Três filmes: “Nada de Novo no Front”, “To Leslie”, “A Menina Silenciosa”

textos de Marcelo Costa

“Nada de Novo no Front”, de Edward Berger (2022)
(“Im Westen nichts Neues”) Disponível no Netflix
Antes de mergulhar em caraminholas, importante dizer: “Nada de Novo no Front” é um filmaço. Agora que o elefante saiu da sala, divaguemos: o longa do cineasta suíço Edward Berger, adaptado do livro homônimo lançado em 1929 por Erich Maria Remarque, também é símbolo de uma temporada marcada pelo deja vu, em que desde os mais óbvios exemplos de remakes e continuações (“Avatar: O Caminho da Água”, “Top Gun: Maverick”, “Pantera Negra: Wakanda Para Sempre”, “Glass Onion: Um Mistério Knives Out”, “Batman”, “Pinóquio”, “Gato de Botas 2: O Último Pedido”) até as obras de cunho “original”, quase tudo soa já feito (“Bardo” ecoa Fellini, “Os Banshees de Inisherin” revive os Irmãos Coen, “Triângulo da Tristeza” é o cinema nórdico batendo na mesma tecla desde o Dogma 95, “Elvis” e “Blonde” são personagens óbvios, “Argentina, 1985” é mais um filme sobre ditadura na América Latina, “Os Fabelmans” é mais um filme sobre a infância de um futuro diretor se apaixonando por cinema – e mais um filme sem alma de Spilberg – e por ai vai). Nenhum problema em muitos dos casos, mas essa constatação de chegar ao fim do filme e sentir aquele gostinho de “nada de novo no front” (perdão pelo trocadalho) causa um leve incomodo, o que também faz entender porque um filme cujo formato (corpo) se sobrepõe a história (alma) seja um dos mais badalados do ano (o ótimo “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” foi filme do ano inclusive aqui no Scream & Yell). Voltando ao favorito na categoria Melhor Filme Estrangeiro do Oscar, “Nada de Novo no Front” (que também já tinha sido filmado, em 1930, por Lewis Milestone, e levado o Oscar de Melhor Filme naquele ano) é um filme de guerra necessário em tempos de levante da extrema direita e de endeusamento de ideais nazistas – Brasil, incluso. Como a memória é curta, histórias como as da Primeira Guerra Mundial, a guerra das trincheiras, precisam ser sempre recontadas, para que aqueles que tenham ao menos dois neurônios consigam entender que, numa guerra, todos perdem (enquanto governos lucram). É simbólica demais a maravilhosa cena inicial, com roupas de soldados mortos sendo lavadas, costuradas e entregues a novas vítimas da barbárie. Ainda assim, mesmo com a violência da exposição de membros decepados, “Nada de Novo no Front” é só mais um filmaço de guerra para adentrar a safra “recente”, ao lado dos ainda melhores “Katyn”, “Terra de Minas” e “O Filho de Saul”, mas é… deja vu. E, talvez, estejamos condenados a, eternamente, termos filmes de guerra em pauta. Para o bem e para o mal.

Nota: 8

“To Leslie”, de Michael Morris (2022)
Leslie é alcoólatra. E, também, uma ganhadora da loteria, que faturou 190 mil dólares numa premiação local (cerca de 1 milhão de reais), pequena fortuna que se esvaiu em seis anos indo embora pelo nariz, em copos e esbanjamento. Agora, Leslie vive na miséria como uma sem teto – logo no início ela está sendo despejada – e, por isso, vai atrás de seu filho, que tinha 13 anos quando a mãe ganhou na loteria e, agora, aos 20, ficou… seis anos sem ver a mãe. Sim, você já viu filmes sobre alcoólatras antes e, como já explicou didaticamente Don Birnam no oscarizado “Farrapo Humano”, que Billy Wilder fez no distante 1945, “um único drinque é demais, e cem não são suficientes”. Mas “To Leslie” tem a seu favor o fato de soar simpático, para usar um adjetivo completamente incabível no tema, não só por dar alma a seu personagem central como por defender que alguns finais podem ser diferentes para uma doença que, só no Brasil, atinge cerca de 12% da população adulta (ou seja, quase 25 milhões de pessoas). Filmes como esse são, geralmente, um tour de force de atuação, e a atriz britânica Andrea Riseborough merece todos os elogios possíveis (e a merecida indicação ao Oscar de Melhor Atriz) por sua construção tresloucada do personagem Leslie, retratado de maneira absurdamente realista no excelente roteiro de Ryan Binaco, que não apenas não maquia o alcoolismo como também exemplifica de maneira dolorida que, muitas vezes, o doente faz (no caso de Leslie, quase) qualquer coisa para conseguir dinheiro para mais uma dose – até enganar as pessoas que mais ama. Nada disso é novidade, certo. Porém, “To Leslie” oferece, de maneira encantadora e possível, algo que anda muito em falta nos tempos atuais – de bolsonaristas que negam marmita, assassinam pais em festas de aniversários e crianças pelas costas em bares até pessoas que lucram com venda de água em áreas de tragédia: humanidade. É preciso acreditar no ser-humano, sempre, mesmo quando a realidade diária mostra o contrário. Por tudo isso, “To Leslie” é um pequeno grande filme que merece atenção e carinho.

