Especial: Um balanço apaixonado da estreia do Primavera Sound em São Paulo na visão de cinco colaboradores do Scream & Yell

introdução por Marcelo Costa
cobertura por Bruno Capelas, Janaina Azevedo, Manoel Magalhães, Marcelo Costa e Renan Guerra
fotos de Fernando Yokota e Pridia

Um dos festivais de música “alternativa” mais bacanas do mundo, o Primavera Sound chegou a São Paulo cercado de muita expectativa. Criado em 2001 em Barcelona com uma programação que se estendia ano a ano – 10 anos atrás contamos um pouca dessa história aqui – e compartilhado com a cidade do Porto, em Portugal, a partir de 2012, o festival estendeu seus tentáculos para as Américas em 2022 com edições em Los Angeles, São Paulo, Buenos Aires e Santiago buscando replicar o sucesso de público e a qualidade de curadoria, que muitos brasileiros já conheciam e amavam.

Houve uma época – mais ou menos entre 2009 e 2015 – que Barcelona parecia praia de algum litoral nacional tamanha a quantidade de brasileiros circulando no evento catalão – eu fui a três edições nesse período, e em duas delas reservei apartamentos para cerca de 10 pessoas que também estariam na cidade para curtir o festival. Época boa. O anúncio da edição brasileira deixou muita gente com pulga atrás da orelha, duvidando que a produção brasileira fosse capaz de manter o padrão europeu. A coisa começou a mudar de figura com a anúncio de um bom line-up, e se estendeu a um fim de semana divertidíssimo no Distrito do Anhembi.

Nem tudo saiu como planejado e algumas correções precisam ser feitas, mas para uma primeira edição de um festival que já nasce gigante no Brasil (segundo a produção, 110 mil pessoas – 55 mil por dia – estiveram no evento), o Primavera Sound São Paulo cumpriu com louvor a tarefa de entreter seu público com bons shows e muita caminhada. Abaixo, a equipe Scream & Yell formada por Bruno Capelas, Janaina Azevedo, Manoel Magalhães, Renan Guerra, o fotógrafo Fernando Yokota (mais Pridia, fotógrafo do evento) e este que vos escreve tenta dar uma pequena ideia do que foram esses dois dias caminhando de lá para cá entre shows e amigos, com sol e vento frio, entre o asfalto e as árvores, em turnos de duas em duas horas. Vem com a gente!

Foto de Fernando Yokota

PRIMEIRO DIA – SÁBADO

14-16h

BRUNO CAPELAS: O Primavera São Paulo começou para mim de um jeito inusitado: dias após a divulgação do lineup, meu pai gritou lá do ABC: “Bruno, compra o sábado para mim e pra sua mãe?”. Interessadíssimo em ver Bjork e Gal Costa tocando “Fa-Tal”, Seu Capelas (em seu primeiro festival em 40 anos!) e dona Silvina engrossariam as fileiras da multidão presente no Anhembi. Some-se a isso os meus amigos, a namorada, os amigos da namorada, a minha irmã e os seus amigos… e por meses achei que o festival seria que nem uma daquelas festas de aniversário em que você passa horas e não consegue conversar com ninguém. Caos. Mas a verdade é que o sábado começou muito tranquilo. Quer dizer: a entrada solidária do festival não pedia doação de alimento, mas no Brasil de Paulo Guedes (ainda estamos nele, infelizmente), cambistas cobravam R$ 20 o quilo do arroz nas calçadas da Avenida Olavo Fontoura. Golpes à parte, fila superada e copo do festival na mochila, era hora de ir para o palco Elo ver o voo solo de Santiago Motorizado. Gosto demais dele: semanas antes, o El Mató tinha feito um show emocionado no Cine Joia – mesmo palco onde os espanhois do Carolina Durante tinham feito um show ótimo no Primavera na Cidade na quinta anterior, o que me fez pulá-los na programação do sábado. No Elo, Santiago alternou covers de bandas argentinas, canções que fez para trilha da série Okupas (incluindo cumbia e folclore!) e releituras “só na guitarra” do repertório do El Mató, deixando pedradas como “Yoni B” e “El Tesoro” bastante delicadas. Um show divertido demais, pra esquentar o coração e tirar a namorada para dançar tango – reza a lenda que até aparecemos no telão, mas só confirmo com provas.

JANAINA AZEVEDO: Ir a festivais em São Paulo para mim é um ritual que inicia muito antes. Então, quando cheguei no Distrito Anhembi, já tinha passado por um longo processo que vai desde comprar ingressos, passagens de Porto Alegre (essa parte deu medo), reserva de apartamento e uma força-tarefa que envolveu dois amigos para cuidar do meu gato enquanto eu curtia os shows que tanto esperei. Até aquele momento, Primavera Sound eram duas palavras que me deixavam no seguinte estado: olhando para o horizonte, pensando em todos os lineups que perdi e balbuciando algo como “um dia eu vou, um dia eu vou”. Por isso, cheguei no festival empolgada. Exceto por dois reveses. O principal deles foi a ausência do Shellac, nome quase residente nas versões europeias do Primavera, e que foi cancelado devido a “circunstâncias imprevistas”, segundo um comunicado de véspera do evento. O caos matemático da banda do Steve Albini fez muita falta pra mim. Justamente o outro nome que poderia suprir essa lacuna também caiu fora, como explicaram no mesmo comunicado. Sem show do Viagra Boys. Queria um pouco de peso no Primavera. Mas tudo bem, ganhei outras coisas. Entre elas, um copo do festival e uns potes de balinhas, que enfiei no bolso e saí à cata do que ia aproveitar naquela tarde.

