Ao vivo: Manu Chao encanta fiéis em São Paulo com um show cansativo e abaixo do seu potencial

Texto por Leonardo Vinhas
Fotos por Cine Joia

José-Manuel Thomas Arthur Chao é um personagem com uma história singular na música e na vida. Nascido na França em uma família de exilados espanhóis, cresceu entre intelectuais amigos de seu pai (o jornalista e escritor Ramón Chao), viveu sua juventude na cena de squats do underground parisiense, foi cofundador de uma das maiores e mais influentes bandas francesas (o Mano Negra) e se tornou uma estrela pop improvável no começo dos anos 2000, disfrutando hoje de um curioso status de “popstar de culto”.

Já há alguns anos, Manu Chao faz shows onde quer, quando quer. Com o Mano Negra e também como solista, estabeleceu uma carreira nos seus termos. Isso inclui criar uma estética própria, gravar participações em discos de artistas desconhecidos, quase nunca dar entrevistas e poder fazer shows gratuitos ou beneficentes. Mas também inclui se auto repetir, ao ponto de usar a mesma base para várias canções (a base de “Bongo Bong”, que já é uma versão de um original do Mano Negra, foi reaproveitada em outras três canções, para ficar em um só exemplo), usar seus bordões até a exaustão e, por um período, ter alimentado um discurso anticapitalista enquanto se valia desse mesmo capitalismo para enriquecer.

Difícil saber se essas e outras dimensões desse personagem complexo eram conhecidas do público que abarrotou o Cine Joia em duas noites completamente sold out, 11 e 14 de fevereiro – aliás, tamanha foi a demanda que houve até falsificação de ingressos, levando a casa a lançar uma campanha de alerta contra esse tipo de golpe. Difícil sabê-lo porque, primeiro, era um público majoritariamente jovem, algo surpreendente para um artista com 39 anos de carreira e que teve seu auge de popularidade há pouco mais de 20 anos. Segundo porque tamanha foi a devoção dedicada a ele que não é exagero dizer que a coisa se aproximava da idolatria.

O Scream & Yell esteve presente na apresentação do dia 14, em uma noite especialmente abafada de um verão já bastante quente. Manu subiu ao palco com 40 minutos de atraso, precedido por uma discotecagem tão simpática quanto óbvia de Sebastián Piracés-Ugarte (Francisco El Hombre). Acompanhado do guitarrista argentino Lucky Salvadori, seu parceiro desde 2019, e do percussionista brasileiro Macaxeira Acioli, do Muntchako, Chao entrou ovacionado como se fosse o Messi aparecendo em frente à Casa Rosada após a conquista da última Copa do Mundo. Sério: há anos eu não presenciava uma acolhida tão efusiva a um artista no palco.

A bem da verdade, essa reação passional e ruidosa se repetiu ao longo de todo o show. Cada pequeno ação de Manu – desde uma mudança em algum verso para incluir uma referência brasileira até um simples levantar da cadeira – era ovacionado a plenos pulmões, além de palmas, braços para o alto e até pulos. Era uma plateia devocional, e o artista não se fez de rogado, entregando com sinceridade e intensidade tudo que aquele público esperava.

E é nesse ponto que a avaliação do show se torna mais complexa. O que esse público esperava? A fama do Mano Negra foi construída, em parte, graças às suas apresentações ao vivo, absolutamente imprevisíveis, musicalmente poderosas, e quase sempre inesquecíveis. Já em carreira solo, Manu abandonou a polirritmia e a riqueza de detalhes e matizes que sua antiga banda dominava, e consolidou um estilo monocórdico e acelerado – uma espécie de micareta ska-punk latinizada, em que empilhava pout-pourris das canções que descaracterizavam totalmente suas versões em estúdio, repetindo trechos ao longo da noite e testando a paciência com a repetição de seus bordões. Essa sempre foi a tônica dos seus shows, e quem já viu qualquer apresentação anterior, um vídeo no Youtube ou mesmo ouviu os álbuns ao vivo “Radio Bemba Sound System” (2002) e “Baionarena” (2008) já sabia bem disso.

