Entrevista: Jerry A. Lang fala sobre seu novo disco, a sua autobiografia tripla e o legado do Poison Idea

entrevista por Luiz Mazetto

Apontado por Buzz Osborne, vocalista e guitarrista do Melvins, como responsável por ”trazer o medo de volta ao punk, onde ele pertencia”, o Poison Idea ficou na ativa oficialmente entre 1980 e 2019 e nesses quase 40 anos (com algumas pausas aqui e ali) lançou discos essenciais para o punk/hardcore mundial, que vão desde a estreia com o histórico EP “Pick Your King”(1983), passando pelo intenso full de estreia “Kings of Punk” (1986) e o seu disco mais famoso, “Feel the Darkness” (1990), que traz algumas das músicas mais icônicas da banda, como “Plastic Bomb”, “Just to Get Away”, “Taken by Surprise”, “Alan’s on Fire” e “The Badge” – essas três últimas, inclusive, tiveram covers feitos por ícones do metal como Metallica, Machine Head e Pantera, respectivamente.

Após o fim oficial do Poison Idea, o vocalista Jerry A. Lang tem se mantido bastante ocupado. A lista inclui um álbum com a banda belga de hardcore Crime Scene, “Dark Tidings” (2023), seu primeiro disco solo “From the Fire Into the Water” (2022), que traz o músico em colaborações com uma variedade de bandas e artistas, e mais recentemente um EP intitulado “Life After Hate”, com os holandeses do Kings of Oblivion, que traz duas músicas inéditas e quatro covers de nomes menos conhecidos do punk/hardcore, incluindo uma versão matadora de “Degeneration”, do The Blitzz, em que Jerry mostra toda a sua versatilidade como vocalista, soando em alguns momentos como outro nome essencial da cena punk dos EUA, Gary Floyd, do Dicks e Sister Double Happiness.

Como se isso tudo isso não fosse o bastante, Jerry também lançou em 2022 uma autobiografia tripla, intitulada “Black Heart Fades Blue”, uma coleção em três volumes de escritos ora duros, ora divertidos, mas sempre honestos, em que o músico abre as páginas da sua vida desde a infância até os tempos atuais, passando por toda a sua carreira com o Poison Idea e muito mais.

Na entrevista abaixo, feita por videochamada no final de 2023, um mais do que simpático e atencioso Jerry fala sobre os três volumes da sua biografia, os seus trabalhos solos e colaborações mais recentes, relembra sua carreira com o Poison Idea e comenta sobre os covers da banda feitos por nomes que vão desde Metallica e Pantera até Ratos de Porão e Wolfbrigade, conta sobre sua amizade com Iggor Cavalera e a admiração pelo Sepultura, revela quais suas bandas favoritas de black metal, como os Ramones mudaram a sua vida e mais.

Recentemente comecei a ler o terceiro livro da sua biografia e estou realmente gostando. Pelo que me pareceu, os dois primeiros livros são um pouco mais duros, com histórias mais pesadas. Eles foram mais difíceis de escrever? Não sei como foi, se você escreveu os três livros em seguida ou se já tinha material pronto para um dos livros antes, mas gostaria de saber como foi o processo de decidir publicar três livros separados e se teve algum que foi mais difícil para você.
Na verdade, era um livro só gigante e a editora disse que estava muito grande e decidiu dividir em três. Porque eu apenas escrevi. Basicamente, era como estar em um confessionário, seja em uma igreja ou em uma delegacia, e você é pego pelos seus crimes. Você é pego e apenas diz: “Eu fiz isso, eu fiz isso. O que você quer saber?”. E aí você apenas conta tudo, confessa tudo e é tipo “acabou tudo”. Foi o que fiz e então apenas entreguei o livro para eles. Foi difícil reviver algumas daquelas coisas, porque nunca falei sobre isso realmente antes e tive de voltar. Senti como se um peso fosse tirado de mim. E você também está confessando, o que quer seja, não sei, algo como “Eu fiquei bêbado e caí de uma janela, blá blá blá”. E no futuro as pessoas poderão falar “eu vi você uma vez e você estava bêbado e caiu de uma janela” e eu poderei dizer “eu sei, eu contei isso”. É uma confissão, é uma confissão. Como eu disse, foi como retirar um peso, foi algo meio libertador.