MANOEL MAGALHÃES: Atrasamos (no plural porque meu amor esteve sempre comigo) e perdemos o show do Giovani Cidreira. Culpa de uma mistura entre a fila na entrada com o nosso esquecimento de carregar a pulseira antes do festival. Uma pena, era um dos artistas nacionais que eu estava mais curioso para assistir. Assim que entramos rolava o show da Liniker (setlist bem parecido com o do Primavera na Cidade) e o clima de sol e animação dava o tom de qual seria a relação do público com a primeira edição brasileira do Primavera. Quando percebi que a fila do banheiro andava numa velocidade de cruzeiro fiquei naturalmente tranquilo.

Santiago Motorizado / Foto de Pridia

MARCELO COSTA: O plano era chegar bem cedo no primeiro dia do Primavera Sound São Paulo para começar a maratona assistindo aos argentinos do Carolina Durante, mas faltou pensar na margem de erro de uma ou até duas horas pra cima num primeiro dia de festival. O motivo: o portão da imprensa ficava num lugar meio inóspito – nada me tira da cabeça que quando montam a estrutura de um grande festival, alguém pergunta “onde será a entrada da imprensa” para que outro, com sorriso cínico, aponte o pior lugar do evento – o que custou uma caminhada de quase uma hora circundando o Anhembi enquanto o festival rolava. De posse de uma pulseira simples, sem sistema de ativação de consumo, lá fui eu desbravar o local para encontrar apenas uma atendente entre 36 num caixa fixo que estava abastecendo imprensa, funcionários e quem mais não tinha pulseira de ativação com um cartão para consumo numa fila demorada – porque uma pessoa decidiu cadastrar toda sua equipe, coisa de 60 nomes. E o festival acontecendo… Depois de 90 minutos (um jogo de futebol!) resolvendo pendengas “técnicas” pude, enfim, olhar o line-up e pensar no que queria ver. Era uma vez Carolina Durante, mas rolou chegar no palco ELO (palco 5) para assistir um fofo Santiago Motorizado já em cena fazendo o L e ainda declarar seu amor pela banda Las Ligas Menores antes de uma versão de “Europa”, tocar algumas do El Mato (“Yoni B”, “La Noche Eterna”, “El Tesoro”) e uma dos 107 Faunos (“Jasmin Chino”). Olhando o set list depois descobri que ainda rolou uma versão de “Soy Rebelde”, sucesso de Jeanette, que a Alice Caymmi também gravou, que eu amaria ter visto

RENAN GUERRA: Meu Primavera Sound começou já queimando a largada: muitos ouvintes do podcast Vamos Falar Sobre Música vieram de diferentes estados para o Primavera Sound – veio gente do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro, do Espírito Santo e até do Acre! Por isso fizemos uma festa pré-festival no Zig Duplex, no centro de São Paulo. A festa estava muito, muito cheia e o público animadíssimo, eu fechei a pista lá 5h30 da manhã. Então foi ir pra casa, dormir de manhã e já acordar para caminhar muitos quilômetros pelo Anhembi. Eu acreditava que a andança seria só dentro do distrito do Anhembi, mas a minha maratona começou antes mesmo de entrar. O endereço enviado aos jornalistas para o credenciamento estava indicando uma rua que estava fechada para o evento, então eu e a Isadora Almeida, minha colega de podcast, ficamos próximos da rua do endereço informado, porém o pessoal da segurança do local nos explicou que o portão que procurávamos era do outro lado do Anhembi. Andamos cerca de 45 minutos dando volta no Anhembi, fizemos amizade com outro jornalista também perdido, até que entramos no credenciamento de imprensa – que ficava no fundo do fundo do Anhembi, inclusive parecia um cenário de filme de máfia, a gente entrando numas garagens gigantes e inóspitas. Chegamos perdidas e inclusive não recebemos a pulseira necessária para a consumação – eles nos deram apenas uma pulseira de papel, que não tinha o cartão para a compra de bebidas e alimentos.

Foto de Pridia

16-18h

BRUNO CAPELAS: “O que é que tem de pós-rock para mim, hein? Não tem um barulhinho?”, perguntou Seu Capelas logo após o show do Santiago Motorizado, empolgado por ter descoberto a arquibancada do Palco Elo. Ele não era o único: criado com apoio dos assentos e da pista do sambódromo, o Elo se transformou no queridinho do público “acima-dos-25-ai-minha-lombar” graças ao lugar para sentar e a boa qualidade de som. Felizmente para meu pai, a próxima banda naquele mesmo palco cumpria bem os critérios que ele precisava. Capitaneado pelo baterista do Portishead, Geoff Barrow e o baixista Billy Fuller (que toca na banda de Robert Plant), o Beak> é aquele tipo de banda cheio de barulhos estranhos e experimentais que faz a cabeça de gente doida que nem eu e o progenitor. Mas não só: até minha mãe curtiu a brincadeira dos ingleses, que fizeram uma apresentação barulhenta e empolgante. O que me leva à dica: levem seus pais uma vez na vida num festival. Os resultados podem ser surpreendentes. Na sequência, uma volta rápida pelas redondezas para tomar uma Hocus Pocus Orange Sunshine – uma cerveja delicinha, mas com a latinha custando R$ 25 o bolso ia ficar mais bêbado que o corpo – e planejar onde seria a janta. Apesar do mapa dizer que praça de alimentação mesmo era só do outro lado do Anhembi, havia pelo menos uma dúzia de food trucks colocados na traseira do Palco Elo, além de banheiros de verdade, em dois acertos da organização. Ainda deu tempo de ver um bom pedaço dos espanhóis do Los Planetas, seguindo uma cartilha roqueira que, confesso, me fez bocejar. Curiosidade inútil: a banda usa um trecho da Sinfonia dos Planetas, de Gustav Holst, para entrar no palco. Legal, né? “Valeu a pena ter acordado hoje”, diria meu pai.

