Literatura: Lourenço Mutarelli morreu e voltou para contar

texto por Gabriel Pinheiro

“Você já parou pra pensar que embora esteja aqui e agora, ou ao menos acredite nisso, você pode ser só algo que esteja sendo escrito?”

Pompeu Porfírio Júnior é um contador de histórias. Clientes o pagam para que ele lhes conte aquilo que viveu no passado ou aquilo que observou entre o último encontro e o presente. Pompeu é um “arquiteto” de universos que existem concomitantes ao nosso. Se estes universos são momentaneamente habitados por aqueles que escutam suas histórias, são muitos os fantasmas que também os povoam, têm residência fixa. Enquanto tece as linhas de suas narrativas, o personagem enfrenta os próprios demônios – e olha, não são poucos. “O livro dos mortos” é o novo trabalho de Lourenço Mutarelli, lançado pela Companhia das Letras.

Pompeu é Lourenço?

Assim como Pompeu, Mutarelli é um exímio contador de histórias. Mas se o autor tece histórias, sobretudo, a partir dos livros que escreve, o personagem as narra pessoalmente para clientes especiais. Numa espécie de sessão de terapia invertida, eles pagam para ouvi-lo contar tanto aquilo que um dia viveu, quanto aquilo que observa hoje. O passado e o presente. A realidade passa a fazer sentido apenas quando mediada pelo olhar desse narrador insólito. A mulher desejada é ainda mais desejada quando observada por Pompeu. Até o gozo parece mais intenso quando filtrado pelo olhar do contador. “Você percebe como a minha cabeça vai se perdendo? Percebe como salto de um assunto pro outro. Mas eu sempre amarro no final. É quase um malabarismo mental. Uma coisa me leva a outra que me leva a outra… e assim vou indo”.

Pompeu é e não é Lourenço. Mutarelli escreve neste novo trabalho uma “autobiografia hipnagógica”. Hipnagógico é aquele estado entre a vigília e o adormecer. Aquele momento de quase mergulho nos braços de Morfeu. Pois é isso o que propõe o autor na construção da narrativa, num texto em que imagens oníricas, surreais convivem com a aparente normalidade do estado das coisas; e a não-linearidade dos sonhos se apresenta também como marca do texto. Uma narrativa que é permeada por duplos – a começar pelo próprio Pompeu-Lourenço -, acontecimentos aparentemente inexplicáveis e repetições – tanto de temas, quanto de situações. Como um sonho que nos persegue noite após noite, há um forte caráter cíclico nas cenas narradas. Mas a cada repetição parecemos encontrar uma pista sobre o porvir.

O sono e o processo criativo

Lourenço não nos confidencia apenas aquilo que viveu, mas também aquilo que sonhou. E há, ainda, uma terceira categoria: aquelas lembranças que o autor não pode confirmar se realmente aconteceram ou se foram fruto de sua mente. “É tão difícil eu recordar um sonho. Geralmente meus sonhos são tão cotidianos, corriqueiros, que quando acordo não tenho certeza se foi um sonho ou algo real”.

O sono é uma questão fundamental no cotidiano do autor, que reflete diretamente em seu processo criativo, nas imagens que constrói em texto, recortes e desenhos. Por diversas vezes, seu narrador descreve as infrutíferas tentativas de dormir. Uma das imagens mais constantes é a de um espelho d’água. Espelho este que ele nunca consegue mergulhar. “O meu problema é justamente com a transição. É tão difícil de explicar. Mas eu diria que é isso. Tenho dificuldade em transitar entre a vigília e o sono. Por isso essa minha insônia terrível”.

Uma honestidade brutal

Mutarelli é de uma honestidade, por vezes, brutal em “O livro dos mortos”. São muitos os fantasmas que ele enfrenta nas relações com o pai, com a mãe e com a companheira, a professora e escritora Lucimar Mutarelli, por exemplo, que tomam forma neste novo livro. “É estranho porque odeio reviver meu passado. E por alguma razão tenho feito isso agora”. É corajosa a maneira como o autor se abre ao desconhecido, se abre ao possível leitor, revelando traumas guardados e sofridos ao longo de anos, desde a infância até tempos recentes. “Venho tentando guardar coisas que não cabem mais em mim. Isso me consome. Também não consigo esquecer. (…) Acredito que por isso bebo cada vez mais e mais. Para anestesiar isso que me devora”.

O autor narra também os dois infartos que sofreu em 2020. Em um dos infartos, o escritor sofreu duas paradas cardíacas. Lourenço morre duas vezes e é ressuscitado. Os prontuários médicos das ocasiões e de uma cirurgia posterior integram a narrativa, trazendo uma camada bem interessante entre o ficcional e o biográfico. “Não há nada lá. Mesmo assim posso garantir que algo veio comigo. (…) Algo veio em meu corpo. Veio da morte. (…) Não sei o que é, mas sei que não é bom”. É importante destacar que, na ocasião do segundo infarto, este “O livro dos mortos” já estava praticamente pronto. Mas a experiência de retornar da morte o obrigou a retomar o texto.

Um mergulho na mente criativa do autor

Este novo livro é também um enorme apanhado de tudo aquilo que povoa a cabeça do escritor paulista. Lourenço mergulha na mitologia grega, na filosofia, no cinema, na literatura clássica e contemporânea, na música, entre outros. É genial a maneira como ele digere e absorve um sem fim de referências, que passam a fazer parte de seu próprio universo criativo. Mutarelli faz um uso surpreendente das rodas de rodapé no livro. Estas notas são quase uma obra à parte. E são nelas que ele vai se aprofundar em diferentes manifestações artísticas e na relação destas com seu trabalho. Sobre as notas, ele destaca no início do livro: “Não visam explicar nada e tampouco contextualizar coisa alguma. Servem quase como ilustrações. São uma forma de dividir o que de mais marcante li em minha vida.”

Com “O livro dos mortos”, Lourenço Mutarelli nos entrega sua grande obra. Um volume que parece acumular tudo o que esse artesão das imagens e das palavras construiu ao longo de mais de trinta anos de carreira, num trabalho que, acredito, não encontra par na cena brasileira hoje. Parece haver um pouco de cada uma de suas obras ali: os quadrinhos, os romances, as peças teatrais, os papéis no cinema e seu trabalho nas artes plásticas – vale dedicar um momento, aliás, à arte da capa, criada a partir de caligrafia e recortes, pelo próprio. Sua “autobiografia hipnagógica” é genial por nos deixar com mais perguntas do que respostas. Assim como os sonhos, não é mesmo? Um quebra-cabeça delirante e surpreendente.

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– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel. A foto de Lourenço Mutarelli é de Marcos Vilas Boas)

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