Faixa a Faixa: “Ná Ozzetti canta Zécarlos Ribeiro”, por Zécarlos Ribeiro

faixa a faixa por Zécarlos Ribeiro

Há tempos Zécarlos Ribeiro vem burilando a ideia de um trabalho solo. Ele e Ná Ozzetti começaram a carreira juntos no grupo Rumo, um dos principais nomes da Vanguarda Paulista nos anos 1980. Principal compositor do Rumo junto com Luiz Tatit, Zécarlos é autor de clássicos como “Ladeira da Memória”, “Falta Alguma Coisa”, “Bem Alto”, “Jackson Jovem” e “Quero Passear”, e continua produzindo. “Tem músicas que venho gravando para registro, mas sempre vou mostrando pro pessoal do Rumo. E desde o início, quando ouviu, Ná gostou de ‘Roupas no Varal’, então separei pra ela cantar”, relembra o compositor.

“Achei de um lirismo, tão imagético e imediatamente fiquei com vontade de cantar ‘Roupas no Varal’. Contei pro Zé, mas ainda não sabia de seus planos de lançar as canções. Quando ele me contou sobre o projeto, me entusiasmei e me ofereci para cantar essa primeira leva”, revela Ná. Daí em diante, as conversas caminharam até o registro do EP “Ná Ozzetti canta Zécarlos Ribeiro”. “As gravações ficaram lindas. Estou muito feliz com o resultado. Foi um presente!”, comenta Ná Ozzetti.

“A primeira canção que gravei no Rumo é do Zécarlos. Se chama ‘Cansaço’ e o canto era totalmente entoado, não tinha uma melodia óbvia. Foi uma descoberta fundamental para abrir a minha escuta e a forma de entender uma canção”, lembra Ná. “As canções do Zé que eu cantei no Rumo vinham com a matriz do canto falado. E com o tempo ele foi descobrindo uma maneira muito particular de compor. A canção tem um caminho inesperado. Eu gosto muito dessa singularidade e gosto muito de cantá-las”, conta Ná.

Ná Ozzetti canta Zécarlos Ribeiro” reúne duas composições solo de Zécarlos, duas parcerias com Geraldo Leite – outro companheiro do Rumo, e uma com Danilo Penteado, responsável pela produção, direção musical e arranjos do EP. A gravação, mixagem e masterização são do Jonas Tatit. A capa é de Gal Oppido, mais um integrante do Rumo que abraça o trabalho solo do companheiro (e que também fez a foto que abre o texto). Abaixo, Zécarlos comenta as faixas do EP.

01. “Sonho” é uma parceria com Danilo Penteado. Normalmente começo burilando uma composição pela melodia ao violão, mas desta vez foi diferente. Cantarolei o texto bem da maneira como os vendedores oferecem seus produtos no trem, que às vezes pego para ir ao Centro de São Paulo: “Olha o sonho, olha sonho… Tá no prazo, tá na validade!”. Sugeri uma ideia de arranjo e ele finalizou, uma experiência de composição totalmente nova pra mim. E, claro, o Danilo Penteado é um super instrumentista, extremamente criativo e deu os contornos finais para a composição.

Voltando aos vendedores no trem, que via de regra são abordados por fiscais… Penso neles da mesma forma como os artistas circenses que ficam nos semáforos, só que neste caso vendendo o que podem, inclusive doces, balas… Freud que me perdoe alguma imprecisão, o objetivo é musical, é falar da arte de sobreviver e, através da palavra, refletir sobre a desigualdade. É lembrar que, mesmo com preparo intelectual, nos rendemos muitas vezes ao ego. E fechamos os olhos fingindo que não vemos esse drama social.

02. “Laura” é uma homenagem para uma tia, que mora na cidade de Conceição do Rio Verde, Sul de Minas, próximo de Lambari, Baependi, Caxambu… Como tantas tias, é destas que são incapazes de matar uma formiga, se dedica a cultivar suas flores, seu jardim, sempre de bom humor!! É comum os vizinhos chegarem no portão e chamá-la, mesmo porque não tem interfone e nem campainha: “Dona Laura!! Laurinha!!”. Da mesma forma, quando chegamos em visita fazemos questão de chamá-la ao portão assim, em tom de brincadeira.

O texto é simples, singelo, tem uma série de elementos do cotidiano e ao mesmo tempo situa isso no tempo, musicalmente, trazendo memórias… A opção pelo samba é uma inspiração de quando ouvia rádio com ela, que gosta muito de música, de Noel Rosa interpretado pela Aracy de Almeida, de Paulinho Da Viola e João Gilberto. Para falar carinhosamente da Tia Laura, fui buscar essas referências musicais, a maneira de cantar de João Gilberto e Paulinho da Viola – duas vozes que julgo extremamente carinhosas ao interpretar uma canção. Mas veja, acontecem coisas imprevisíveis quando alguém com o talento da Ná interpreta uma canção!! “Simplesmente acontece”, como diria Cartola. Quando ouço a interpretação da Ná, identifico referências muito elegantes do canto de Carmem Miranda, outra voz que habita o universo musical da Dona Laura!

03. “Vamos desembarcar” tem duas motivações. Nos primórdios do Rumo, eu fiz um refrão que dizia “a rua é um rio e todos os rios deságuam no centro da cidade”. A ideia ficou lá atrás, guardada, mas Gal Oppido – arquiteto como eu –, vez ou outra citava o verso em nossos encontros. Essa provocação do Gal ficou na minha cabeça – uma hora eu teria que concluir a canção. Um belo dia, levei minha mulher na feira rapidamente e fiquei no carro esperando, observando a chuva que caía, os pingos no para-brisa que iam se unindo e escorrendo… naqueles dias também havia ocorrido a tragédia em Mariana. Todos aqueles pensamentos me levaram a concluir a canção. “Pingo com pingo / Gota com gota / Gota com pingo / Se unem no vidro, explodem no chão / Pelo meio fio, enfim / As águas vão rolar / A rua é um rio / Que deságua nos braços do mar / Um mar de lamas / Tragédias urbanas…”

04. “Uma Receita de Amar” é uma parceria com o mano Geraldo Leite. A melodia é minha mas, como sempre, eu sugiro uma frase, um primeiro refrão… e o Geraldo veio com essas receitas, o que ficou muito interessante. Uma maneira incomum de compor, sem clichês amorosos, mas falando de amor, lidando com o corriqueiro de uma forma poética, misturando receitas culinárias com a necessidade de encontrar alguém e a ideia de conquistar o companheiro pelo estômago. “Com sede, com fome procuro na noite / Até alguém encontrar… Dá um pulo na feira, pega uns limõezinhos / Corta em pedaços / Gelo e uma branquinha, açúcar a gosto / Pronto, já tá bom / Muito bem, muito bom / Deve haver um lugar / Que abra o paladar / Que nos dê um sossego / Pra depois namorar / hum, hum, hum… / Uma receita de amar…”

05. “Roupas no Varal” é outra parceria com Geraldo Leite, com quem já compus uma série de canções. Às vezes falo de questões mais reflexivas, mas sempre gosto de ter por base o cotidiano. Tudo que acontece no meu dia a dia vou transformando em música e, durante a pandemia, minha rotina incluiu estender as roupas no varal. Eu já tinha o refrão quando mandei para ele. Porém, toda a construção poética vem da inspiração do Geraldo Leite.

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