Os destaques do Goiânia Noise 2013

Texto e fotos por Marcelo Costa

Para quem trafega no cenário independente, seja tocando, escrevendo sobre, ouvindo ou lendo, é difícil separar Goiânia do Noise, o que em si já é um mérito do festival às vésperas de completar 20 anos de história: associar a capital goiana a outro estilo de música além das duplas sertanejas. A turma da Monstro Discos, junto a outros festivais do calendário da cidade, é responsável pelo Goiânia Rock City, adjetivo que reflete uma cena local vasta e efervescente, afinal, das 49 atrações do 19º Goiânia Noise, 27 nomes eram goianos – a maioria, admirável.

O desejo de abraçar o mundo, inerente a festivais independentes ao redor do planeta, encontra no Goiânia Noise uma solução agradável: assistir a 19 shows em um único dia não é tarefa das mais fáceis, mas o limite de meia hora para cada atração e a ótima equalização de som funciona como vitrine para cada banda, ainda que algumas percam tempo com falatório em excesso e/ou preocupadas com detalhes técnicos (uma corda arrebentada, algum problema no retorno), esquecendo que rock necessita mais de urgência do que de técnica.

Essa questão, aliás, foi extremamente curiosa nos três dias de shows no Martim Cererê, local que abriga dois teatros que eram antigas caixas de água da empresa de Saneamento do Estado de Goiás, e hoje funcionam como Centro Cultural: a performance de palco da grande maioria das bandas se restringiu a tocar as canções da melhor maneira possível, deixando de lado o quesito interação /provocação. Não à toa, alguns dos melhores shows foram de bandas que negaram essa cartilha (Ressonância Mórfica, Mechanics e Galinha Preta, por exemplo).

O line-up também permite elocubrações sobre as variantes musicais que encontram abrigo no cenário independente (e ao qual o Goiânia Noise busca representar): punk e metal (ambos em suas diversas variantes) inspiram boa parte das bandas, com cacoetes funcionando tanto pro bem quanto pro mal. O rock clássico vem na sequencia e uma ou outra atração pisou fora destes três territórios, mas o que interessa é que boa parte não passa de mera homenagem enquanto alguns eleitos conseguem ir além de suas influências. Mas é assim no mundo todo.

Entre os diversos pontos positivos do Goiânia Noise (entre eles, ótima estrutura e line-up repleto de boas bandas fora do circuito comercial), talvez o mais elogiável seja o respeito da produção para com as bandas no quesito qualidade de som: todas as bandas (exceção irônica, talvez, do Exploited, cujo som começou baixo e melhorou conforme a apresentação andava) tiveram a disposição uma excelente estrutura de som – amplificada pela acústica dos teatros – que poderia desmascarar picaretas: se o show fosse ruim, a culpa não ia ser do som…

Dito isto, o que se viu na 19ª edição do Goiânia Noise foi um excelente painel de novas e velhas bandas, a grande maioria aproveitando muito bem o espaço e mostrando a que veio, e a questão teórica do “a que veio” diz mais sobre a opinião de cada pessoa do que, necessariamente, a qualidade da proposta de cada banda – na maioria dos casos. Assim, bora para um resumo dos três dias de shows no Martin Cererê, uma maratona barulhenta movida à cerveja, macarronada (muito boa) e chuva.

06/12 – Sexta-feira


A festa começou com o Expressão Urbana, de Porangatu, interior de Goiás, mostrando um punk rock de letras inocentes (“Carlão Bobão” merecia um prêmio por sua ingenuidade), mas bem tocado (e muito falado) que foi atropelado pela Sangue Seco, punk rock urgente que destaca a pegada forte de Aurélio na bateria e o ótimo vocal de Eduardo Mesquita (foto) – vale citar a cover fidelíssima da importante “Grandola, Vila Morena”, canção senha de sinalização da Revolução dos Cravos, em Portugal, gravada também pelo grupo paulista 365 nos anos 80.

O Mad Matters trabalha muito bem a sonoridade stoner/hard que colocou Goiânia no mapa roqueiro do país, e destaca a condução Wilson nas baquetas. A Shotgun Wives (foto) foi a primeira grande surpresa, com uma sonoridade calcada no country, mas que namora o Brooklyn nova-iorquino, como se o pessoal do Mumford and Sons decidisse ser o Vampire Weekend. Grande show. Representante do hip hop, o Calango Nego soou tanto deslocado quanto sem foco. Já o Evening, com “guitarrista reserva”, fez um show nervoso e devoto ao grunge.

