Entrevista: Retrato equilibra psicodelia pop e experimentalismo em “O Enigma de Um Dia”

entrevista por Alexandre Lopes

Entre fevereiro e março de 1967, os Beatles e o Pink Floyd foram “vizinhos de porta” dentro do Abbey Road Studios, em Londres. Enquanto “Sgt Pepper ‘s Lonely Hearts Club Band” recebia retoques finais no estúdio dois, do outro lado do corredor o conjunto liderado por Syd Barrett trabalhava em “The Piper At The Gates of Dawn”. Reza a lenda que Paul McCartney visitou diversas vezes as gravações no estúdio três – talvez preocupado se o grupo periférico representaria uma ameaça ao reinado do fab four nas paradas. Especulações à parte, a verdade é que o Floyd gozava de status no underground londrino, com longas apresentações barulhentas no clube UFO e, paralelamente, optou por seguir uma direção bem mais pop e enxuta com o lançamento de seu primeiro single “Arnold Layne”. Segundo o produtor Joe Boyd, “o Floyd costumava tocar uma versão que durava dez minutos, mas quando a gravamos fizemos uma de três minutos”, seguindo uma estratégia do empresário Peter Jenner.

Se para o manager do Pink Floyd essa era uma manobra deliberada para conseguir sucesso comercial, para a Retrato essa receita funciona de maneira instintiva e natural durante o processo de composição e gravação. “Ver um show com a banda improvisando é incrível, mas, às vezes, ouvir isso numa gravação pode cansar. Preferimos deixar uma estrutura de canção que tem um ‘começo, meio e fim’, que seja sucinta e que ainda assim tenha os espaços de improviso para criarmos ao vivo”, opinam Ana Zumpano e Beeau Gomez, a dupla de musicistas fundadora do grupo paulistano. “Isso faz com que as pessoas tenham uma experiência diferente em cada show e as apresentações se tornem únicas”.

Capa de “O Enigma de Um Dia”

Em seu disco de estreia, “O Enigma de Um Dia” (2023), a Retrato apresenta canções curtas embebidas em belas texturas psicodélicas que remetem a essa fase inicial do Pink Floyd, além de Mutantes, 13th Floor Elevators e Soft Machine, mas que também possuem traços de nomes mais recentes como o Broadcast e até mesmo algo do atualmente incensado Bar Italia. Ao vivo, o grupo adiciona algumas jams e experimentações a la Grateful Dead e Velvet Underground ao seu som, com Elisa Moos na segunda guitarra, Victor José (Antiprisma) no baixo e as participações selvagens de John Di Lallo nos synths e noises. O resultado é uma atmosfera sonora que deve bastante à década de 1960 e aponta para o shoegaze e lo-fi de bandas noventistas.

“O Enigma de Um Dia” foi gravado utilizando um processo híbrido entre equipamentos analógicos e digitais, durante aproximadamente um ano no Estúdio Memória (São Paulo, SP) e lançado em dezembro de 2023 pelo selo Transfusão Noise Records – do músico carioca Lê Almeida (Oruã), que assina a mixagem e colabora na faixa “Interlúdio”, juntamente com Bigu Medine. A masterização ficou a cargo de João Casaes (Oruã e Echo Upstairs). A sonoridade final do registro também conferiu um certo efeito de mistério sobre as letras, que apesar de serem em português, permanecem herméticas ao citar misticismo, passagens surrealistas e momentos lisérgicos. Esse forte caráter imagético não é acidental, visto que tanto Beeau quanto Ana também são artistas visuais. “Tentamos trazer essas imagens de forma que não seja um discurso literal, e sim algo que abrirá uma nova perspectiva em quem ouvir a canção”, justificam.

No papo abaixo, Ana e Beeau contam ao Scream & Yell um pouco como foi o processo de gravação do debut do grupo, como funcionam as apresentações ao vivo e o sobre o que esperar para o próximo trabalho da banda – as novas canções já foram incorporadas ao repertório dos shows.