Houve alguma inspiração, algo em especial que te fez querer contar a sua história? Foi algo que você iniciou durante a pandemia ou já trabalhava no livro antes disso?
Não, quando o meu melhor amigo, Tom Pig (ex-guitarrista do Poison Idea), morreu (em 2006), as pessoas logo em seguida começaram a falar essas coisas loucas sobre o que tinham visto, a versão delas da verdade. Elas diziam coisas como “ah, eu vi ele fazer isso ou aquilo” e elas eram muito exageradas e eu ficava “não, ele não fez isso, eu sei, ele era o meu melhor amigo” e elas falavam “bom, eu vi ele fazer isso”. E eu cheguei em um momento da minha vida em que pensei que tudo que eu já tinha feito, tudo que tinha para fazer e que apenas queria meio que parar. Pensei que, quando eu morresse, gostaria que a minha história fosse contada da maneira que eu lembrava. Então escrevi isso (o livro) como uma confissão. Se você colocar quatro pessoas numa sala e algo acontecer, você terá quatro versões diferentes sobre o que elas viram. Todo mundo terá visto algo diferente, não importa o que seja. Mas essa é a maneira como eu vi. Essa é a minha vida e a maneira como a enxerguei. Então pensei que era a hora de colocar isso no papel antes de eu partir. E realmente pensei que fosse embora. Eu não sei o que ia acontecer, não tinha nada planejado, mas eu gostaria de escrever a minha história antes de partir.

E há algum livro autobiográfico de outros músicos que te inspiraram de alguma maneira? Quando estava lendo o seu segundo livro especificamente, pensei na biografia do Mark Lanegan em alguns momentos, por exemplo. Por isso, gostaria de saber se houve alguma biografia que te marcou nesse sentido?
Ouvi algo recentemente, eu compro livros o tempo todo, e alguém falou: “Você não compra realmente o livro para tê-lo, você compra o tempo para ler esse livro. O que você está comprando é o tempo para ler esse livro”. E eu compro livros, mas nunca compro o tempo para lê-los. E eu li autores antigos, loucos. Sobre livros de músicos, é ruim. Penso que é algo que já foi feito antes em que as pessoas ficam querendo se gabar de algumas coisas e eu nunca faria isso. Não sei, não gosto de ficar falando sobre conquistas. Já vieram pessoas me falar coisas como, “Ah, você devia ler isso e aquilo”. E acho que meu livro não deve ser muito divertido, não é algo relaxante, não é algo que faria as pessoas… como o livro do Lanegan. Já vieram pessoas me falar que eu deveria ler o livro do Lanegan, tipo “Essa parte aqui me lembra do seu livro” e então eu ia ler e era algo muito, muito pesado. Como eu disse, eu não queria me gabar, eu apenas escrevi para tirar isso do meu peito antes de eu seguir para a próxima coisa, qualquer que seja ela. Por exemplo, você não quer assistir a filmes de terror slasher todos os dias para se divertir, você vê esse tipo de filme para ter um tipo de sentimento. Não sei, eu gosto de finais felizes, gosto de coisas que são legais, positivas, é bom ter esses sentimentos. Infelizmente o Mark não conseguiu, e você meio que consegue ver isso no livro. Isso é com qualquer pessoa, você não pode fazer isso, independente de quem você seja. Tipo o John Entwistle, do The Who, você não pode ter 60 anos e usar cocaína, é apenas como as coisas são (nota: o ex-baixista do The Who morreu em 2002). Você tem um número limitado de danças no seu “punch card”, você só tem um número determinado de danças na sua vida. No mês passado, tive pneumonia. E então você vai ao médico, ele pede um exame para ver os seus pulmões e então fala: “Ah, em algum momento das últimas semanas você também teve um ataque cardíaco” e então você fica “Ah, ok, bom, eu não estava usando cocaína”. Então acho que você não precisa forçar os limites, você não precisa ficar andando na beira do precipício porque está sempre lá. Você apenas precisa se cuidar. Meu livro não teve a intenção de ser algo para mostrar como as pessoas podem ser loucas, duronas ou insanas, era para ser apenas uma salada de palavras, eu acho.