Beak> / Foto de Pridia

JANAINA AZEVEDO: Nessa hora, eu já estava sentada na arquibancada do sambódromo, de frente para o palco Elo, assistindo ao Santiago Motorizado, expoente argentino que eu só conhecia de sua famosa banda. Como gaúcha, me sinto quase conterrânea e lembro de várias bandas de Porto Alegre durante algumas músicas. O show tem altos e baixos, e algumas partes eu não gosto. A ansiedade nesse momento era pelo que viria depois. No mesmo palco, assisti a atração que eu mais esperei em todo o festival: o Beak>, projeto de um dos membros do Portishead, Geoff Barrow. É o tipo de coisa que eu costumo classificar como “banda pra quem não gosta de nada”: som repetitivo, esquisito e torto. Tem momentos noise, momentos drone, momentos krautrock. É um monte de coisa e nada ao mesmo tempo. Eu amo. As músicas saem iguaisinhas à gravação, e para um som tão desconjuntado, é divertido tentar entender como Geoff (e ele estava gripado, segundo um post em seu instagram na véspera) se coordena com o baixista que toca sentado e o guitarrista/tecladista. Cedo da tarde eu já estava saltitando de felicidade. O que veio depois me deixou num estado um pouco acima: o de êxtase.

MANOEL MAGALHÃES: Logo encontramos a turma do Scream Samuel, como definiu o Adriano Mello Costa, no palco Elo e assistimos a um bom trecho da apresentação da banda espanhola Los Planetas, uma espécie de Teenage Fanclub de Granada. Coroada indie espanhola boa de rock. Como perdemos o primeiro show do dia, já estava preocupado com o horário do Tim Bernardes no auditório (Palco Barcelona). O pessoal decidiu pela Björk, mas tínhamos motivos pessoais para optar pelo Tim. Não ter conseguido comprar o ingresso do último show da turnê “Recomeçar” foi um deles. Quando soube que ela tocou com orquestra, comemorei a decisão.

MARCELO COSTA: Tinha Amaia na outra ponta do Anhembi (no palco 1), mas a pedida do momento era curtir o sol bebendo uma cerveja com os amigos esperando a banda inglesa experimental Beak> no mesmo palco Elo (no palco 5) do Santiago Motorizado – sem shows no palco Primavera (palco 4), mais próximo, um silêncio sepulcral tomou a metade de cá do Anhembi e desavisados poderiam até desacreditar que estava rolando um festival de música naquele lugar. Quanto as cervejas, ponto positivo para a presença de Goose Island e Hocus Pocus no evento, mas ponto negativo por levarem cervejas muito leves como a Midway Session IPA (ela custa R$ 7 num supermercado e estava R$ 25 no festival) e a Orange Sunshine Blond Ale (R$ 11 fora do festival, R$ 20 dentro dele) – uma IPA mais robusta fez falta. O jeito foi encarar a alemã Becks (que levou até a Fernanda Lima para seu estande – não tive o prazer de ver esse show), companheira durante todo o sábado. Voltando ao palco Elo, o Beak>, que traz em suas fileiras Geoff Barrow, o segundo integrante do Portishead a pisar em solo brasileiro (a primeira foi Beth Gibbons solo em 2003!). Geoff fez piadinha com o presidente que perdeu as eleições e conduziu o Beak> num showzaço que deixou sorrisos nas faces de um  bom público, mas bastante atento e empolgado. Os espanhóis veteranos do Los Planetas trouxeram quase 30 anos de história nas costas e também fizeram bonito representando a Elefant Records – tive que cabular o trecho final para conseguir uma boa posição para ver Björk num dos shows mais aguardados do primeiro dia.

Foto de Fernando Yokota

RENAN GUERRA: Depois dos perrengues para entrar, eu quis mais descansar e tentar encontrar meus amigos, pois o espaço era gigante e tinha muita gente. Vi trechos do show de Liniker há distância e aproveitei esse começo de primeiro dia para tomar uma cerveja sentado no meio-fio em uma das ruas do Anhembi, enquanto encontrava os amigos que iam passando. Refleti: será que vou ao show de Helado Negro, em um palco distante, ou guardo lugar mais a frente para ver Björk? Decidi reabastecer a cerveja e fui para o Palco Primavera esperar a Björk. Muitas pessoas já aguardavam ali, inclusive algumas sentadas no chão, em uma espécie de pic-nic no concreto. Nessa hora eu já estava ansioso demais!