O primeiro grande momento de epifania da noite aconteceu quando os alto falantes despejaram a porrada death-grind do Ressonância Mórfica, banda amazonense radicada em Goiânia que já carrega nas costas 16 anos de bons serviços prestados ao barulho. A roda de pogo se abriu conduzida pelo vocalista Marcos (foto), que depois convocou todos os presentes a subirem ao palco (incluindo integrantes de outras bandas). Ainda rolou cover do Napalm Death em uma apresentação furiosa e digna dos melhores momentos do festival.

De um dos melhores shows da noite para um dos mais insatisfatórios: de São Paulo, As Radioativas (foto) trouxeram para um som datadíssimo que as Runaways faziam em um furgão em 1975. O tempo passou, mas As Radioativas preferiram ignorar. Pastiche (que empolgou o público). Já os Delinquentes, banda formada em 1985, em Belém, continuam afiadíssimos. Jayme Katarro (foto) conduziu o esporro movido a cachaça de Jambu, dividida com a galera do gargarejo, e fez questão de frisar: “O Pará não é só tecnobrega. Tem banda muito boa lá”. A começar pelos Delinquentes.

Outro grande momento do primeiro dia surgiu com o duo sergipano The Baggios, numa formação que naturalmente remete ao Black Keys, mas que traz na guitarra e voz de Júlio Andrade e na bateria de Gabriel Carvalho um sotaque brasileiro reconhecível, que os diferencia. Isso sem contar os momentos em que Júlio (foto) parece incorporar um Hendrix enlouquecido. Se tiver oportunidade, não deixe de vê-los. Mantendo o clima em alta, o Diablo Motor fez um show vigoroso, meio stoner, meio rockão pesado, para pular e festar.

O pique caiu com a estreia da Soothing, grupo que reúne gente que toca ou já passou pelo Black Drawing Chalks, Cambriana e Goldfish Memories, e inaugurou a dupla roqueira, com dois vocalistas. O som remete ao Screaming Tress fase “Uncle Anesthesia”, grunge tardio feito por fãs para fãs. O Galo Power veio na sequencia e fez um show ok de classic rock aumentando o time dos reverentes do festival, escalação composta por gente que gosta de um estilo de música, e se satisfaz em reproduzi-lo fielmente. É pouco, mas tem gente que gosta.

Caminhando para o final, o Zefirina Bomba mostrou mais uma vez porque faz um dos shows mais esporrentos do país, embora boa parte do público pareça hipnotizada pelo violão envenenado de Ilsom quando deveria estar pogando enlouquecidamente. Atração principal do dia, The Exploited começou o show na primeira marcha e demorou a engatar a terceira. Os punks fieis nem ligaram, e desligaram o microfone do vocalista Wattie ao menos uma dezena de vezes na ânsia de gritar letras como “Fuck The System”, “Beat The Bastards” e “Punk’s Not Dead”. Deixou uma sensação de que podia ter sido melhor…

07/12 – Sábado


Da primeira leva de bandas do segundo dia, o destaque foi a camiseta “333 Meio Besta” de Juzé, baixista do Gomorrah in Blood, mostrando um bom humor bem vindo ao estilo, embora o trash metal que a banda pratique ainda careça de personalidade. O Damn Stoned Birds (foto) se despediu de sua baixista, Lola, que está indo morar nos Estados Unidos, com um show divertido e eficiente enquanto o Indústria Orgânica parece necessitar urgentemente de um produtor que coloque as ideias da banda em foco: ao vivo parece uma maçaroca de influências que não soa bem.

Já Tarso Miller and The Wild Comets (foto) pratica a típica sonoridade caipira norte-americana que faria sucesso no Brasil (em geral, e Goiás, em particular), caso cantada em português. Ainda assim, o show deliciosamente retro recebeu um dos maiores públicos do dia, e só ficou faltando a banda honrar um pedido da plateia: “Toca Tião Carreiro”. Cairia muito bem. De Cuiabá, o Fuzzly, um dos destaques do Festival Vaca Amarela, duas semanas antes, voltou a repetir a apresentação ensandecida numa barulheira das boas, confiante e convincente.

