Ao vivo: Lianne La Havas deixa público paulistano de queixo caído com um show tão improvável quanto histórico

Texto por Bruno Capelas
Fotos por Fernando Yokota

Ser um fã de música no Brasil não é tarefa fácil – e só de ler essa frase, muita gente já se lembra do preço dos ingressos, das dificuldades de transporte até chegar no lugar dos shows ou da baixa qualidade do som de muitas casas noturnas e festivais. Mas a insistência em sair de casa, a disputa por entradas a tapa (ou a muitas atualizações de navegador) e as condições desafiadoras vez em quando recompensam esses incautos apreciadores dos sons, até em ocasiões pouco esperadas. Quem esteve no Cine Joia na última quinta-feira, 9 de fevereiro, viveu uma dessas noites inesquecíveis, quando a britânica Lianne La Havas subiu ao palco para uma apresentação tão improvável quanto histórica.

Antes, um passo atrás: incensada como um dos grandes nomes recentes do neo soul, a britânica foi catapultada para o cenário global com seu último trabalho, o auto intitulado “Lianne La Havas”, de 2020 (presente na lista de melhores do ano do Scream & Yell). Mais do que apenas muita emoção e grandes beats, o disco desafiou rótulos (e fez muito indie perder a cabeça) com uma releitura sexy e deliciosa de “Weird Fishes/Arpeggi”, um dos muitos petardos que o Radiohead gravou em seu último grande álbum, “In Rainbows”.

Desde 2020, porém, Lianne seguiu uma trajetória discreta, com um punhado de shows e poucas aparições públicas. Até que, em 2022, ela apareceu relacionada ao Brasil duas vezes: primeiro, participando de um show de Milton Nascimento (de quem é fã) em Londres; depois, em postagens no Instagram direto do país (aparentemente no Rio de Janeiro), fazendo um “retiro” que supostamente serviria (servirá) para a composição de seu próximo trabalho. Rumores e burburinhos davam conta de que ela não queria fazer shows, mas a pressão nas redes sociais levou a artista a marcar espetáculos no Rio e em São Paulo, cujos ingressos logo se esgotaram e se transformaram em novas datas, também vendidas completamente em poucos minutos.

Não à toa, o Cine Joia estava mais lotado do que de costume na última quinta-feira. Muita gente chegou cedo para garantir seu lugar e acabou assistindo ao show de abertura, comandado pela cantora carioca Luciane Dom, que se revezou entre balançadas músicas próprias e um bonito número de Zé Manoel (“A Maior Ambição”). Luciane até que foi bem recebida pelos presentes, mas sua curta apresentação, com cerca de meia hora, sofreu com o barulho do público, àquela altura mais interessado em garantir fichas no bar e colocar o papo em dia.

Ao final da apresentação de Luciane, uma dúvida começava a pairar: no palco, não havia bateria ou muitos microfones e amplificadores, fazendo desconfiar do que Lianne iria aprontar naquela noite. Será que ela iria encarar o público só com voz e guitarra, despindo os arranjos bem tramados de baixo-bateria-percussão-piano que dão molho especial às suas canções? Será que ela ia usar bases prontas, abraçando um semi-playback? Não era um sinal de bom auspício, ainda mais encarando uma pequena multidão.

Mas ao subir ao palco, com protocolar meia hora de atraso, Lianne mostrou ao que veio já na primeira canção, “No Room for Doubt”: uma mulher, sua voz (dizendo um charmosíssimo “oi, tudo bem?”), uma guitarra e nada mais que isso foram suficientes para gerar uma multidão de queixos caídos. O público reagiu em polvorosa, numa reação tamanha que chegou a encobrir a voz da britânica, fazendo-a se surpreender. E enquanto regulava o som dos instrumentos com auxílio luxuoso de Lucas Theodoro (guitarrista do E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante e produtor do Sítio Romã), a britânica esbanjava bom humor numa frase que antecipava o clima da noite: “São Paulo’s gonna be loud”.

Com poucos passos e muito bom humor, Lianne mostrou o motivo de tantos elogios: ela é capaz de fazer solos com sua voz e sua guitarra ao mesmo tempo, em um excelente domínio e controle, sem esbarrar no virtuosismo barato. Tudo que ela faz está a serviço da canção e da emoção, algo importantíssimo para uma cantora cujo repertório fala tanto de amor, desamor, encontros e desencontros. Mais do que isso, ela executou seu repertório muito à vontade, sem se preocupar com a difícil missão de reger o público sozinha, e fez quem desconfiava entender que certas músicas, mesmo despidas, podem fazer todo o sentido.

Carismática até a última curva de seu sorriso, até mesmo quando errava, Lianne acertava – como fez ao perder uma ou outra nota no difícil e acelerado solo de “Weird Fishes/Arpeggi”, a já citada canção do Radiohead que apareceu lá pelo meio do show. Afinal de contas, errar é humano e ser humana é uma das principais virtudes de Lianne la Havas. Humanidade essa que se mostrava na forma calorosa como ela reagia ao público, confessando até que não queria marcar as datas no Brasil, ou tomando um quentíssimo chá inglês em uma noite suada de fevereiro. “Eu sou inglesa, é isso o que a gente faz”, brincou ela.

Já era suficiente para uma noite incrível, mas havia mais: logo depois de executar a canção do Radiohead, Lianne chamou ao palco uma dupla de amigos especiais. Primeiro, veio o sanfoneiro Mestrinho, que a acompanhou em “Courage” e “Please Don’t Make Me Cry” – e a energia contagiante da britânica fez um acordeão nunca ter soado tão sexy quanto naquele palco. Depois, foi a vez do percussionista Pretinho da Serrinha, que se juntou à dupla em “Can’t Fight” e permaneceu no palco quase até o final, apoiando Lianne de forma marcante em “Au Cinema” e “Seven Times”.

Não precisava de bis, mas quem é que perderia essa chance? Não era o caso de Lianne, que agradeceu aos presentes “from the bottom of mi coração” por fazê-la se sentir feliz, antes de executar uma dupla de belezinhas: “Bittersweet” e “Green & Gold”, fazendo quem a assistia sorrir de orelha a orelha. Fazia tempo que não passava pelo Brasil uma artista em tão alta fase, tão segura de si e capaz de segurar uma plateia usando tão poucos recursos.

Curioso pensar que esse show só aconteceu por conta de uma artista interessada na herança e na potência da música brasileira, poucos dias depois da websfera local olhar mais para fora do que para dentro ao tentar celebrar uma nova poderosa. Pérolas aos poucos, verdade é que em pleno fevereiro Lianne La Havas cometeu uma apresentação para ficar na cabeça de quem a assistiu por bastante tempo – e já sendo séria candidata ao troféu de show do ano de 2023. Aos fãs de música, a volta para casa foi mais feliz, e a gente segue em frente porque sempre tem outros troféus.

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/

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