No fim de 2022, você lançou um álbum solo intitulado “From the Fire Into the Water” (2022), que traz parcerias suas com diferentes artistas, como The Hard-Ons, Crime Scene e Jenny Don’t and the Spurs. Por isso, queria saber se você está planejando lançar um disco com uma mesma banda, como você fez com o Crime Scene anteriormente, já que esse disco é uma coleção de músicas suas feitas com diferentes artistas.
Penso que esse formato é o melhor porque é uma ótima oportunidade de fazer isso, você pode ter muita variedade, tocar todos esses estilos diferentes e falar de diferentes assuntos. Mas acordei bem cedo hoje e fui para a fábrica buscar o meu novo disco. Ele foi gravado com uma banda de Amsterdã chamada The Kings of Oblivion e nós lançamos o disco (nota: o disco é intitulado “Life After Hate” e foi lançado oficialmente em novembro de 2023).

Ah, isso é demais, não sabia desse álbum.
Então sim, eu adoraria poder… Os Hards-Ons querem fazer, eles estão ficando cansados de tocar porque já fazem isso há 30 anos e eles querem fazer mais um álbum, mais um disco completo com umas 14 músicas. E eles me enviaram as demos e estou meio que trabalhando nisso. Então estou trabalhando com os Hard-Ons, e fiz o disco com o Kings of Oblivion. É divertido poder escolher muitas coisas, mas eu gostaria sim de ter uma banda principal, com as mesmas pessoas, mas é tipo tenha cuidado com o que você deseja porque você pode conseguir e então vai ficar preso com essas pessoas. É tipo um fratricídio, você quer matar o seu irmão (risos).

Você mencionou a Jenny Don’t and the Spurs, que é a banda em que o Sam Henry, do Wipers e Napalm Beach, estava tocando bateria. Conversei com o Sam recentemente, fiz uma entrevista com ele cerca de seis meses antes de ele falecer e ele foi muito legal e gentil comigo. Eu sei que ele era próximo de vocês, chegou a tocar com o Poison Idea. Por isso, gostaria de saber se como você o conheceu, se foi pelo Wipers e Napalm Beach ou se foi por meio de outras cenas em Portland na época?
Não, eu cresci em Portland e havia a cena punk em 1978 quando começou, por volta de 1977, 1978. Já estava rolando há cerca de um ano em Portland e eu ainda estava morando com a minha mãe e o primeiro show maior que eu vi foram os Ramones. Eu também via bandas locais, mas não sabia que havia bandas punks em Portland. Fui em um show em uma pequena casa de shows que tinha aberto há poucos meses e a banda que abriu a noite foi o Wipers. Esse foi o primeiro show deles em Portland. Não fiquei amigo logo de cara com o Sam, mas vi ele tocando com o Wipers de novo alguns meses depois e fui conversar, algo como “ahh, vi sua banda tocar naquele lugar” e ele foi simpático. Então cerca de um ano depois eu entrei em uma banda e vi o Sam e nós nos tornamos… Por mais que sempre tenham dito que o punk era sobre não ter estrelas do rock, sempre houve um tipo de hierarquia, você não podia simplesmente chegar e tomar uma cerveja com os Ramones. Eu faço a mesma coisa quando há jovens, sempre há algo como “saia daqui, moleque, você está me incomodando”. O Sam era alguns anos mais velho do que eu e ele era como “claro, moleque, é isso aí”. Mas ele era gentil. Amo o Sam, ele era um ótimo cara. Vi o máximo de shows que eu consegui com ele. Então ele começou a tocar teclado no Poison Idea. Ele tocou em nossos discos e ele era uma chama muito forte. Ele era talentoso, muito talentoso, como baterista, como tecladista, ele era uma pessoa muito talentosa. Então foi ótimo, tenho sorte de poder ter trabalhado com ele durante esses anos. Nunca pude sentar e escrever com ele ou algo assim, mas ele podia fazer isso. Ele era ótimo, um cara ótimo. Então é, sinto falta dele. O lance é que quando ele morreu tudo aconteceu tão rápido. Eles estavam em turnê, ele ficou doente e a Jenny o levou direto para o hospital. Fiquei sabendo e entrei em contato com ele no Facebook e vi minhas mensagens e pensei “nossa, eu não falava com o Sam há uns seis meses e estou escrevendo agora”. Isso não apenas mostra que você precisa dizer para as pessoas o quanto você se importa com elas todos os dias, mas também que se algum dia eu começar a receber um monte de mensagens de pessoas com quem não falo há seis meses, vou ficar preocupado. Sei lá, se o Ian MacKaye entrar em contato comigo algum dia e disser “aliás, cara, eu sempre pensei que você…”, vou ficar pensando “O que está acontecendo? Alguém sabe de algo que eu não sei?” (risos). Vou ficar preocupado porque isso é uma coisa meio merda de fazer, sabe, de as pessoas começarem a te escreverem de repente (risos).