Agora um pequeno teste de sofrimento: imagine uma banda que soasse um cruzamento do CSS com o Bonde do Rolê? Agora imagine um grupo de 5ª categoria que copiasse essa banda que saísse do cruzamento nefasto. O resultado seria o Lust For Sexxx. Doloroso. Do Distrito Federal, o 2Dub usou a fórmula Kiara Rocks: encheu o set list de covers, mas em versões dub, e o público comprou a ideia gingando com Sabbath (“Paranoid” e “Iron Man”), Stones (“Miss You”) e canções que o Nirvana emprestou do Bowie (“The Man Who Sold The World”) e do Killing Joke (“Come As You Are”) num show perfeito pra festa de DA de faculdade.

O Mad Sneaks é outra banda que sofre excessiva influência grunge, mas não passa disso, focando mais na reciclagem do que na criatividade. Já o Ação Direta deveria ter sido escalado pra festa punk do dia anterior, pois é um legitimo representante do hardcore do ABC dos anos 80, e formaria uma baita guerrilha ao lado de Sangue Seco e Delinquentes. O show honrou a fama. Já os cariocas do Zander (foto) fizeram o show mais festejado pela ala feminina do Goiânia Noise, um tiquinho emo, mas extremamente competente.

Os gaúchos da Walverdes (foto), em formato quarteto, dobrou o peso das guitarras com a entrada de Júlio Porto (ex-Ultramen) sem esconder a força das pancadas de Marcos Rubenich (bateria) e baixo de Patrick Magalhães. No repertório, pérolas de “Anticontrole” (clássico álbum lançado pela Monstro) e uma cover de “Armenia City In The Sky”, do The Who, na mesma pegada do Sugar, de Bob Mould. Aumentando a tensão da noite, o Mechanics, com duas baterias no palco, fez um show demente, com o vocalista Marcio Jr. (fotos) intimando: “Somos uma banda movida pelo ódio e eu quero ver o ódio no coração de vocês”. Violência em estado bruto resultando num show foda. Foda.

Após os shows altos e barulhentos de Walverdes e Mechanics, seria difícil alguém manter o nível, embora o Kamura tenha chegada perto, com um show esporrento e eficiente, e o Darshan tenha mostrado eficiência, ainda que o show tenha soado inseguro. Já o cachorro grande Marcelo Gross lançou no Goiânia Noise sua estreia solo, “Use o Assento para Flutuar”, que soa como… Cachorro Grande (em maior ou menor escala, dependendo da canção). O show foi bem bom, mas sofreu pelo fato de ser o 18º do dia, e parte da audiência estar cansada. Encerrando as atividades, Live set do Mixhell, com Igor Cavalera se esforçando para apagar seu passado brilhante em uma das maiores bandas de metal do mundo. Uma pena.

08/12 – Domingo
O último dia do Goiânia Noise 2013 começou com a molecada do West Bullets mostrando um som maduro e interessante, que destaca a intervenção de Rannier no violino. A banda ainda precisa se ajeitar no palco, mas está no caminho e é uma das boas apostas da nova cena goiana. Já a Entre os Dentes (foto) mostrou como jogar um show eficiente pelo ralo: deixando o baixista falar pelos cotovelos contra tudo e todos. O que era pra ser sério virou piada, um erro que o Baba de Sheeva não cometeu, amplificando a ótima porradaria que o trio executa.

Do Distrito Federal, a Rios Voadores primou por algo que faltou muito no festival: uma excelente performance de palco, com destaque para a vocalista Gaivota Naves, atuando como se fosse uma noiva que havia abandonado um casamento após receber uma Pomba-Gira. O som é hippie setentão, excessivamente Mutantes, mas soou bem na acústica do Martin Cererê. Outra banda que havia brilhado no Vaca Amarela, o Overfuzz, repetiu o feito no Noise, enquanto o Versário, apoiado na receita grunge, tenta gritar palavras de ordem como “Quero Viver” e “Sede de Vida”, que soam como canções autoajuda. Parece não funcionar.

Na linha do rock homenagem, Johnny Suxxx and the Fucking Boys seguem a cartilha glam de Lou Reed e David Bowie, e remetem levemente ao Television em algumas passagens de guitarra, mas soam um grupo cover de si mesmo. Já o Space Truck honra o nome com uma pegada digna, mas novamente excessivamente reverente enquanto o Besouro do Rabo Branco inseriu estranheza no festival em letras discursivas com direito a cover de Sidney Magal – em certo momento, o show bem interessante remeteu a Raul Seixas.