18-20h

BRUNO CAPELAS: Eu sempre fui um bom aluno, mas confesso que nunca gostei exatamente das aulas de biologia. Planta, bicho, célula, tudo isso eu achava meio chato – no máximo, eu curtia genética e conceitos de ecologia. Já Bjork pra mim tem aquela aura de professora de biologia empolgada com tudo – e especialmente com os cogumelos. Brincadeiras à parte, minha maior expectativa para a apresentação da islandesa no palco Primavera, acompanhada da orquestra Bachiana Filarmônica, era de cumprir um item no checklist da vida de shows. Já dizia o poeta que a expectativa é a mãe da decepção, então não poderia dizer que fiquei frustrado. Mas fiquei. Não que o show não tenha sido bonito e com uma qualidade sonora invejável, sendo possível escutar nuances da orquestra e a voz de Bjork de maneira límpida, mesmo a uma grande distância do palco. Mas vou me juntar ao coro dos (des)contentes e dizer que era difícil uma apresentação daquelas dar certo num espaço tão grande sem recorrer a qualquer destaque nos elementos percussivos, sejam eles eletrônicos ou acústicos – ainda mais na obra de uma artista que usa e abusa dos ritmos como poucos nas últimas três décadas. Para encerrar na mesma piada, vou dizer que foi educativo ficar ali, de pé, ouvindo a islandesa cantar por uma hora e quinze enquanto o público tentava (tentava!) fazer silêncio. Desculpa, “fossora!”

JANAINA AZEVEDO: Muito se falou e outro tanto ainda vai se falar sobre a presença de Björk nesse festival. O que eu vou dizer é que os acordes da orquestra, o tom da voz dela, a mudança de cor nos céus durante o show ainda não saíram da minha cabeça. Ver a Björk é testemunhar uma força difusa: movida pela arte, pela experimentação, que leva as nossas cabeças para um lugar que ainda não tínhamos ido. Eu sentia isso ouvindo as músicas em casa. Imagina durante o show. Me lembro de ouvir “Isobel” e sentir uma beleza tão avassaladora que na minha legenda do Instagram, comparei com ver a “A Noite Estrelada”, de Van Gogh. Na minha cabeça, isso faz total sentido. De onde eu estava, o público se espremia para ver todos os movimentos dela no palco, cada detalhe do figurino e da maquiagem. Um show que mobilizou uma usina de sentimentos. Vi pessoas chorando. Eu cantei com a mão no peito. Já no fim do show, em “Hyper Ballad”, eu cantava o refrão olhando e sorrindo para as minhas amigas. Havia algo ali que só a gente entendia, e não consigo explicar o que era. Se parte do público dispersou ou achou que não era show pra festival, não sei e não interessa. O show acabou e eu saí meio desnorteada, fui quase que vagando pra outro palco. Ver a Björk valeu toda a espera.

MANOEL MAGALHÃES: Tim Bernardes, sozinho no palco, tocou majoritariamente músicas do disco novo, “Mil coisas invisíveis”. Essa foi uma escolha de boa parte dos artistas no festival, a de priorizar os repertórios mais recentes. É estranho notar que na era da música digital ainda leva um certo tempo para o público se acostumar com os lançamentos, a coisa não flui tanto logo de cara. Mais pro meio do show ele atendeu a pedidos (“Fica” do Terno e “Não” do disco anterior) e tocou uma versão fuzziada de “Soluços”, do Jards Macalé. A plateia, que lotava os dois andares do espaço, permaneceu em silêncio para ouvir cada detalhe das letras. Quando a música e o público estão juntos tudo anda fácil.

MARCELO COSTA: Disposto numa área de conexão entre o palco Elo (palco 5) e os demais palcos (ou seja, de constante movimento), a área do palco Primavera (palco 4) pareceu pequena para Björk, que entrou em cena acompanhada de seu maestro e da Orquestra de Cordas Bachiana Filarmônica. O show foi… lindo. “Lionsong”, a dolorosa “I’ve Seen It All”, que em estúdio conta com Thom Yorke num dueto para a trilha do filme “Dançando no Escuro” (2000), mais hits como “Hyperballad”, “Pluto” e “Isobel” soaram líricas ao pôr-do-sol, e ainda que o desafio de microfonar toda uma orquestra diante de um público de cerca de 40 mil pessoas tenha tido momentos inglórios de perda de sutileza, nem isso conseguiu tirar a beleza de uma apresentação que deve crescer absurdamente em ambientes menores e controlados. Um dos grandes shows do festival para mim que, finada a apresentação, pude enfim me deslocar para conhecer o palco Becks (palco 1), na outra ponta do Anhembi.