E você chegou a falar com ele, com o Ian MacKaye, depois de todo aquele lance da capa do disco do Poison Idea (nota: o disco “Get Loaded and Fuck”, de 1988, do Poison Idea, foi relançado no ano seguinte com músicas extras, em uma capa que gerou polêmica por trazer uma imagem das nádegas e do ânus de um homem com os dizeres “Ian MacKaye” ao lado)?
Sabe do que? Eu nem… Quando o disco ficou pronto, nós tínhamos que trabalhar na arte, e nós tínhamos algumas opções de títulos, estávamos como “vamos chamar disso, vamos chamar daquilo”. E não conseguíamos concordar em nada. Então o Tom apenas chegou e falou, vamos chamar o disco de “Ian MacKaye”. Desse jeito. E eu apenas falei “Quer saber? Claro. Por que não? Estou cansado de discutir”. Então honestamente não foi nada pessoal e eu nem dei bola na época, mas acabou se tornando algo maior do que deveria. As pessoas nem se importaram tanto. Mas sim, me desculpe Ian (risos).

Portland fica muito perto de Seattle, onde você teve obviamente o grunge e todas aquelas bandas nos anos 1980 e 1990, mas em Portland houve uma cena anterior que influenciou justamente muitas dessas bandas de Seattle, incluindo Nirvana, Screaming Trees e Mudhoney. De longe pelo menos parece que, no geral, as bandas de Portland, como Wipers, Napalm Beach e Poison Idea, além de outras que se mudaram para a cidade ao longo do tempo como Sleater Kinney, Tragedy e From Ashes Rise, sempre mantiveram um feeling mais underground. O que você acredita que tenha feito com que Portland tenha tantas bandas, não apenas criadas originalmente na cidade, mas que também se mudaram para a cidade com o tempo?
Foram algumas razões. Portland nunca teve a mesma exposição na mídia que Seattle teve. Não havia grandes empresas indo até a cidade e jogando dinheiro nas bandas. Por isso, Portland sempre foi muito underground e “faça você mesmo” (DIY). E também é meio que a história do mundo, pessoas tentando encontrar suas raízes e um lugar para elas, para suas próprias crenças políticas e pessoais, serem pioneiras, mudar e mudar para encontrar seu lugar. É tipo, esse é o mais longe que você pode ir. As pessoas vieram da costa leste para a costa oeste, elas foram para a Califórnia e então começaram a vir da Califórnia pra cá. Aqui é o mais longe que você pode ir, você não pode ir além. Se você continuar, você vai sair na água. Quer dizer, o Japão está logo ali. E é isso. Mas no que diz respeito às pessoas, esse foi o máximo até onde elas se espalharam. Elas ainda têm aquele espírito de serem deixadas quietas e fazendo as suas próprias coisas. Você sempre teve esse espírito pioneiro e sem ninguém te olhando o tempo todo, sem a grande mídia e as grandes empresas esperando algo, esperando algo mágico. Porque não é porque ficam olhando que algo vai acontecer, a mágica acontece quando acontece. Você não pode capturá-la, ela acontece, essa é a razão pela qual isso acontece, porque não está sendo monitorada por homens de negócios e tudo mais. É, Seattle foi algo louco, quando o lance do grunge começou em Seattle foi algo meio da noite para o dia e de repente eu vi tantas bandas glam cortarem os cabelos e colocarem camisas de flanela. Em vez de ficarem fazendo os chutinhos sincronizados no estilo do Bon Jovi, elas começaram a usar heroína dizendo que era isso que todo mundo devia fazer. E o público adorou, o público engoliu aquilo e pensou que era, sabe, mas era tudo falso. Quer dizer, você tem os pioneiros, artistas como o Mudhoney, o TAD e esses caras, esse era apenas o jeito que eles eram. Eles eram apenas caras que curtiam rock, esse era o jeito que eles sempre foram. E esse é o jeito que o Fred Cole (vocalista e guitarrista do Dead Moon que faleceu em 2017) é. E esse é o jeito do Greg Sage (guitarrista e vocalista do Wipers) e do Pig Champion. Esse era apenas o jeito que eles eram, eles não estavam representando um papel. Esse era apenas o jeito que eles eram, o pioneiro gordo do rock da região do noroeste (risos).

