Balanço: Festival DoSol 2014, Natal

Texto e fotos por Marcelo Costa

O rock and roll, esse velhinho safado, sofreu um bocado em 2014. De velhos roqueiros brasileiros bradando uma inocência política de forma abestalhada em redes sociais; de velhos jornalistas colocando neon no clichê “o rock morreu” para tentar chamar a atenção (para si, não para a música); de bandas toscas hair metal tocando covers rock and roll em mega festivais e grupos sertanejos turbinados por guitarras saindo de programas de TV para os braços de uma audiência sem culhão, o rock and roll não teve um ano fácil.

Por tudo isso, é extremamente revigorante pisar o território de um festival de música barulhenta que exibe autenticidade, maturidade, respeito e é repleto de boas surpresas. Por três dias em Natal, capital do Rio Grande do Norte, o Festival DoSol, em sua 11ª edição anual, mostrou tudo isso e um pouco mais para um público de mais de 10 mil pessoas, que se deslocou para a Rua Chile, no bairro histórico da Ribeira, para uma maratona de mais de 50 shows encabeçada por nomes como Céu, Matanza, Pitty e o destaque local, Far From Alaska.

O formato do festival é um dos seus principais cartões de visita e diferenciais em relação a outros festivais ao redor do país por se basear em uma área de revitalização municipal, o bairro da Ribeira, segundo bairro formado pela cidade (hoje Natal tem 36 bairros), que passou por um período de decadência (como a maioria das áreas centrais de cidades ao redor do mundo) e, desde 1990, vem sendo revitalizado com recuperação das fachadas dos imóveis da Rua Chile, ampliação da iluminação, calçamento e modernização do porto da cidade.

E é exatamente na Rua Chile que o festival acontece. A sede oficial do DoSol – um centro de cultural que envolve estúdio, selo, casa de shows, produtora de vídeo e festival – é num galpão da rua Chile. A produção do festival aluga mais dois galpões (o maior para cerca de duas mil pessoas), fecha a rua e faz a festa. Ou seja: o frequentador tem a sua disposição três palcos internos (em galpões) e todas as atividades presentes na rua, de locais para se comprar comida e bebida a lojas para comprar CDs e camisetas até espaços para ações de marcas.

A movimentação começa cedo e se estende até a madrugada (o festival abre as portas ás 15h e vai até às 03 da manhã) num ambiente propício a trocas de informações, entretenimento e diversão. E bons shows. Já na noite de abertura, com apenas o galpão do Centro Cultural DoSol aberto, a rua lotou e quem conseguiu entrar no espaço pode conferir bons shows de, entre outros, Mahmed e, principalmente, o excelente Kung Fu Johnny, em nova formação (Ian Medeiros, vocal/bateria, e César Valença, guitarra, agora com Fausto Luiz no baixo).

No sábado, 08/11, a maratona de shows começou ás 16h e recomendaram fazer uma listinha das atrações desejadas, porque não daria para ver tudo (alguns horários se chocam, algumas conversas se estendem). Desta forma, meu festival começou com o bom pop rock da ÓperaLóki, que lançou disco de estreia em agosto e ainda carece de punch de palco (o ótimo vocalista Arthur Costa-Pedro necessita urgentemente de um pandeiro, pois fica completamente perdido quando está sem o microfone, o que tira a atenção do bom som que o restante da banda proporciona). Ainda assim, fique de olho neles.

Logo às 18h da tarde de sábado, o festival já via um de seus grandes shows. De Mossoró, cidade de 250 mil habitantes a cerca de quatro horas da capital Natal, e badalados na cena local, o duo Red Boots (Luan Rodrigues na guitarra e vocal; Gil Holanda na bateria) exibe uma sonoridade mais suja, violenta – com os pés atolados no stoner – e sedutora. Lançado em 2012, o ótimo álbum “Aracnophilia” dá uma ideia (em suas 10 canções) da potencia sonora do duo ao vivo, mas eles ainda são melhores no palco, com os ampis no talo.

Com tanta novidade no line-up, a ideia não era ver o The Baggios novamente (após Goiânia Noise, Porão do Rock e Prata da Casa), mas é sempre possível dar um jeitinho para escapar e conferir um dos grandes shows independente nacionais da atualidade. Júlio Andrade e Gabriel Carvalho são garantia de festa. Outras ótimas surpresas: de Caruaru, o rock and roll mezzo rockabilly de Joanatan Richard; de Belém, a força ao vivo da Turbo (aqui com as guitarras no talo, como tem que ser) e, do Recife, a volta insana de Jorge Cabeleira e o Dia Em Que Seremos Todos Inúteis, outro dos grandes shows do festival.

