Cinema: Formulaico e óbvio, “Os Fabelmans” é muito pouco para um realizador do nível de Steven Spielberg

texto por Lucas Reis

Steven Spielberg é um dos cineastas mais marcantes do cinema hollywoodiano. Além disso, é possível pensar nele como um artista paradigmático devido às suas contribuições para a sétima arte. São tantos os filmes significativos do realizador, que é impossível citar todos. Basta lembrar de “Tubarão” (1976), “Contatos Imediatos de Terceiro Grau” (1977) “E.T – O Extraterrestre” (1981), e “A Lista de Schindler” (1992) para dar a dimensão da importância de Spielberg e de como seus filmes reverberam em críticas, ensaios, trabalhos acadêmicos, influência para outras títulos e até mesmo para outras manifestações artísticas.

Dentre os temas de sua predileção, dois merecem destaque: o núcleo familiar em conflito e a segunda guerra mundial – é preciso lembrar que o cineasta tem ascendência judaica. Entretanto, “Os Fabelmans” (“The Fabelmans”, 2022), seu novo projeto, propõe uma autobiografia. Uma forma do diretor olhar para sua infância e adolescência visando compreender, de alguma maneira, o que o levou a se tornar um cineasta. Levando em consideração a política dos autores defendida pelos críticos franceses da Cahiers du Cinema na década de 1950 em que um autor costuma manter um mesmo conjunto de temas (dentre outros fatores) mesmo em filmes aparentemente muito diferentes, uma obra autobiográfica é quase como se Steven Spielberg revelasse o segredo que o tornou um nome fundamental da indústria.

No início do filme, há o desenvolvimento da paixão pelo cinema. Desde a primeira vez que o pequeno Sam Fabelman (o protagonista da obra e alter-ego de Steven Spielberg) foi à sala de cinema, até ganhar uma câmera para criar as próprias imagens e realizar as suas obras – ainda de forma amadora. “Os Fabelmans” é menos sobre o encanto que a sala de cinema proporciona – como é o caso de “Cinema Paradiso” (Giuseppe Tornatore, 1988), por exemplo – e mais sobre o que colocar em tela. Como o mundo ao redor influencia as tomadas de decisões artísticas? Neste sentido, a família de Sam se torna o principal tema de suas filmagens.

Também há uma facilidade narrativa, pois é filmando os familiares que um grande segredo vai se revelar e desenrolar questões que foram fundamentais para o rompimento dos pais – levando em consideração que o título do filme faz referência a família, é possível destacar que tal ruptura é intensa para os personagens. Assim, a obra não é apenas a revelação de uma paixão colossal pelo cinema. Demonstra o drama de uma família judia prestes a se despedaçar. O filme reúne a paixão do realizador e os temas que marcaram boa parte de sua carreira.

A dificuldade de todo o filme biográfico é mergulhar na essência do biografado sem que a obra se torne apenas um meio de elencar vários acontecimentos de sua vida do mesmo. Em sua própria biografia, Spielberg cria esse nó custoso de desatar. Assim, o fascínio pelo cinema de Sam fica em segundo plano porque todas as suas imagens produzidas e filmes realizados não existem por si, mas para fazer com que a narrativa avance ou para dar dimensão psicológica de algum personagem. Então, se o adolescente faz um filme com quarenta pessoas na equipe sobre a segunda guerra mundial, o que interessa é ver a reação da mãe que está na plateia encantada com o talento do filho, porém não sabe que ele está enfurecido com ela pelo segredo omitido. Segredo este, que descobriu em outro de seus filmes realizados.

Não há em “Os Fabelmans” o desenrolar sutil de uma paixão avassaladora pelo cinema porque Spielberg não encara a sua formação artística frontalmente. Sequer se esforça para refletir sobre sua realização amadora e como ela pode ter o moldado ao longo da vida. O que move a narrativa, de fato, são os grandes momentos de sua vida que vão pontuando o que é ser um artista. O encontro com um tio-avô que Sam nunca havia visto é característico de um texto que preza pelos grandes momentos. Antes de dormir, o adolescente é interpelado pelo senhor que demonstra experiência e conhecimento sobre uma carreira no mundo do entretenimento. Ele diz que trabalha no circo e teve de abdicar de muito para continuar lá, mas nunca desistiu pois isso está no seu sangue.

Nessa sequência, Sam Fabelman descobre uma ascendência artística e uma indicação do que deve ter para seguir no ramo – tudo construído a partir do diálogo. Esta questão, assim como todas as outras situações são arremessadas em tela, nunca desenvolvidas com calma. Sempre é necessário avançar cronologicamente para que as 2h30 de filme consigam dar a dimensão da vida de uma criança que vai ao cinema pela primeira vez, até o início de sua fase adulta quando consegue um emprego na área.

O mesmo acontece com as questões familiares. Não há nada desenvolvido com sutileza, tudo é feito de forma abrupta. Assim, os momentos de crise como uma discussão na mesa de jantar quando Sam leva sua primeira namorada para conhecer a sua família ou o pranto dos filhos quando recebem a notícia do divórcio dos pais são exemplos de cenas que permeiam toda a obra. Entretanto, faltam vivências que vão caracterizar aquelas pessoas como uma família em seus momentos ternos e, inclusive, tediosos todavia fundamentais para dar a dimensão real de uma vivência íntima e cotidiana. Ao contrário dos momentos que servem apenas para uma resolução narrativa rápida, mas que não dão a dimensão de um mundo verdadeiro em que aqueles sujeitos habitam.