Já que você falou sobre diferentes locais e viagens, queria saber se vocês já foram convidados para tocar no Brasil?
Teve uma vez e nós tentamos ir até aí. Porque acho que os Estados Unidos são o único lugar do mundo que não ama realmente o rock. Quero dizer, olha os Ramones aí na América do Sul. Também a Espanha, França, Japão e a América do Sul. Em todos os lugares eles sabem que o rock é mais como uma religião e um sentimento e o que realmente significa. E aqui nos EUA é meio “aqui está o Queens of the Stone Age, isso é rock”. É isso que eles vão te dar esse mês, “aqui tem um pouco mais, Guns N’ Roses, isso é rock”. No mês passado, por exemplo, tivemos muitos shows aqui, como Cosmic Psychos, The Chats e o Viagra Boys de novo, e todas essas coisas novas que estavam fervilhando há alguns anos. É bom ver que as pessoas estão… é como ser batizado de novo. Você vê esses jovens e sempre que eles vêm, é como quando eu era jovem e ia ver os Ramones. Era como se abrisse algo. Sei que a América do Sul é assim também. Os caras do Sepultura, os Cavalera, o Iggor e o Max, eles vieram tocar aqui há algumas semanas, não pude ir porque estava com pneumonia, mas é realmente incrível. Queria muito que as minhas bandas pudessem tocar na América do Sul e receber o mesmo carinho que eles recebem quando vem pra cá, as pessoas apenas os amam. Elas amam o Max e eles são como uma máquina. É insano, é muito bom. Mas eu não consegui ir, esse é o lance de eu ter ficado doente nesse último mês, foi algo que me deixou muito triste. Teve tanta coisa, posso contar nas minhas duas mãos todos os shows que perdi esse último mês. E parecia que não rolava tanta coisa desde a pandemia e de repente os Zombies, minha banda favorita, vêm tocar na cidade e eu estou doente na cama, pronto para morrer.

Acho que no seu segundo livro você diz que um baterista de uma conhecida banda brasileira de metal, que obviamente é o Iggor Cavalera, sempre tentou trazer o Poison Idea para o Brasil. Por isso, queria saber se você lembra quando o conheceu pela primeira vez? Foi em um show do Sepultura ou vocês se conectaram de outra forma? Porque ele e o Max sempre foram muito ligados em punk e hardcore.
Na verdade, eu o conheci pessoalmente (Iggor Cavalera) há alguns anos. Mas eu sempre… Tipo, houve uma época há alguns anos em que muitas bandas de metal estavam colocando adesivos de bandas punk em seus instrumentos e tudo mais e então eu vi uma banda como o Slayer com adesivos do Black Flag e pensei que devia escutá-los e foi como “bom, isso não é punk, mas eu consigo ver”. Mas com o Sepultura, lembro de ver eles antes de ouvi-los. Então quando os escutei, eu pensei “bom, isso é mais” – eu podia meio que escutar o casamento tipo entre o Olho Seco e o Sepultura. Porque era meio que o mesmo tipo de som, mas mais “Ahhhh! Ahhh!”. É mais como um sentimento do que algo que eu possa descrever. Lembro que amei quando ouvi – e ainda amo.

E você lembra quando viu o Sepultura pela primeira vez?
Sim, foi há anos e anos, quando estava rolando o lance da MTV. E o lance é que a MTV na época falava algo como “aqui vai um pouco de rock” e te dava o Guns N’ Roses. E eu pensava “Não, não, o Sepultura devia ser a banda que as pessoas deveriam estar impulsionando, porque eles são o lance real”. Era incrível, é por isso que o Jello Biafra “pegou eles”, porque eles eram os melhores. Então é isso aí.