“O Enigma de Um Dia” tem uma sonoridade que remete bastante a bandas psicodélicas dos anos 1960. Quais seriam as inspirações (sendo bandas ou não) diretas disso? Essas gravações foram feitas de forma analógica ou digital?
Acho que tudo que estava envolvido nessa época é uma inspiração para nós: som, literatura, poesia, pintura. Além de todes da Retrato ouvirem muito qualquer tipo de música desse período, a forma como as bandas costumavam gravar seus discos, os instrumentos utilizados, técnicas e equipamentos também servem muito de inspiração. O nosso som vem como uma consequência disso tudo; a sonoridade da época tem uma característica que vem de uma limitação técnica para se gravar, o que hoje conseguimos enxergar como estética sonora para chegar em texturas e timbres que remetem àquela sonoridade. Parte disso vem da escolha de gravarmos o disco utilizando equipamentos analógicos. O processo como um todo é totalmente híbrido, captamos a maior parte da gravação no analógico, mas depois vai tudo para o computador. O que de certa forma não muda muito, pois o som já chega pronto. Cada equipamento que passamos o som dá uma textura e característica diferentes, deixa a gravação mais “suja”, quente, lo-fi. A etapa do computador ajudou, pois dessa forma conseguimos enviar os arquivos de gravação para o Lê Almeida mixar, e ele estava em uma tour com o Oruã nos Estados Unidos e Europa e conseguiu fazer a mix na estrada, no tempo livre entre os shows.

Geralmente bandas psicodélicas fazem longas jams e esticam suas músicas, mas a maioria das faixas de “O Enigma de Um Dia” é curta e não chega a quatro minutos (descontando a última, “Véu”) e o álbum todo passa bem pouco dos 30 minutos. Isso foi uma decisão deliberada ou aconteceu de forma espontânea?
Achamos um tanto chato as bandas psicodélicas “cansadas”, que às vezes ficam improvisando longos períodos e o som parece não ir para lugar nenhum. Quase todas as canções da Retrato têm um espaço para improviso, nunca tocamos igual e gostamos de deixar esse espaço de criação para os shows ao vivo. O improviso tem um caráter do momento, ver um show com a banda improvisando é incrível, mas, às vezes, ouvir isso numa gravação pode cansar. Preferimos deixar uma estrutura de canção que tem um “começo, meio e fim”, que seja sucinta e que ainda sim tenha os espaços de improviso para criarmos ao vivo. Isso faz com que as pessoas tenham uma experiência diferente em cada show e as apresentações se tornem únicas.

Lendo as letras, achei que a parte literal segue uma abordagem nem tão direta, com uso de imagens meio surrealistas, lisérgicas e até mesmo algo de misticismo. Quem é o responsável pelas letras? Como elas surgiram?
As letras são escritas majoritariamente pelo Beeau e a Ana sempre traz algum complemento para fecharmos a canção. Às vezes a Ana traz um riff, uma melodia, uma frase ou refrão e o restante se desenvolve a partir daí. Mas as canções sempre se dão pela dupla. Ambos gostam muito de poesia e literatura, principalmente as que se podem criar múltiplas imagens a partir de diferentes interpretações. Tentamos trazer essas imagens de forma que não seja um discurso literal, e sim algo que abrirá uma nova perspectiva em quem ouvir a canção.