Em formato acústico, a coisa ficou um tanto diferente. Manu pegou bem mais leve nos pot-pourris, não falou “calavera no llora” nem “bombala bombala bombala bombala” nenhuma vez (ok, teve alguns “por la carretera”) e, mais importante, aproveitou ao máximo o talento de seus companheiros, especialmente de Luck Salvadori (e com todo respeito ao talentosíssimo Macaxeira Acioli, foi uma pena que não tivesse vindo com seu percussionista habitual, o grande Garbancito, nos privando de ver dois ex-Mano Negras no palco). Deixou os dois deitarem e rolarem, e seus esmerados solos não eram demonstrações ocas de virtuosismo, e sim trechos breves que valorizavam as canções.

Também vale notar que escolheu um setlist bem pouco óbvio (o mesmo nas duas noites),deixando de lado até mesmo alguns hits (“Rumba de Barcelona”, “Rainin’ in Paradize”, “Mentira” e “Minha Galera”, por exemplo), mas incluindo surpresas como abrir o show com “Garçom” (de Reginaldo Rossi), canções pouquíssimo conhecidas nunca registradas em estúdio (“Pará de Bebe”, “Eu Beijei o Sol”, “Las Alas Rotas”) e até covers (“Huelga de Amores”, da banda argentina Divididos, e “Cómo que No?”, do uruguaio Gustavo Pena, mais conhecida no Brasil pela versão do Onda Vaga). No bloco final, uma saraivada de suas canções mais emblemáticas: “Desaparecido”, “Clandestino”, “Welcome to Tijuana”, “Bongo Bong” e, claro, “Me Gustas Tu”.

O problema? Mesmo com o talento dos envolvidos, quase tudo soava mais do mesmo. E isso não tinha a ver com o formato acústico tampouco com as composições em si, e sim com a opção de manter a força rítmica como eixo de tudo, recorrendo quase sempre a bases muito simples. No início, o peso e a intensidade surpreenderam, mas depois começaram a se tornar repetitivos, e cada canção que fugia um pouco desse padrão, como “Pará de Bebe” e “La Vida Tombola”, se configurava não só um alívio mas também um ponto alto.

E se por um lado esse formato deu nova vida a canções como “Malegria” e “Amalucada Vida” (essa, quase irreconhecível), por outro descaracterizou pérolas como “Mala Vida” (a única do Mano Negra a figurar no set) e “Clandestino”. Mas o duro mesmo foi o quanto uniformizou as canções, tornando as duas horas de show cansativas para quem não estava na vibe devocional. No quarto final do show, uma parcela significativa começou a desistir da apresentação. Pode ter sido pelos 40 minutos de atraso terem empurrado o término do show para um horário avançado? Sim, mas não dá para descartar que pode ter sido por fastio.

Ainda assim, não é justo menosprezar a energia e a entrega empreendidas pelo trio. E também é preciso mencionar que Manu poderia estar engordando a conta bancária com todos os truques nostálgicos do showbusiness – poderia, por exemplo, ter aceitado alguma das muitas ofertas milionárias para reagrupar o Mano Negra (algo que todos os demais ex-integrantes já declararam querer) ou sair nessas enganosas “turnês comemorativas” de álbuns clássicos. Alguém tem alguma dúvida de que uma tour comemorativa de “Clandestino”, que completa 25 anos em 2003, seria um sucesso?

Um show de Manu Chao em 2023 é um evento peculiar, que se equilibra entre a coerência e dignidade de sua postura e a limitação de sua proposta musical, entre a adoração dos fãs e a falta de fluidez de sua proposta musical. Com isso, torna-se o tipo de show que encanta os fiéis mas dificilmente fala para não-convertidos. E no meio disso, quem só aprecia sua música sai se sentindo feliz por ver o músico tão cheio de vida e alegria no palco, mas decepcionado por ele entregar algo que não está à altura do que sabidamente é seu melhor.

Leia também: Cinco canções para entender Mano Negra

Leonardo Vinhas é jornalista, escritor e produtor cultural. Colabora com o Scream & Yell desde 2000, onde também assina a coluna Conexão Latina. É também colaborador eventual dos sites Music Non Stop (Brasil) e Zona de Obras (Espanha).

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