Você mencionou há pouco uma banda clássica do punk brasileiro, o Olho Seco, e há muitas bandas aqui do Brasil que foram influenciadas por vocês. Mais especificamente, por exemplo, o Ratos de Porão, que é outra banda clássica de punk/hardcore, que já fez cover do Poison Idea (“Pure Hate” no disco “Feijoada Acidente”, versão internacional), assim como o Agrotóxico, outra banda clássica de São Paulo. Além disso, há muitas bandas dos EUA e também da Europa, como o Wolfbrigade, da Suécia, que já fizeram versões das suas músicas. Você chegou a ouvir os covers dessas bandas do mundo todo?
Eu tento, honestamente. As pessoas – jovens e bandas novas – ainda me mandam coisas o tempo todo. E penso que é como uma continuação. Porque posso ter sido parte de algum tipo de cena que inspirou alguém e nós íamos ouvir uma banda como o Lama, uma banda finlandesa que a gente realmente gostava, e então ficávamos muito animados e pensávamos “uau, essa parada que eles fizeram nessa música é brilhante. Vou pegar isso e escrever uma música como essa”. Então eu pegava essa parte e incorporava na nossa música, nós tínhamos então a nossa música e então alguém ia ouvir e ia tentar fazer a mesma coisa. Não é como um xerox, você está copiando, mas também está adicionando algo. É como fazer um prato e adicionar alguns temperos. Você continua adicionando temperos novos e cria algo totalmente novo. Você adiciona uma coisa e isso muda o todo. Por exemplo, se você adicionar pimenta, vai deixar picante. Se adicionar açúcar, vai deixar doce. Mas é uma continuação, não é tanto uma cópia em que você fica copiando e a imagem se degrada depois de um tempo. Então é isso que penso dessa molecada, se alguém me fala “ei, fizemos um cover de uma música sua, você poderia ouvir?” e então eu digo “é claro que vou escutar. Escuto e penso: Uau, está soando como uma música totalmente diferente”. É algo que me deixa orgulhoso, sabe? Honestamente, acho que nunca escutei um cover do Poiso Idea que não tenha gostado.

Estávamos falando sobre covers do Poison Idea feitos por bandas punk, mas já tivemos bandas grandes de metal, como Pantera e Machine Head, fazendo covers das suas músicas – e mais recentemente, até o Metallica fez uma versão horrível em um show.
Acho a versão do Pantera para “The Badge” melhor que a nossa. Eles mudaram um pouco, com um beat meio quebrado no meio e achei que ficou melhor que a nossa versão, penso que eles melhoraram a música. O Machine Head também é legal, vi eles tocando o cover uma vez. A versão do Metallica, fico feliz que eles tenham feito, isso me deixou feliz. Quero dizer, honestamente seria a mesma coisa se eu tentasse tocar uma música do Metallica. Provavelmente soaria igual, sabe? As pessoas riem do Metallica tocando Poison Idea, mas se eu tentasse tocar Metallica elas provavelmente também iam rir (risos).

Mas imagino que seja algo que tenha te deixado orgulhoso também o fato de ter o Metallica tocando uma música que você escreveu em um show gigante em Portland.
Ah sim, com certeza. E isso mostra que eles conhecem. Qual é aquela banda que fez algo nesse estilo? Ah, foi o Foo Fighters. Eles tocaram em Chicago e chamaram o Naked Raygun para tocar com eles, por exemplo. Tocaram em Boston e chamaram, sei lá, o SSD ou alguma outra banda. Isso é muito legal. É legal essas bandas grandes de rock homenagearem as pessoas com quem eles cresceram. E as pessoas que ouvem Foo Fighters não sabem o que é o Naked Raygun. Então acho que isso é muito legal, gosto disso. É como dar continuidade.

Sim, com certeza.
Então é isso. Obrigado, Metallica.