No palco principal, o casal produtor do evento (Anderson Foca, guitarrista e tecladista; e Ana Morena, baixista; mais Fausto Alencar na guitarra e Yves Fernandes na bateria) surgiu com a Camarones Orquestra Guitarrística para uma apresentação que destaca a porrada sonora que convida à festa e a performance contagiante de Ana, que sorri alegremente enquanto bate a cabeça jogando cabelos pra todo o lado e o rock and roll sujo do quarteto sai pelas caixas de som. Impossível não seguir o embalo e sair pulando.

Se tem algo para o qual o Festival DoSol tenha servido no âmbito pessoal foi para fazer a ficha do Boogarins cair. Finalmente (após vários shows) a banda fez sentido ao vivo, e pode ser que isso se deva tanto a entrada de Ynaiã Benthroldo, que acrescentou peso e charme ao som do quarteto, quanto ao som potente despejado das caixas do Centro Cultural DoSol, que se transformou em um agradável inferninho, um local absolutamente perfeito para o som viajandão do Boogarins (algo que se perde em palcos maiores, como no Espaço das Américas, quando a banda esquentou a noite para o Franz Ferdinand, semanas atrás). Impecável.

Na sequencia, o rapper cearense Francisco Igor Almeida dos Santos, conhecido por Rapadura Xique-Chico, lotou o palco principal para um show cantado em coro pelo público, e que mostra que há abertura de interesse para a audiência em sons que fujam do formato guitarra e barulho, algo extremamente positivo e se estende ao eletro rock do quarteto paulistano Aldo The Band, que agora, em formato banda, consegue desenvolver de forma mais ampla a sonoridade impressa em seu álbum de estreia. O show, empolgante e bastante elogiado por onde passa, mostra que a banda está no caminho certo.

Para fechar a noite de sábado, a grande atração do dia (novamente com o palco principal lotado, mas menos muvucado que na apresentação do Rapadura), Céu, que está prestes a lançar um disco ao vivo, fez um bom show, mas sem absolutamente nenhuma novidade. Foi uma apresentação praticamente idêntica a qualquer outra da cantora de 2012, ano do lançamento de “Caravana Sereia Bloom”, para cá, e se surpreender também faz parte do pacote de se assistir um show de um grande artista, Céu ficou devendo.

No domingo, muito punk rock, hc e metal na programação. A festa começou com uma indicação nos bastidores: “Você não pode perder o show do N.T.E., é incrível”. Um dos motivos é a presença de palco performática do ótimo vocalista Falante (Edu no baixo, Alerrandro na guitarra e Thadeu na bateria completam a formação), mas o som – punk rock hardcore 77 – também é de altíssima qualidade. Após alguns EPs, o disco de estreia da banda, “Somos Prisioneiros”, foi lançado em 2013, e os títulos das (boas) canções dão uma ideia do ataque: “O Poder do Dinheiro”, “Destrua o Racismo” e “As Fábricas”. Pode ser comprado no site do selo Microfonia. Sorriso no rosto.

De Brasília, a Distrito Federal Caos, popularmente conhecida no meio thrash e hardcore por D.F.C., honrou 20 anos de bons serviços prestados a podreira com um show bruto, alto e potente. “Gostaram dessa? Clima romântico, não?”, sacanaeava o vocalista Túlio. Mostrando canções de “Sequência Animalesca de Bicudas e Giratórias”, lançado neste ano, o quarteto fez um dos shows com mais moshs e rodas de pogo por minuto. Bonito de ver. Em outro palco, a ótima Monster Coyote (assim como a Red Boots, também de Mossoró) deixava um rastro de um vigoroso stoner metal pelo ar.

A grande expectativa do dia era a apresentação da Far From Alaska em casa, e diante de um dos maiores públicos do fim de semana, o quinteto abriu a noite com uma versão impecável de “Dino vs. Dino”, uma das grandes canções do álbum “modeHuman” (2014), também lançada em ótimo clipe. Assim como no Porão do Rock, o show seguia de forma impecável, mas um problema na guitarra de Rafael (e a falta de uma guitarra reserva) dispersou a atenção dos presentes, fazendo com que o todo perdesse em impacto. E foi isso: por 80% de sua apresentação, a Far From Alaska fez um dos melhores shows de todo o festival.