Bjork / Foto de Fernando Yokota

RENAN GUERRA: Björk é uma das artistas mais importantes da minha vida e era o show que eu mais aguardava nesse festival e por isso foi bom vê-la assim como uma espécie de abertura do evento para mim. Primeiro entrou no palco a Bachiana Filarmônica, orquestra brasileira que acompanhou Björk nesse show chamado “Orkestral” – a estrutura dessa turnê é que Björk e seu maestro viajam o mundo e tocam sempre acompanhados de orquestras locais. Seu maestro Bjarni Frímann entrou logo depois e, seguindo o conceito de “compre do local”, ele estava todo vestido com uma roupa desenhada pelo estilista brasileiro João Pimenta. Björk chegou logo na sequência, com uma roupa que misturava látex e muitos e muitos metros de tecido, uma peruca volumosa e uma máscara feita por seu parceiro costumaz James Merry. O conceito de um show de orquestra num festival parecia algo estranho para muita gente, mas funcionou de forma extremamente bonita. O sol se pondo, o lusco-fusco e uma plateia que estava seduzida por Björk e que sabia cantar as músicas inteiras – o que surpreendeu a própria cantora. Björk passou por diferentes fases de sua carreira, resgatando clássicos como “Jóga”, “Hyperballad”, “Pluto” e “Isobel” e, pela primeira vez, cantou “Ovule” ao vivo, faixa que está em seu mais recente disco, “Fossora”, lançado há pouco mais de um mês. De todo modo, o destaque do show fica por conta das versões de canções do disco “Vulnicura” (2015). Canções dolorosas e belas como “Stonemilker”, “Notget” e “Lionsong” ficam ainda mais grandiosas com as orquestrações e apenas reforçam o poder da voz da islandesa. Um show memorável! Depois do show da Björk eu ainda estava completamente zonzo, mas seguimos para o palco Elo, onde Sevdaliza tocaria. Eu já a havia assistido em 2019, no Cine Joia, e tinha sido um show que parecia apertado naquele pequeno palco do Joia, a luz não valorizava a cantora e o som estava meio estranho, por isso vê-la agora no Primavera Sound foi uma maravilha: Sevdaliza estava linda no palco, a luz perfeita, o som maravilhoso e ela se divertindo muito. Ela cantou basicamente todas as canções de maior sucesso de sua carreira, como “That Other Girl”, “Oh My God” e o hit “Human”, que ela cantou em inglês e depois fez alguns trechos de sua versão em portuguê – “eu sou humana, nada além de humana”. Sevdaliza estava se divertindo no palco: agradeceu, rebolou, dançou e, num dos momentos mais bonitos do show, mostrou seu pequeno filho de menos de um ano que estava todo enroladinho em um cobertorzinho no canto do lugar. Para fechar, ela fez uma espécie de pocket-DJ set e tocou coisas inesperadas, indo de SOPHIE e Gigi D’Agostino. Uma mini rave!


Mitski / Foto de Fernando Yokota

20h-22h

BRUNO CAPELAS: Agora, quem me deu uma aula de verdade foi a nipoamericana Mitski, antecipando a tônica do que seria o Primavera Sound no domingo: uma exibição dos porquês, já há algum tempo, são as mulheres que dominam aquilo que a gente costumava chamar de rock. Tecnicamente, foi o melhor show do dia: havia no palco Primavera uma banda afiada, um público em sintonia e canções com apelo pop e estrutura indie, abusando de distorções e batidas quebradas. Mais: mais que uma cantora de seus próprios versos, Mitski mostrou ser uma ótima performer, com teatralidade, drama e força muito interessantes – algo que ficou claro na abertura com “Working for the Knife” e também ao longo do show, em músicas como “Me and My Husband” ou “Nobody”. Mas enquanto o lado crítico sabia que tudo estava no seu devido lugar e com qualidade de sobra, meu lado fã (o que pagou quase quatro dígitos no ingresso do festival) ficava meio sem saber o que fazer. Por mais que eu tentasse, as dores, as vitórias e as questões de Mitski não me diziam muita coisa. Não quer dizer que eu ache que a música dela não seja universal, pelo contrário: a verdade é que há certas experiências artísticas que um homem branco heterossexual talvez nunca entenda em seu esplendor maior. Como diria George Constanza, “o problema sou eu”. Ou como diria um amigo, numa frase sábia: “desculpa, é que eu sou limitado.”

Foto de Fernando Yokota

JANAINA AZEVEDO: O tal outro palco era o já famigerado palco das árvores, o Becks. Lá, me esgueirei pra tentar ver algo de uma banda que gosto muito, mas que sei que tem problemas ao vivo, o Interpol. Não deu muito certo: o som era baixo, e eles pareciam estar tocando mais devagar. A distância e o movimento no entorno me fizeram dispersar, e nesse momento aproveitei pra jantar, comprar bebida, olhar a loja de merch, tudo isso com Paul Banks cantando ao fundo. Já é algo. Levou mais um tempinho e eu voltei pro palco Primavera, onde a próxima atração já saracoteava no palco. Assisti a Mitski pensando “gente como ela consegue?”. A performance frenética é muito marcante, e pra mim quase destoa do som sintetizado e elegante dela. Senti o público rendido, cantando e dançando freneticamente. Aí eu já estava cansada das idas e vindas entre os palcos. Mas antes de ir embora, eu ainda senti todo o impacto de outro grande acerto do line up: o maravilhoso Beach House.

MANOEL MAGALHÃES: Satisfeitos com os truques (com facas) do filho do Maurício Pereira, resolvemos testar a praça de alimentação. Parafraseando Casimiro Miguel, nós amassamos um sanduíche e quatro coxinhas quentes do Fôrno. Pontaço para a produção, comida surpreendentemente boa e filas toleráveis. Alimentados rumamos então para o Interpol. O Palco Becks (o das árvores no meio do caminho) já estava lotado e vimos o show de longe. Talvez isso tenha impactado na minha sensação de que foi a pior apresentação nos palcos grandes. Só que a guitarra levemente desafinada do Paul Banks também não ajudou. De lá seguimos para o José González. Novamente uma plateia que respeitou o formato violão e voz no auditório. Só os incessantes gritos de “gostoso” entre as músicas, de vozes masculinas e femininas, deixaram o sueco (de origem argentina) sem graça. Passou do ponto do lisonjeiro para um pouco de falta de noção. Na parte musical só rosas. Uma versão bonita de “Blackbird” aqui, “Heartbeats” emocionando ali. Fiquei com a sensação que ele dispara umas programações que marotamente colorem o som. Saímos um pouco antes do final.