E você tem um disco favorito com o Poison Idea?
Hoje foi o terceiro dia que eu saí desde que fiquei doente no mês passado. Mas hoje eu acordei bem cedo para dirigir até a fábrica no sul de Oregon, atravessei Portland para buscar os discos e fiquei ouvindo um podcast de uns caras, era um podcast de duas horas sobre o Poison Idea e eles falaram de todos os discos desde o “Pick Your King” (1983) até os nossos últimos lançamentos. Eram um pessoal mais jovem que apresentava o programa, então eles tinham uma perspectiva totalmente diferente sobre os discos. Por exemplo, eles gostaram do nosso primeiro disco porque é muito rápido, muito curto e punk. Depois eles começaram a falar dos outros e a falar mal de alguns deles, sobre como eles ficaram mais lentos e como eram ruins. Então estava ouvindo-os e concordando com eles em algumas coisas, tipo “acho que essa não é a melhor música do mundo”. Mas isso me fez pensar que cada disco é completamente diferente porque nós nunca permanecemos iguais. E você tem boas músicas em cada disco. Isso muda, sabe? O “Pick Your King” foi relançado há alguns anos e as pessoas que fizeram o relançamento me pediram para escrever algo sobre ele. Então eu sentei e escutei ele de novo pela primeira vez em anos e meio que me impressionou. Tipo, fiquei pensando: “Esse é um lance intenso pra cacete”. Mas (favorito) é algo que muda diariamente, às vezes é uma música mais rock`n roll como “Hard and Cheap” (do disco “We Must Burn”, de 1993) ou “Me & JD” ou “Dead Cowboy” (ambas do disco “Confuse & Conquer”, de 2015), algumas das últimas que fizemos. Outras vezes é “A.A.” (do clássico “Records Collectors Are Pretentious Assholes”, de 1985) ou “Underage” (da demo “Darby Crash Rides Again”, de 1981), ou algo mais punk. Há tantas músicas. Sempre amei o David Bowie como artista, ele é o meu artista para uma ilha deserta porque ele fez tudo, do rock psicodélico ao glam, passando por rock’n roll, música estranha, música alemã, ele tem tudo. Todo disco do David Bowie tem algo. E é um pouco assim com o Poison Idea. Nós temos um pouco de tudo, você pode escolher. Nós não entramos muito no jazz, mas fizemos muita coisa. Então depende de como eu me sinto, sobre as coisas do Poison Idea, como você se sente. É como se tivesse todos os tipos de coisas. Se você tivesse me perguntado qual a pior música da banda, eu provavelmente poderia te responder isso de forma rápida, na lata. Mas qual a minha música favorita? É como perguntar a um pai qual seu filho favorito.

Legal. Eu sempre gosto de fazer essa pergunta. Me diga três discos que mudaram a sua vida e por que eles fizeram isso. Não precisa ser os únicos três discos, mas três dos discos que mudaram a sua vida.
Uau. Bom, o primeiro disco teria de ser o “Leave Home” (1977), do Ramones. Porque, como disse no livro, eu era um pequeno fã do Kiss e adorava o Kiss. Acho que eu tinha o “Love Gun” (1977), fiquei esperando dias e dias para que fosse lançado. Comprei e escutei e lembro de ouvir o disco e olhar para o outro lado e ver o disco dos Ramones e olhar de volta, de um lado para o outro algumas vezes, e apenas pensar: “O Kiss já era, os Ramones são o futuro”. Então esse disco teve um papel especial. Foi quando eu mudei, cortei meu cabelo naquele dia, fiz tudo. Então isso foi algo que mudou a minha vida.

O segundo seria o “No New York” (1978), com The Contortions (nota: o disco é uma coletânea da cena no wave de Nova York organizada por Brian Eno que também traz nomes como Teenage Jesus and The Jerks, DNA e Mars). Acho que poderia colocar esse com qualquer disco do Captain Beefheart ou esse tipo de coisa porque eu era muito unidimensional. Tipo, eu conseguia entender o UK Subs, até o Germs eu conseguia. Mas então eu ouvi isso e foi assustador, eu não sabia o que era e foi algo que meio que me assustou. Foi estranho porque isso abriu uma porta completamente nova para mim.