Ainda haveria Matanza na escalação, mas uma regra rock and roll não escrita diz que é preciso apresentar carteirinha de inocente com idade de menos de 15 anos para curtir “de verdade” o show da banda carioca, e com quase três vezes isso de tempo nas costas (e um grande número de bons shows no fim de semana) mais um pouco de vergonha na cara, a opção salutar foi partir em busca de um dos hambúrgueres mais malucos da cidade, no Black Kitchen – dos dias em que um simples hambúrguer é muito mais provocativo que “uma banda de rock”.

O saldo final da décima primeira edição do Festival DoSol foi extremamente positivo. Em três dias de grandes shows e ótimas surpresas, o festival potiguar mostrou a força da cena local – semeada com carinho e dedicação pela própria turma – e, principalmente, a acolhida de um público excelente, que não encontra paralelo em capitais convencidas do Sudeste (é difícil de acreditar, mas a cidade de São Paulo não tem nenhum festival independente – de porte e fora de gueto – para chamar de seu), que mais falam do que fazem.

A turma de Natal não só segue fazendo, como estende de forma inteligente a marca DoSol, neste ano, para outras quatro cidades: neste fim de semana, o Festival DoSol passa por Mossoró (15/11) com 14 shows e segue, na semana que vem, para desbravar três cidades: Currais Novos (21/11), com oito shows (incluindo as elogiadas Kung Fu Johnny e Camarones mais a comentada Talma&Gadelha); Caicó (22/11), com nove shows (a imperdível Red Boots inclusa); e, por fim, Santa Cruz (22/11), com sete shows encerrando não só um festival, mas um projeto musical de altíssima qualidade e grande alcance. Vida longa ao festival.

TOP 5 DE SHOWS DO FESTIVAL DOSOL 2014
22 pontos – Boogarins (cinco votos)
10 pontos – Red Boots (quatro votos)
10 pontos – Far From Alaska (três votos)
6 pontos – Kung Fu Johnny (três votos)
6 pontos – Rapadura (dois votos)

Marcelo Costa (Scream & Yell)
1) Boogarins
2) Rapadura Xique-Chico
3) Far From Alaska
4) Kung Fu Johnny
5) D.F.C.

Marcelo Monteiro (Amplificador). Leia cobertura aqui.
1) Boogarins
2) Red Boots
3) Far From Alaska
4) The Baggios
5) Kung Fu Johnny

Marcos Xi (Rock In Press) Leia cobertura aqui.
1) Aldo The Band
2) Boogarins
3) Kung Fu Johnny
4) Camarones Orquestra Guitarrística
5) Talma&Gadelha

Marcos Boffa (Programador cultural)
1) Boogarins
2) Far From Alaska
3) Red Boots
4) Rapadura Xique-Chico
5) Jorge Cabeleira e o Dia que Seremos Todos Inuteis
Hors Concours: Camarones Orquestra Guitarristica

Hugo Morais (O Inimigo). Leia cobertura aqui.
Sem ordem de preferência
Drakula
Boogarins
Jorge Cabeleira e o Dia que Seremos Todos Inuteis
DFC
Red Boots

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne. Todas as fotos por Marcelo Costa com exceção das fotos 3, 4 e 6, por Divulgação Festival DoSol

Leia também:
– Download gratuito: seis discos da safra 2013/2014 potiguar para baixar (aqui)
– Dois dias em Brasília: Titãs faz grande show no Festival Porão do Rock 2014 (aqui)
– Quatro dias em Belém: Festival Se Rasgum 2014 segue um modelo inspirador (aqui)
– La Route du Rock 2014: muita lama e Portishead na Bretanha francesa (aqui)
– Em Oslo, Øya Fest: esses sabem fazer um festival de música de qualidade (aqui)
– Festival Casarão 2014 promove duas noites de boa música em Porto Velho (aqui)
– Stockholm Music & Arts e a tempestade sônica de Neil Young & Crazy Horse (aqui)

11 thoughts on “Balanço: Festival DoSol 2014, Natal

  1. Mac, tu deve ser o único crítico que curte punk\hardcore, rsss. Escrevo isso porque gosto do estilo que normalmente é tratado com desdem por críticos em geral. Parabéns pela cobertura do festival, notas 10. Abs.

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