Interpol / Foto de Fernando Yokota

MARCELO COSTA: A maioria odiou (Data Scream & Yell de Percepção), mas eu amei o palco Becks (palco 1) com parte dele em meio a árvores. Achei o visual bonito demais, afinal, quem já não tem mais pique para gargarejo e se prostra mais atrás para ver playmobils em ação no palco salvos por telão não tem muito o que reclamar – sem as árvores continuariam a ser playmobils salvos pelo telão. Dito isso, até o Interpol ficou bonito nos telões entre as árvores. A banda, todos sabemos, é mequetrefe ao vivo, e em estúdio (também) tem umas três fórmulas de composição que eles repetem num show inteiro (as ótimas “C’mere”, “Evil”, “Obstacle 1” e “Slow Hands” são praticamente a mesma música, com pequenas variações), mas esse foi, de longe, a melhor apresentação que vi deles – aquela do Planeta Terra 2011 foi um pesadelo. Não foi um show digno de sonho, mas foi legal. O ir e vir daqui pra lá no festival vitimou o show de Mitski: a fim de ficar num lugar legal (entre as árvores!) para comer espetinho enquanto aguardava a hora de ver Arctic Monkeys fez faltar perna para sair do palco 1 para ir ver a japonesa no palco 4, mas tanto os flashs liberados nos telões do palco Becks quanto os comentários de amigos me deixaram bastante arrependido.

Sevdaliza / Foto de Pridia

RENAN GUERRA: Saí da Sevdaliza e fui direto para o show da Mitski. O público ainda estava circulando pra lá e pra cá e foi se aproximando aos poucos do Palco Primavera. Mitski é uma espécie de filha de Björk com Kate Bush e seu show é estranho e sedutor na mesma medida. Ela canta, dança, faz performances e parece ter tudo extremamente bem planejado. Seu setlist passou por diferentes fases de sua carreira, mesclando canções de seu mais recente disco, “Laurel Hell”, desse ano, com canções mais antigas. Como o show é bastante performático, foi uma pena que as câmeras nem sempre conseguiram acompanhar a artista no palco: o telão muitas vezes mostrava imagens mal enquadradas ou colocava takes da plateia enquanto Mitski estava dançando no chão. Enfim, tirando isso, foi um show lindo, barulhento e melancólico. Falando em barulhento, logo depois partimos para assistir Badsista, acompanhada de Malka Julieta e Venus Garland, no palco Elo. Que delícia é poder ver um show sentadinho na arquibancada, minhas pernas agradecem! Entre a música eletrônica e o rock, mesclando funk e punk, Badsista fez um showzão cheio potência, com direito a roda punk na plateia e a participação de Lari bxd 777 para cantar a canção “A Braba do Jaca”.


22h-00h

BRUNO CAPELAS: No bar, sustento constantemente a teoria de que o Arctic Monkeys é a maior banda de sua geração. Não é difícil convencer os convivas: poucos grupos surgidos na safra 01-06 têm uma coleção de canções incríveis, discos com sonoridades que evoluem com o tempo e um letrista de mão cheia como Alex Turner – “Love is a Laserquest” ou “A Certain Romance”, pra ficar só em duas, são provas vivas disso. Mas quando o lineup deste Primavera Sound foi anunciado, foi difícil eu me empolgar com a banda, lembrando do confuso show do Lollapalooza em 2012. Era nessa contradição que eu pensava enquanto partia após o show de Mitski em desabalada carreira para o distante e florestal palco Beck’s, do outro lado do Anhembi. Que ideia terrível a de fazer um headliner tocar num espaço cheio de árvores, à frente até dos telões. Festivais podem provocar os instintos mais primitivos – inclusive fazer a gente concordar com Ricardo Salles. Se as condições já não ajudavam, o Arctic Monkeys bem que tentou, mas fez um show mediano. A culpa é de escolhas de repertório confusas, sem dinâmica, em que baladas, balanços e canções de peso deixam o ouvinte mais atordoado que empolgado. As ótimas canções pop de “AM”, por exemplo, poderiam criar momentum, mas soam desperdiçadas quando espalhadas sem critério ao lado das porradas soturnas de “Humbug”. Falta fazer a lição de casa. Mas há mais que isso. Mesmo com muita vontade, ao vivo o Arctic Monkeys depende única e exclusivamente de um fator: o carisma de Alex Turner. E hoje, mais que nunca, o carisma de Alex Turner caminha sob a corda bamba da fragilidade, não só dele, mas do homem branco heterossexual neste século XXI. É algo que funciona em disco (e “There’d Better Be a Mirrorball”, no bis, tá aí para provar) e concertos pequenos, mas soa acanhado em shows de arena. E a maior banda do mundo, desculpa, precisa saber dominar uma arena.

Foto de Fernando Yokota

JANAINA AZEVEDO: Nesse intervalo entre o fim da Mitski e o começo do Beach House, ainda deu pra dar uma volta na outra área do festival e ouvir de muito longe o Arctic Monkeys. Para mim, foi mais do que suficiente: eu não tenho nenhum apreço pela banda. Já um tanto cansada e enfrentando o vento gelado, voltei pro palco Primavera e arranjei um local pra me acomodar. Mesmo sentada e longe, consegui aproveitar o clima de sonho e delírio do show. As luzes se apagam meio que do nada e um baque anuncia a entrada da primeira música. Sou completamente apaixonada por “Once Twice Melody”, lindíssima faixa que abre o disco mais recente, e quando eu vi, estava dançando de olhinho fechado e mãozinha de volta ao peito, igual no show da Björk.