E então o último seria o “Odessey and Oracle” (1968), do The Zombies. Porque ele me mostrou essa coisa, tipo “Uau, isso é…”. As pessoas às vezes perguntam: “Quais coisas novas que você está escutando e me recomendaria? Quais as novidades que você está ouvindo?”. Esse disco saiu em 1968 e é um álbum perfeito. Todas as músicas, do início ao fim, é um disco perfeito. Foi meio que o sol aparecendo, era essa coisa totalmente nova de repente, que eu só fui gostar quando tinha 20 e poucos anos. Mas quando passei a curtir, eu fiquei como “onde esse disco estava durante o resto da minha vida?”. E ouvir esse álbum abriu as portas para coisas como Syd Barrett e as coisas antigas do Pink Floyd. E daí foi para todo tipo de coisa, porque aí você vai ouvir de onde o Pink Floyd veio, coisas como “I’m a King Bee” e Howlin Wolf. E então você vê de onde o Elvis pegou o lance dele. Então é como se você estivesse aprendendo algo novo todos os dias. Há um ditado nos filmes em que as pessoas falam “ah, você aprende algo novo todo dia” e é verdade, há uma razão pela qual elas dizem isso. E isso é bom, você deveria aprender algo todos os dias, tentar algo novo todos os dias, o que quer que seja.

Você menciona no livro, não lembro em que momento exatamente, acho que era início dos anos 2000, que você gostava de caminhar pelo seu bairro e escutar black metal norueguês. Você já curtia esse tipo de som logo no início, quando saiu, ou foi algo que você foi curtir mais com o passar do tempo?
Sim, porque eu ouvi falar sobre (essas bandas da Noruega). E para mim era algo como, a primeira banda foi o Darkthrone. Para mim, soava como o Bathory, soava como punk, como bandas como Icons of Filth ou algo assim, mas com afinação mais baixa. Por isso que eu gostava de todo aquele lance estranho de Bristol, tipo Amebix e outras coisas. E isso inspirou as coisas da Finlândia, que soavam como black metal. Eles soavam como, eu não sei, não quero insultar eles (Darkthrone) e dizer que soava meio desleixado, mas meio que soava como punk. E isso era meio legal, eu gostava. E então quando as coisas começaram, tipo as bandas mais famosas como o Mayhem começaram a colocar os teclados estranhos e tudo mais, foi meio “ehh”. Eu não sei, mas é algo muito, muito… cria uma cena na sua cabeça e evoca um sentimento, definitivamente traz um sentimento, sabe? Não sei se é sempre um sentimento bom, mas certamente evoca um sentimento, é uma emoção forte. É por isso que as pessoas ao redor do mundo conhecem… mas, por outro lado, as pessoas ao redor do mundo conhecem a porra da Taylor Swift também e não sei sobre o que é isso.

Essa é a última pergunta. Gostaria de saber do que você tem mais orgulho na sua carreira. Quer dizer, você lançou alguns discos realmente incríveis e influentes, acabou de lançar três livros. Há algo específico, um disco, um show, uma música ou algo que você tenha compartilhado com o Tom, por exemplo?
Acho que é escrever o livro e apenas ter vivido esses últimos quatro ou cinco anos é o que mais me deixa orgulhoso. Porque honestamente eu costumava ter a autoestima muito baixa e me odiei por anos. E eu não esperava morrer, mas não achava que estaria vivo, só de olhar para o que eu fiz, tipo “eu realmente fiz isso”. Sim, um pouco disso pode ter sido divertido, um pouco pode ter sido um pouco sarcástico, um pouco pode ter sido agressivo, ainda que não maldoso. Nós nunca atacamos ninguém. Mas olhando o pacote geral, tenho orgulho de estar aqui agora e planejo estar aqui amanhã. Há alguns anos eu não planejava, essa é a razão pela qual escrevi o livro. E agora eu planejo. Todos os dias agora eu meio que tento fazer algo novo. E estou feliz, estou aqui acordado de manhã e estou orgulhoso de tudo. É isso, de tudo.

–  Luiz Mazetto é autor dos livros “Nós Somos a Tempestade – Conversas Sobre o Metal Alternativo dos EUA” e “Nós Somos a Tempestade, Vol 2 – Conversas Sobre o Metal Alternativo pelo Mundo”, ambos pela Edições Ideal. Também colabora coma a Vice Brasil, o CVLT Nation e a Loud!

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