uma rede de proteção à frieza e indiferença estudada de um sistema que todos os dias, invade, isola, exclui, corrompe e destrói os nossos sonhos. Só com a nossa capacidade de imaginar uma realidade diferente é que temos a chance de mudar o que esta aí. Para isso, basta apenas uma conversa entre dois amigos. Dois amigos são uma pequena célula de resistência. Uma pequena célula revolucionária. Quando foi mesmo que deixamos de acreditar nisso? Por que é que no auge da ditadura os regimes autoritários impediam as pessoas de se reunirem? Pois agora, não há nada aparentemente visível que nos impeça de estarmos juntos, de falarmos uns com os outros. No entanto, isso nunca foi tão difícil. Você já se perguntou por quê ? Por que vivemos num sistema em que nos comportamos como anêmonas, independentes fisicamente, porém igualmente descerebrados, despossuidos do nosso corpo e do nosso desejo, a serviço de um mundo maquinico que se reproduz através de nós? Parece ficção científica e é. O futuro é agora. Você é vivente ou humano?

Só tem direito de se nomear humano aquele quem tem a coragem de ser livre. Isso me lembra o super-homem nietzscheniano, e um pouco também, o andróide de Blade Runner, de Ridley Scott. A propósito, Nietzsche lutou a vida toda contra dor de cabeça, que ele dizia ser uma espécie de dor de parto, o conflito que se dava dentro dele entre as forças ativas e passivas. Zaratustra nasceu de dores insuportáveis.

Pensando nele, chego a Foucault e ao biopoder. Esse poder que se reproduziu e se instalou em todas as instâncias das nossas vidas e dos nossos corpos. E me dou conta que é contra esse inimigo oculto dentro de mim que eu luto; contra o que há de servil, passivo e omisso dentro de mim. O que eu ainda não sabia é que essa batalha não pode ser ganha sozinha. Para enfrentá-la é preciso amigos, aliados, companheiros; e não, analgésicos, drogas e gadgets. Contra a servidão voluntária é preciso criar uma nova configuração do humano. Mas isso dá trabalho. É preciso ser criativo. E ser criativo hoje é persistir no esforço de superar a intolerância; no esforço da comunicação; no esforço do encontro e da amizade; pois “a intolerância é a tragédia do não diálogo”. (Eugencio Bucci no Ciclo de conferências Vida Vício e Virtude - ABL RJ.)

Talvez um pouco por isso eu venha procurando na filosofia, mais do que em qualquer outra disciplina, o diálogo que não encontro em outras instâncias da vida, inclusive na expressão artística, um campo onde o discurso passou a reproduzir a lógica de um sistema impregnado de formas viciosas e repetitivas.

Por isso, temos o dever de desconfiar. Unirmos-nos pra desconfiar. Unirmos-nos pra conspirar contra aqueles que reproduzem o discurso chapado da imagem; as narrativas e os gestos que representam à violência e tiranizam o imaginário. Como disse Eugenio Bucci: “num mundo onde reinam as imagens e o nosso conhecimento é inadequado, tudo tem que ser unívoco; bidimensional; certo; raso; fácil; direto; sem contradições; é da natureza da imagem ser chapada; por isso tudo tem que reproduzir a lógica binária das máquinas. Ser anjo ou demônio; bem ou mal; tudo precisa dizer o que é e o que está fora”.

Num mundo como esse como ser forte e sozinho?

Como nos lembrou Marcelo Coelho, em uma palestra sobre Amizade, ou teria sido Bucci, na conferencia sobre Intolerância, não importa: "a luz que se acende nos encontros é a única saída possível, porque o entendimento não é algo que se constrói sozinho, mas no confronto e no diálogo com o outro e no embate das diferenças. A razão é produto da interlocução." É ela que nos faz verdadeiramente humanos e não anêmonas.

Dulce Quental é cantora e letrista.

Email: caleidos@uninet.com.br
Blog: http://caleidoscopicas.blig.ig.com.br

Saiba mais sobre a cantora no www.dulcequental.com


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