Cinema: “Aftersun” é um belo e doloroso filme sobre memórias familiares

texto por Renan Guerra

Em algum lugar do final dos anos 1990, Calum (Paul Mescal) e sua filha pré-adolescente Sophie (Frankie Corio) estão tirando férias em um hotel de verão na Turquia. Banhos de mar e de piscina, reaplicações de protetor solar e drinks de verão se misturam com memórias afetivas e dolorosas de uma relação entre pai e filha que é construída a partir daquilo que muitas vezes nós, enquanto filhos, desconhecemos de nossos pais. “Aftersun” (2022) é a estreia em longa-metragem da diretora escocesa Charlotte Wells e é uma espécie de história semibiográfica, com relances de sua própria relação com o pai.

Lançado mundialmente no Festival de Cannes de 2022, como parte da Semana da Crítica, “Aftersun” foi exibido por aqui na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, onde saiu premiado com o Troféu Bandeira Paulista. Agora o filme chegou aos cinemas nacionais através de uma parceria entre a MUBI e a 02 Play – logo na sequência o filme entrará no catálogo da MUBI, mas para quem puder: veja o filme na tela grande! Construído com uma fotografia bela e ensolarada, a trama nos leva para esse verão de uma forma única, é como se sentíssemos o cheiro de cloro e de protetor solar transpassando pela tela e toda essa construção de um imagético de verão familiar é extremamente importante para a construção memorial da história.

“Aftersun” tem um roteiro que parece que faltam peças e isso é proposital. Somos levados para essas férias de verão pela visão de Sophie, que tem apenas 11 anos. Muitos anos depois, ela irá se lembrar dessa experiência e tentará remontar esse quebra-cabeça, porém para nós, espectadores, o importante é termos esse mesmo recorte da menina. E aí ficam as lacunas: o que aconteceu na vida de Calum? O que leva esse pai a determinadas escolhas? O que aflige tanto esse homem? O público apenas tem vislumbres, pequenos flashes e fagulhas de uma possibilidade, e aí talvez esteja uma das maiores sacadas do filme. “Aftersun” consegue captar de forma rara essa sensação de amadurecimento, quando entendemos que nossos pais não são heróis, são apenas humanos, cheios de falhas e de medos, como nós.

E isso tudo é sustentado pelos dois atores em cena. Paul Mescal está gigante, ele consegue transpassar a angústia e a dor de Calum em olhares, pequenos detalhes e gestos cheios de contenção. Já Frankie Corio é luz total na tela, há uma leveza e uma beleza na sua atuação que é encantadora, ela lembra aquela mágica rara de ver crianças em estado bruto de genialidade, tipo na linha Anna Paquin em “O Piano” (Jane Campion, 1993) ou Abigail Breslin em “Pequena Miss Sunshine” (Valerie Faris, Jonathan Dayton, 2006). Paul e Frankie têm feito uma boa carreira em premiações de cinema independente e ambos têm forças para chegar ao Oscar e isso seria merecidíssimo, pois a atuação de ambos é a espinha dorsal desse filme – qualquer pequeno detalhe que estivesse fora do tom poderia estragar a beleza dessa história.

Contando com Barry Jenkins (“Moonlight”) como um de seus produtores, “Aftersun” conquistou o coração de outro diretor: Sean Baker, diretor do excelente “Projeto Flórida”, filme que também tinha uma atuação infantil deslumbrante, da jovem Brooklyn Prince. E é curioso, pois durante a projeção de “Aftersun” você sente alguns daqueles mesmos sentimentos presentes em “Projeto Flórida”: uma melancolia pelo fim da inocência, um misto de medo e encantamento pela complexidade do mundo, tudo pelo olhar dessas crianças.

“Aftersun”, porém, é melancólico por outros sentidos, que não valem serem expostos aqui para evitar spoilers. O que podemos dizer é que o filme tem dois usos lindos de clássicos da música pop: “Losing My Religion”, do R.E.M. aparece em uma cena crucial do filme, já “Under Pressure”, essa perfeição do Queen com o David Bowie, parece que foi feita especialmente para que Wells usasse em seu filme e nos fizesse chorar. Filme poderoso em sua delicadeza, “Aftersun” é uma espécie de elegia aos nossos mistérios e traumas familiares, uma espécie de celebração dessas incogruências que nos formam enquanto seres frágeis e errôneos. E é, certamente, um dos grandes filmes do ano!

OS FILMES DO OSCAR 2023

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.