MANOEL MAGALHÃES: Acho que o Arctic Monkeys foi o Norvana da noite. Colocado ali justamente para unir todas as tribos. Decidi que veria mais de perto dessa vez e saí dando uma atropelada no povo para chegar num ponto razoável no lado esquerdo do palco. Tá aqui uma piada (séria) do grupo do Scream: “todo mundo sempre à esquerda”. Levei uma reprimenda leve da Renata pelos atropelamentos, mas deu pra assistir bem o show da banda do Alex “Elvis” Turner. O disco novo ainda não bateu em todo mundo, mas os hits levantaram o que eu chuto ter sido o maior público dos dois dias. E dale “Why’d you only call me when you’re high?” e “Do I wanna know?” na cabeça.

Arctic Monkeys / Foto de Pridia

MARCELO COSTA: Amei “The Car”, o novo disco do Arctic Monkeys, e gosto muito quando um artista se propõe a tirar seu público da zona de conforto. Para mim, Alex Turner é um dos grandes caras do rock masculino, esse gênero falido, neste século, tanto quanto sua banda é genial. A apresentação dos caras no Anhembi mostrou tudo isso ao vivo e em cores. Ok, estava difícil ouvir o Alex cantar com um karaokê de alguns fãs mais exaltados atrás que berravam as letras sem nem prestar atenção a detalhes da música e da performance, mas foi voltar uns 50 passos que a coisa toda engrenou e permitiu apreciar a apresentação de maneira mais apropriada. Lá pelas tantas chega Lúcio Ribeiro na roda: “Tá impossível ficar ali na frente! Tem uns caras gritando as músicas mais alto que o Alex Turner!”. Sabiamos bem. O repertório foi repeteco do Rio, e estou desde então alternando mentalmente “Why’d You Only Call Me When You’re High?” (um dos primeiros acenos da banda à nova fase pós “Tranquility Base Hotel + Casino”) e “Do I Wanna Know?”, que eu tive o prazer de ouvir num Best Kept Secret antes do álbum sair. Matthew Helders continua preciso na bateria (teve um Festival de Benicássim em que os fãs levaram cartazes no naipe de “Matthew Helders > God”) e o show é uma saladinha de frutas deliciosa. Já está na listinha de shows do ano!

Shygirl / Foto de Fernando Yokota

RENAN GUERRA: Depois de ver Badsista, já guardei lugar na arquibancada para esperar a entrada da inglesa Shygirl, porém o vento gelado fez eu e meus amigos caçarmos um outro lugar na pista onde não passássemos tanto frio. Shygirl fez um show curtinho, mas muito bom. A artista mistura uma série de gêneros, entre o R&B, a música eletrônica e o hip-hop, em um resultado que soa convidativo no palco. Shygirl dançou, fez o público pular e aqueceu a noite gelada. De todo modo, saí alguns minutos antes do fim do show de Shygirl para ver o Beach House no palco Primavera. Com uma iluminação misteriosa e imagens em preto e branco no telão, a dupla norte-americana fez bem aquilo que eu esperava no palco: uma viagem dream pop que nos abraçava na plateia. Passando por diferentes fases da carreira, o Beach House cantou algumas de suas músicas mais famosas e fez um show que serve bem como uma carta de apresentação para quem não os conhecia. De todo modo, preciso dizer: Victoria Legrand, te amo, mas seu cabelo fez você ficar igualzinha ao Joey Ramone no telão!

Foto de Pridia

00h-02h

BRUNO CAPELAS: Findo o show do Arctic Monkeys, eu já estava frustrado ao constatar que os meus shows favoritos do dia ficavam entre a banda Beak> e Santiago Motorizado – uma escolha que parecia o voto de protesto em Plínio de Arruda Sampaio em 2010. Mas a frustração, caros amigos, estava longe do fim: com meus pais já longe do Anhembi, coube a mim (e à namorada) a tarefa de levar a irmã mais nova (e sua melhor amiga) até pouso seguro. A ideia era ver um pedaço do Beach House, mas quando meu pai avisou que gastou 90 minutos para sair do Anhembi, eu já previ o pior. Liguei a calculadora interna: com a promessa do festival de fazer o metrô rodar até 1h, dava tempo de ir apé do Anhembi até a estação Tietê e, de lá, haveria tempo de sobra para baldear até em casa. Parecia que ia ser fácil, mesmo com os pés cansados. Corri, corri, corremos e… óbvio que não foi: a articulação prometida entre o Primavera Sound e o poder público passou longe de acontecer. Demos com a cara na porta do metrô, ninguém tinha informação de nada e rolou aquele gostinho de déja-vu de outros festivais (Lolla 2012, é você de novo?). Felizmente ou não, vivemos a era do capitalismo tardio e achar um Uber superfaturado para o centro foi fácil. Difícil foi botar a cabeça no travesseiro e não pensar por que raios o festival não começou mais cedo. “Cada escolha, uma renúncia” e com a vida a gente aprende a valorizar coisas pequenas. E eu valorizo demais meu Bilhete Único.

JANAINA AZEVEDO: Acabado o Beach House, tomei o rumo da volta para casa, ciente do perrengue que me encontraria. Foi coisa de esperar o ônibus do festival por uma hora, até chegar na estação final e descobrir que o metrô não estava aberto. Centenas de pessoas já se acumulavam ali. Como consegui chegar até a região da Paulista, onde estava hospedada? A explicação que eu encontro é uma reedição daquele velho dito popular: Deus protege crianças e bêbados, e também dá uma cuidada nos frequentadores de festivais. Cheguei sã e salva em casa. Dormi pensando que queria sair pra dançar com a Mitski.