Até às 21h do domingo, o último dia do Goiânia Noise ainda não tinha visto um show antológico. Ainda. Bastou Frango Kaos (foto) pisar o palco com seu Galinha Preta para que o teatro lotasse e um festival de stage dives começasse movido por canções deliciosamente toscas e divertidas como “Vai Trabalhar, Vagabundo”, “AEIOU”, “Padre Baloeiro” e “Roubaram Meu Rim”, entre outras. Foi a meia hora mais festeira dos três dias do 19º Goiânia Noise, com raro direito a bis e mais pancadaria punk tosqueira. Uma festa.

O que As Radioativas ficaram devendo no primeiro dia, a Girlie Hell (foto) esbanjou no último, com as quatro garotas colocando ainda mais peso nas canções do álbum “Get Hard!”, em show de hard rock eficiente e empolgante. Apresentando sua carreira solo, Alf (ex-Rumbora) mostrou músicas novas e hits antigos (“Chapirous”) para um público pequeno, devido ao avançado da hora, em um show correto. Fechando a maratona, o trio Krisiun fez o show mais barulhento de todo o festival, honrando a fama e arrancando sorrisos da galera do gargarejo. Eficiente e pesado, mas nada que Slayer e Sepultura não tenham feito antes – e melhor.

Com um público de 3.500 pessoas nos três dias de festival, o 19º Goiânia Noise honrou a promessa de barulho tanto quanto abriu as portas para alguns nomes interessantes da nova cena local, em primeiro plano, e brasileira. Vale acompanhar o trabalho de nomes como Shotgun Wives, The Baggios, Mechanics e Girlie Hell, entre tantos outros, e pensar em organizar uma festa punk com Sangue Seco, Ressônancia Mórfica, Delinquentes e Ação Direta. Felicidade roqueira garantida. Abaixo, o Top 5 do Scream & Yell de shows do Goiânia Noise, e jornalistas convidados apontam seus shows preferidos.

Marcelo Costa / Scream & Yell
1) Galinha Preta
2) Mechanics
3) The Baggios
4) Ressonância Mórfica
5) Shotgun Wives

Marcos Bragatto / Rock em Geral (leia a cobertura do Goiania Noise aqui)
1) Krisiun
2) Exploited
3) Fuzzly
4) The Baggios
5) Diablo Motor

Osmar Portilho / Independência ou Morte (leia a cobertura do Goiania Noise aqui)
1) The Baggios
2) Galinha Preta
3) Fuzzly
4) Ressonância Mórfica
5) Mechanics

Tomaz de Alvarenga / Scream & Yell
1) Fuzzly
2) Galinha Preta
3) The Baggios
4) Overfuzz
5) Shotgun Wives

Top 5 entre os quatro jornalistas (5 pontos para o 1º, 4 para o segundo e assim por diante)
1) Galinha Preta e The Baggios (13 pontos)
3) Fuzzly (11 pontos)
5) Mechanics e Krisiun (5 pontos)

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

O Scream & Yell viajou para Goiânia a convite da produção do evento

Leia também:
– Festival Vaca Amarela 2013: três dias de bons shows (aqui)
– São Paulo: Balanção Planeta Terra 2013: o melhor dos últimos anos (aqui)
– Porto Velho: Balanço: os destaques do Festival Casarão 2013 (aqui)
– Porto Alegre: El Mapa de Todos estreitou os laços com vizinhos (aqui)
– Holanda: Best Kept Secret passa no teste da estreia (aqui)
– Portugal: Primavera Porto acerta no tom revivalista (aqui)
– EUA: SXSW, Difícil não querer voltar nos próximos anos (aqui)

12 thoughts on “Os destaques do Goiânia Noise 2013

  1. Um verdadeiro crítico, ao modelo clássico. Deve ter feito muita crítica nos anos 90 (onde ironizar geral ela de praxe) e está tentando se manter em prática. Fazia tempo que não víamos verdadeiros críticos assim. rsrs

  2. Obrigado por me lembrar dos Delinquentes, uma banda que foi muito presente na minha juventude em Belém!!!!! Devo ter visto uns 50 shows deles kkkkkkkke ver o Jaime se esgoelando, é como um bálsamo de juventude, valeu Marcelo!!!!!

  3. Estou em SP, mas só de ver o line up já era de se imaginar que o Galinha Preta seria top no festival. Parabéns, rapaziada! Vcs são foda!!!

  4. Contemplado com o Puta Festival e o Ultimo da foto sou eu. O Canguru.
    Pra mim show memorável do Mixhell, Revelação Rios Voadores, Overfuzz. Gross foi do caralho. TArso Miller único e o que masi bati cabeça foi o GAlinha Preta!

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