Este álbum de estreia foi concebido inicialmente por Ana e Beeau e depois contou com as contribuições de Elisa Moos, Victor José e John Di Lallo. A ideia no estúdio é sempre centralizar o processo de composição na dupla de vocalistas ou as próximas obras devem contar com maior participação da banda completa?
Existem variadas formas de se criar um som ou canção que gostamos de explorar. Desde gravar vários instrumentos sozinhos, tocar ao vivo com a banda ou gravar loops em fita cassete. Nós (Ana e Beeau) gravamos uma demo do que viria a ser “O Enigma de Um Dia” a partir de um ensaio entre os dois, com bateria, guitarra e vozes. Quando Victor e Elisa se juntaram à banda, o disco tinha iniciado suas gravações e eles puderam contribuir com seus respectivos instrumentos em todas as faixas. Durante o processo, a John também começou a tocar com a gente e gravou os synths na fase final de produção do disco. Para o próximo disco, já temos boa parte do material novo gravado com a banda tocando as faixas ao vivo em estúdio. Mesmo as faixas que são loops ou colagens sonoras, elas fazem parte do material ao vivo que fomos gravando durante os ensaios com essa formação.

Como foi que aconteceu essa participação do Lê Almeida e Bigu Medine na faixa 5, “Interlúdio”?
Temos uma relação que vai além da música. Sempre quando o pessoal está em São Paulo, eles se hospedam em nossas casas. Gostamos de cozinhar, ouvir discos, tocar. É muito natural a forma como as coisas acontecem. Antes mesmo de gravarmos o disco, o Lê estava acompanhando o processo do nosso lado e se propôs a ajudar com qualquer coisa. O Bigu e o João Casaes (que masterizou o disco) tocam na Echo Upstairs também, então sempre estamos criando algo juntos. Essa faixa surgiu de um improviso, que gravamos com o Bigu na fita cassete. Gravamos outras coisas em cima, mas não tinha como o Lê mixar pois a faixa não tinha seus canais separados. A sugestão foi que o Lê gravasse outras coisas por cima, já que seria uma forma de trabalhar essa música. Ele gravou uns synths e passou novamente pelo toca fita dele, cortando algumas partes e tocando em reverso algumas coisas. Ana, John e Beeau também gravaram algumas faixas do disco solo do Lê, “I Feel In the Sky“. Essa colaboração é mútua e vem como consequência da nossa relação. Com certeza teremos mais dessas trocas nos próximos trabalhos.

Além da Retrato, vocês têm outros projetos musicais, como Antiprisma, Echo Upstairs, etc. Como vocês fazem para tocar tudo isso? Tem algum planejamento de tempo e ensaios para cada banda ou vão apenas seguindo o fluxo para ver no que dá?
Na maioria das vezes batemos as agendas para encaixar os compromissos de cada projeto nos momentos livres. Cada projeto tem seu tempo e suas tarefas que precisamos executar. Estamos ensaiando com o Antiprisma para os shows do novo disco que sai agora em 2024 [ouça o primeiro single aqui], estamos gravando um EP novo da Echo Upstairs e ensaiando novas músicas da Retrato, além de tocarmos em projetos ou participações de amigues. Basicamente estamos tocando quando não estamos tocando (risos).

Nos shows vocês já tocam algumas músicas novas. O que vocês acham que elas diferem das do primeiro disco?
Um dos fatos é que as músicas novas são tocadas pela primeira vez nos ensaios com a banda toda, então vamos trabalhando para entender como ela soa ao vivo. As músicas anteriores já tinham uma base de bateria e guitarra gravadas por nós dois, o que de certa forma torna mais fácil você assimilar o som ouvindo a gravação repetidas vezes. Mas dessa forma atual, em cada ensaio a música vai se desenhando aos poucos por cada um até tomar uma forma única.

Quais os próximos passos da Retrato em termos de shows e lançamentos? Devemos esperar um segundo álbum em breve?
Atualmente vamos tocar pelo Brasil até o meio do ano para divulgar “O Enigma de Um Dia”, nesse período teremos o lançamento físico do disco e vamos focar em finalizar o novo álbum para o segundo semestre de 2024.

– Alexandre Lopes (@ociocretino) é jornalista e assina o www.ociocretino.blogspot.com.br. A foto que abre o texto é de Vitor Cohen. Foto da banda em formato quinteto por Ana Zumpano

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