Cinema: Desavergonhadamente engraçado, “Os Banshees de Inisherin” é daqueles filmes que merecem serem vistos no cinema

texto por Marcelo Costa

Em uma velha canção inconsistente felizmente esquecida que se livrou de sua discografia oficial, mas ganhou lançamento em um álbum póstumo (ó, mundo cruel), “Por Aí” (de 1991), Cazuza avisa que só “não há perdão para o chato”. Ele vai além: “o reino dos céus é dos chatos”. Mas o que fazer quando todos ao redor são chatos? Superlotar o paraíso? Em seus “Provérbios do Inferno”, por sua vez, William Blake vaticina: “Se os outros não fossem tolos, nós teríamos que ser”. Isso é fácil de dizer numa cidade de 100 mil habitantes ou numa megalópole de milhões em que todo dia um vendedor de sonhos e um sonhador saem de casa para trabalhar (quando se encontram, dá negócio), mas como analisar essa questão numa pequena ilha pouco povoada?

Inisherin é uma ilha remota (fictícia) na costa da Irlanda. É aquele tipo de lugar deslumbrante que deixa a pessoa que o visita sem ar, mas que poucos corajosos se atrevem a viver nela. Para se ter uma ideia, as ilhas Inishmore e Achill Island, que serviram de locação para “Os Banshees de Inisherin” (“The Banshees of Inisherin”, 2022), indicado a nove Oscars, incluindo Melhor Filme, Diretor, Atores e Roteiro, ostentam uma população de 760 e 2500 habitantes, respectivamente (no verão, a população de Achill quase dobra para 4.000 “com turistas atraídos por sua beleza desarmante”, avisa uma reportagem do The Times). É preciso estar muito em paz com seus fantasmas, para o bem e para o mal, para viver nesse pequeno oásis distante do mundo, mesmo em 1923 – e com uma guerra civil dividindo o continente.

É nessa diminuta ilha irlandesa fictícia pouco habitada e de visual divino que vivem dois grandes ex-amigos: Pádraic Súilleabháin (Colin Farrell) e Colm Doherty (Brendan Gleeson, os dois absolutamente excelentes). Eles iam diariamente ao boteco local beber cerveja escura e jogar conversa besta fora, mas, do nada, Colm decidiu que não queria mais perder tempo com bobagens, o que incluí, logicamente, conversar com Pádraic, e sua decisão mergulha o amigo e a ilha em uma densa área movediça de emoções. Ainda integram a rotina pouco usual do vilarejo a irmã culta de Pádraic, Siobhán (a ótima Kerry Condon), a jumentinha Jenny e Dominic (Barry Keoghan, do aterrorizante “O Sacrifício do Cervo Sagrado”) além de um policial, um padre, a dona de um mercadinho, uma bruxa e o dono do bar em que Pádraic e Colm se encontram – e não mais conversam.

“Os Banshees de Inisherin” é aquele tipo de filme esquisito que a Academia adorar inserir ali no meio da lista de indicados para provocar a audiência mais (besta e) conservadora – e que, por sarcasmo, corre por fora como azarão ameaçando o favorito “Tudo ao Mesmo Tempo em Todo Lugar” – as bolsas de apostas apontam 65% de favoritismo para cada um nesta semana. Seu ritmo é lento, as passagens são monótonas, a palavra “chato” é repetida 17 vezes (sem contar as desse texto e as da canção de Cazuza, aliás, parceria com Arnaldo Antunes e a esposa Zaba Moreau) e o resultado final é mórbido e deliciosamente cômico, afinal, pode prestar atenção, é comum rir de nervoso, de maldade ou de comicidade diante da solidão, da depressão e da selvageria. Das coisas que, inevitavelmente, acontecem…

Terceira parte de uma trilogia sobre ilhas irlandesas, das quais as duas primeiras foram encenadas em teatro, “Os Banshees de Inisherin” é o mais novo produto do cineasta londrino Martin McDonagh, que começou meio Danny Boyle no bom “In Bruges”, de 2009 (com a mesma dupla de assassinos, ou melhor, atores principais, Colin Farrell e Brendan Gleeson, e também um visual maravilhoso, o da cidadezinha belga que tem o centro antigo mais bem conservado da Europa), e entregou suas referências – Irmãos Coen – em “Três Anúncios Para Um Crime” (2017) ao “emprestar” Frances McDormand para o papel principal (e ao menos devolve-la com um Oscar em mãos para ela colocar ao lado daquele que ela ganhou com o clássico “Fargo”, de 1997), claro, tudo desenrolado de um jeito totalmente britânico.

Desavergonhadamente engraçado, leve (apesar do tema e ar sombrios), com atuações seguras e deliciosamente bocós, um roteiro primoroso e uma bela fotografia, “Os Banshees de Inisherin” é daqueles filmes que merecem serem vistos em tela grande (cinema… lembra?), pois a paisagem (quase que maior que a vida de todos que a habitam) é, inevitavelmente, um personagem importante da história. Das nove indicações deverá levar pra casa apenas Roteiro Original (uma pena não existir Oscar para Melhor Sarcasmo), mas é bem mais interessante (e profundo) que alguns queridinhos da temporada. Para ver, rir e comprar uma passagem (de IDA E VOLTA) para a costa irlandesa. E, quem sabe, romper com aquele amigo chato enquanto assovia “Wave of Mutilation”… Quem começa?

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– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

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