Em “E.T. – O Extraterrestre,” também há uma família partida. Uma mãe tem de cuidar de três filhos sozinha porque o pai foi embora. Não há nada parecido com uma briga entre o casal ou o pai saindo de casa. De fato, o pai não aparece em cena em nenhum momento. A ausência paterna estabelece um conflito que vai se desenrolando aos poucos. Assim, quando um menino finge estar febril e não pode ir para a escola, a mãe tem de sair para trabalhar e deixá-lo sozinho, pois não há ninguém que possa tomar conta dele. Ou quando uma menina tenta mostrar para a mãe o E.T, mas a mulher está tão cansada que não consegue dar atenção para a filha. São momentos pequenos que não mencionam o pai, mas que indicam a ausência.

No fim, quando o protagonista Elliot vai se despedir do E.T e menciona: “eu não queria que você fosse embora”, é uma frase que assume a relação direta com o amigo extraterrestre com quem ele criou um grande vínculo e, ao mesmo tempo, remete a uma figura paterna que não existe mais. A construção emocional em “E.T” é feita de maneira sutil, mas que consegue dar profundidade para que se solidifique para o espectador. Assim, em “E.T. – O Extraterrestre”, por mais que as sequências sejam menos intensas do que em “Os Fabelmans”, elas são mais tocantes porque são fruto de um mundo palpável.

Para encerrar a comparação, é possível pensar em uma sequência de cada filme. Em “E.T – O Extraterrestre”, quando Elliot fala que gostaria que seu pai estivesse com eles porque seria o único a acreditar em sua história, a mãe diz para o garoto telefonar. Elliot avisa ser impossível, pois o pai está no México com outra mulher. A mãe, então, se levanta rapidamente e se direciona para uma penumbra, o garoto percebe que falou algo errado e se encolhe, o irmão mais velho o ameaça e diz que Elliot deve respeitar o sentimento dos outros. A mãe, então, exclama: “ele nem gosta do México”. Já em “Os Fabelmans”, durante um acampamento, a mãe de Sam se levanta e começa a dançar à luz de faróis de um carro enquanto o rapaz a filma e as filhas, o marido e o amigo do marido a assistem. Por mais que a segunda cena seja mais chamativa e excessiva, é na primeira em que o jogo de luz revela um mundo real em que um misto de tristeza e preocupação acomete a mãe em um simples levantar da mesa. Não há nada espalhafatoso, mas existe um universo e isso é fascinante. As duas sequências evidenciam suas personagens com clareza, porém, em “E.T”, a mise-en-scene é mais sutil e bem engendrada.

É possível argumentar que “E.T. – O Extraterrestre” é passado em um período cronológico menor do que “Os Fabelmans” e, assim, seria possível aprofundar nas questões que o filme desenvolve. Contudo, não é qualquer recorte temporal ou mesmo a duração do filme que vai influenciar a densidade de uma obra. Em “Rastros de Ódio” (John Ford, 1956), por exemplo, os personagens passam anos no deserto em busca de uma menina que foi raptada. Contudo, o que importa para Ford é desenvolver os protagonistas e destacar como a passagem do tempo, as péssimas condições geográficas e a falta de itens de necessidade básica os massacram. Simultaneamente há uma ética implícita naquele ambiente que não os permite desistir. O diretor da Hollywood clássica é personagem de uma sequência muito bonita de “Os Fabelmans” em que, com o seu famoso mau-humor, dá dicas para Sam se tornar um cineasta. John Ford é considerado um mestre porque sua consciência ao encenar era, mesmo que simples, exemplar e, desse modo, chega à raiz do ambiente em que ele retratava.

O domínio que Steven Spielberg tem da encenação em “E.T – O Extraterrestre” faz com que ele trabalhe melhor com um núcleo familiar inventado que passa a abrigar um extraterrestre do que com a própria família. Pois, as entrelinhas são mais elaboradas. Há mais profundidade nos personagens do filme da década de 1980 porque a essência daquelas coisas são descobertas. Por outro lado, em “Os Fabelmans”, tudo é óbvio. A impressão que passa é que como o diretor sabia que revelaria segredos de sua família, preferiu não ir fundo nas questões, apenas contar, mas não destrinchar o acontecido. Então, seja na descoberta como artista, seja na relação familiar, toda a dimensão dramática de “Os Fabelmans” é construída pela aparência. Daí, é necessário apelar para uma constante música ao piano de John Willians para reiterar o que está nas imagens. Por mais que seja saboroso ter uma música de um dos parceiros mais notáveis de Spielberg em seu trabalho autobiográfico, a música aqui não é significativa como em obras anteriores em que a dupla atuou em conjunto.

Não há em “Os Fabelmans” uma característica particular que o faz ser marcante e se destacar entre tantos outros filmes. Tudo parece ser feito de maneira formulaica e a vida de Sam Fabelman poderia ser a de qualquer outro garoto. Como se a sua história não tivesse particularidades. Claro que em um filme de Steven Spielberg, ainda há boas sequências em que o humor é sempre muito bem trabalhado, mesmo em momentos de drama, pois o diretor sempre soube construir as suas cenas. Entretanto, é mais fácil pensá-lo como um bom artesão do que como um realizador com um ideal artístico único.

O que incomoda em “Os Fabelmans” é que Steven Spielberg faz uma obra pessoal, sem particularidades. Há apenas traços distantes dos grandes trabalhos que realizou em outros tempos. Pode ser que o filme ainda aparente ser melhor do que boa parte dos títulos que estão em cartaz ou que estão na corrida pelas principais premiações do cinema, mas isso é fruto do talento de Spielberg. De qualquer maneira, é muito pouco para um realizador de seu nível.

Lucas Reis é pesquisador de cinema brasileiro. Atua como crítico de cinema, histórias em quadrinhos e televisão. Escreve na Revista Aurora Cine

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