Nota: 8

“A Menina Silenciosa”, de Colm Bairéad (2022)
“An Cailín Ciúin” / “The Quiet Girl” (estreia nos cinemas em 12 de maio)
Entra ano e sai ano e não tem jeito: as verdadeiras grandes obras cinematográficas do Oscar estão todas “escondidas” quase sempre na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, e nesse 2023 balizado por reciclagem de temas, gastos excessivos em efeitos especiais e deja vu decantado não poderia ser diferente. Entre a violência exacerbada do candidato alemão “Nada de Novo no Front” e a violência sufocada do candidato latino “Argentina, 1985” repousam dois filmes delicadíssimos que merecem, e muito, a sua atenção: sobre “Close”, o poderoso candidato belga, você pode ler aqui. E, praticamente esquecido na lista e com risco de passar totalmente despercebido na temporada por sua… quietude, há “The Quiet Girl”, o candidato irlandês que simplifica o cinema a apenas uma câmera e uma história, sem subterfúgios ou armadilhas narrativas, e comove de fazer o coração soluçar. O diretor Colm Bairéad, que também assina o roteiro (adaptado) magnifico em sua simplicidade, baseou-se em “Foster”, romance de Claire Keegan lançado em 2010, para contar a história de Cáit, uma garotinha de nove anos, tímida, quieta e carente de uma grande e pobre família, que vive na área rural da Irlanda em 1981. O pai, alcoólatra, costuma torrar o dinheiro apostando em cavalos. A mãe, embrutecida, carrega no ventre o sexto filho. Cáit não se encaixa muito bem na família – e sua relação piora com o fato dela ainda deixar escapar xixi na cama nas noites – e muito menos na escola. A problemática situação financeira da família os obriga a pedir para que parentes distantes abriguem Cáit durante as férias (“Minha mãe me disse que eu não preciso voltar”, diz ela para a “tia” em certo momento), e começa então uma nova fase na vida da menina, em que o sofrimento, o bullying e o medo serão substituídos por doses apaixonadas de amor familiar, algo que a menininha nunca havia experimentado, e que a mudará para sempre. Colm Bairéad conduz de forma exemplar a jovem adorável Catherine Clinch, de 12 anos, em sua estreia no cinema, e ela brilha e envolve o espectador auxiliada pelas atuações contidas e comoventes de Carrie Crowley (como Eibhlín) e Andrew Bennett (como Seán) nessas férias inesquecíveis. O cinema ainda pode ser belo… e simples. E absolutamente clássico.

Nota: 10

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

Oscar 2023:
Desavergonhadamente engraçado, “Os Banshees de Inisherin” merece ser vistos no cinema
“Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” mistura humor pastelão, filosofia e multiversos
Cate Blanchett surge esplendorosa em “Tár”, filme que mostra que a música é belíssima, já os musicistas…
Ainda que desequilibrado e exagerado, “Triângulo da Tristeza” é um grande filme que merece atenção
“Top Gun – Maverick” soa cafona, mas funciona e engrandece a importância da experiência na sala de cinema
Desprezível, “A Baleia”, de Darren Aronofsky, é um exercício de desrespeito e falta de sensibilidade
Apesar do lodo existencial e da alegórica recriação de homens podres, “Blonde” tem Ana de Armas
“Gato de Botas 2: O Último Pedido” é divertido, poético e dá um show em passagens de lutas em câmera lenta
“Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades” flagra Iñarritu numa história perfeita em suas imperfeições
Apesar de chapa branca, “Elvis”, cinebiografia espalhafatosa de Baz Luhrmann, é homenagem plena
Formulaico e óbvio, “Os Fabelmans” é muito pouco para um realizador do nível de Steven Spielberg
“Aftersun” é um belo e doloroso filme sobre memórias familiares
Em “The Batman”, o diretor Matt Reeves aposta no menos é mais
“Pantera Negra: Wakanda para Sempre” é um filme sobre Chadwick Boseman e a falta que o ator faz
– “Glass Onion” é divertido e esquecível, aquele tipo de piada esquecível que dura 2 horas e 19 minutos
“Argentina, 1985” é muito mais um bom filme sobre uma grande história do que um bom filme
“Close” é um poderoso filme sobre amizade – e sobre como o patriarcado destrói coisas belas

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