Cinema: “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” mistura humor pastelão, filosofia e multiversos em um dos filmes do ano

texto por Renan Guerra

Evelyn Quan Wong (Michelle Yeoh) tem uma vida comum e um tanto quanto caótica. Seu universo gira em torno de cuidar do pai idoso, de seu negócio (uma pequena lavanderia familiar) e tentar colocar as contas em dia para não parar na malha fina do imposto de renda. Tudo isso desmorona quando uma outra versão de seu marido, Waymond Wang (Ke Huy Quan), aparece e lhe joga em uma viagem temporal por diferentes multiversos, onde Evelyn é confrontada com múltiplas Evelyns.

A premissa do multiverso de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” (“Everything Everywhere All At Once”, 2022) é que você cria um sem-número de outros universos cada vez que você opta por uma escolha mínima em sua vida e você pode acessá-los através de meios inesperados, como um pequeno corte na mão, uma palavra diferente que você diga ou um movimento inesperado. Lendo assim, parece até uma premissa em voga no universo do cinema, já que temos vários produtos pop brincando com esse conceito de multiversos e universos paralelos de um mesmo personagem, porém a escolha dos diretores é nos levar por algo completamente inesperado e extremamente inventivo.

Daniel Kwan e Daniel Scheinert, conhecidos como “The Daniels”, já haviam chamado atenção com o seu filme de estreia, “Um Cadáver para Sobreviver” (“Swiss Army Man”, 2016), uma comédia absurda em que Paul Dano anda pra lá e pra cá com o seu amigo cadáver interpretado por Daniel Radcliffe. Com piadas de peido e um humor bastante divisivo, o filme gerou um buzz entorno dos diretores. Aqui em “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” eles levam para outros patamares esse humor absurdo e gráfico, porém atrelam isso a um universo intrincado de fantasia e filosofia. É até difícil explicar esse filme em palavras, já que a mistura de gêneros cinematográficos é alinhada com um impacto visual potente, tudo bem amarrado por reflexões interessantes sobre família, sexualidade, liberdade e, num todo, o sentido da vida em si.

De ritmo ágil, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” passeia com segurança entre o drama, a ação, a ficção científica e a comédia pastelão, tudo isso de forma sagaz e é segurado por um elenco poderoso. Michelle Yeoh é a grande estrela desse filme e consegue nos encantar com uma Evelyn complexa e cheia de nuances. Aos 59 anos, Yeoh tem uma carreira múltipla, foi Bond Girl, fez filmes de ação, comédia e artes marciais e se tornou uma estrela malaia em Hollywood, por isso mesmo é tão bom vê-la em um papel que valoriza todo seu talento, dando a ela a chance de entregar uma das grandes atuações de sua carreira.

Além dela, o elenco ainda tem excelentes surpresas: Stephanie Hsu (de “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis”, 2021) consegue dar conta de bater de frente com Yeoh, mostrando-se segura mesmo com todas as transformações de sua personagem. Ke Huy Quan é uma surpresa curiosa no filme, já que seu rosto adulto é quase desconhecido do público, porém sua carinha jovem é marcante em longas como “Indiana Jones e o Templo da Perdição” (1986) e no clássico da sessão da tarde “Os Goonies” (1985). Quan é encantador na tela e enche seu personagem de humanidade que dá vontade de abraçá-lo. Além disso, ainda temos a surpreendente presença de Jamie Lee Curtis, que traz o seu timing cômico de forma excelente para o filme, se entregando em uma atuação que já pode figurar entre o seu rol de papéis icônicos.

Nesse texto tentamos evitar ao máximo os spoilers de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, pois o filme merece a surpresa da descoberta de seus absurdos e de seus momentos mais inimagináveis. De todo modo, é interessante pensar que os Daniels fazem aqui um filme extremamente inventivo, mas que celebra o cinema em suas diferentes formas. Há uma basilar referência do cinema pop norte-americano, mas também uma conversa muito interessante com o cinema popular chinês, especialmente os filmes de artes marciais, como os de Jackie Chan e da própria Yeoh nos anos 80 e 90. Além disso, há diversas referências ao cinema de Hong Kong, com homenagens diretas e indiretas ao cinema pastelão de Stephen Chow (do clássico “Kung-Fusão”) e ao universo estilístico de Wong Kar-Wai, tanto que um dos multiversos de Evelyn é uma clara referência à “Amor à Flor da Pele” (2000).

Oscilando entre o riso frouxo e a delicada emoção, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” é a prova de que temos muitas histórias boas a serem contadas. E a diversidade do filme é só mais um ponto nesse mar de acertos: um elenco de atores maduros em papéis importantes e interessantes, uma família chinesa apresentada de forma não caricatural e uma representação inteligente de mulheres lésbicas, tudo isso mesclado com uma linguagem pop, irreverente e encantadora. “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” é um dos grandes lançamentos do ano e pode ser um interessante ponto fora da curva para que as produtoras vejam a importância de se investir em novas narrativas e não apenas em remakes-reboots-releituras. Assista o quanto antes!

OS FILMES DO OSCAR 2023

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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