MANOEL MAGALHÃES: Aqui um segredo que ficou reservado aos guerreiros do final de cada noite. Os shows do Palco Primavera foram os mais fáceis de assistir de muito perto no encerramento de cada dia. Ficamos bem ao lado do fosso que separa a banda da plateia e o clima era de pista indie lisérgica. Adorei o show do Beach House, mesmo que a banda praticamente não tenha interagido com a audiência. O foco foi a música. Encerrada a festa, voltar é que são elas. Tivemos que andar bastante, parar em um boteco de forró pra pedir a saideira antes de encontrar o táxi salvador.

Beach House / Foto de Fernando Yokota

MARCELO COSTA: Eu queria ver Beach House, muito, mas também queria chegar em casa sem muito perrengue. Coitado. Tolinho. Numa turma de mais de 10 pessoas caminhamos a esmo completamente perdidos da saída do Distrito Anhembi até a avenida Braz Leme (segundo o Google Maps, quatro quilômetros e trezentos metros!) em busca de um Uber, um 99 ou algo assim para chamar de nosso sem levar uma facada no bolso. A cidade de São Paulo está tão abandonada pela prefeitura quanto nos sentimos abandonados ao caminhar pela madrugada pós saída do festival: faltaram placas de informação (dentro do evento também), faltaram ônibus, estou tentando até agora entender o que é um bolsão de Uber (de que adianta o carro ali se você precisa pedir por aplicativo numa área de conexão limitada pela quantidade de pessoas???) e, aparentemente, o metrô fechou em seu horário normal, e não a 1h da manhã como tinham previsto. Um pequeno caos que, como observou o amigo Alexandre Matias em algum momento da caminhada, a gente não tem mais idade para encarar. Cheguei em casa a 1h10 da manhã e desmaiei.

RENAN GUERRA: Fui saindo aos poucos do show do Beach House e foi hora de tentar ir embora. Queria ver o Boy Harsher, mas meu joelho disse “ei, você não é mais adolescente, vamos embora”. Consegui sair de forma tranquila do Anhembi, porém os preços de Uber estavam absurdos. Após a meia-noite, sem metrô, o ônibus que tinha lá não passava tão perto da minha casa, a saída foi ir de uber mesmo, mas chorei para pagar.


Foto de Pridia

SEGUNDO DIA – DOMINGO

14h-16h

BRUNO CAPELAS: O ruim de um primeiro dia difícil de festival é acordar na manhã seguinte com dor no corpo e pensar: “lá vou eu me fuder de novo”. Nessa era em que festivais de música são quase sempre experiências celebratórias, pior ainda: parece não haver espaço para o mau humor em meio a ativações de marca, gente fantasiada e muita “energia”. Raiva é uma energia, lembro eu pensando em John Lydon, enquanto vou chegando no Palco Elo para meu terceiro show do ano da Maglore, dona do disco do ano aqui em casa (“V”). Não que o roteiro não fosse conhecido: o repertório apresentado no Anhembi foi literalmente uma versão redux do que a banda fez no Sesc Pompeia no início de setembro. Ou quase: disposto a tocar muito, Teago Oliveira reduziu os (ótimos) discursos, reforçou o gogó e capitaneou os parceiros Lucas Gonçalves, Lelo Brandão e Felipe Dieder, mais um trio de metais, por uma celebração pop deliciosa. Já falei e repito: no palco, tem poucas bandas no Brasil hoje com repertório e domínio de palco como esses caras, jogando num liquidificador Beatles e Milton Nascimento com Wilco e um cadinho de Caetano & Gil com Banda Eva Ao Vivo 1997. Lindo demais, das baladas (“Motor”, “Amor de Verão”) aos balanções (a roda incrível de “Valeu Valeu”, entremeada com o último “olê olê olá, Lula Lula”). Como tempero extra, ainda havia aquele bom vento Nordeste do domingo passado, tirando o peso dos ombros e deixando canções como “Eles” e “Espírito Selvagem” (encerrada numa jam incrível) ainda mais fortes. 13 músicas, 50 minutos e o melhor show do Primavera Sound.

Maglore / Foto de Fernando Yokota

MANOEL MAGALHÃES: Fomos de carro no domingo e estacionamos em um circo (na área lateral do Anhembi). É sério. Chegamos correndo para não perder a Maglore. Baita show já no clima de nova era Lula 2023. Foi a única apresentação dos dois dias em que vi o tema ser abordado mais diretamente. A banda tocou todas as principais canções do repertório: “Mantra”, “Me deixa legal”, etc. e tal. Trio de metais acompanhando e roda axé-punk lá no meio da galera.

MARCELO COSTA: Uns três meses atrás, a senhora Scream & Yell, Liliane Callegari, na falta de lugares disponíveis para reservar para a comemoração dos 4 anos de nosso pequeno Martín, encontrou um espaço infantil liberado no dia 26 de novembro. Causei geral: “Como assim vamos comemorar dia 26 um aniversário do dia 07???” Lili, ágil, conseguiu um espaço livre incrível no dia… 06 de novembro. Tudo lindo, certo? Ao menos até eu enviar o convite da festa para o Bruno Capelas e ele retornar com um “você percebeu que é no mesmo dia do Primavera, né?”. Não, eu não tinha percebido, mas fiquei feliz quando vi os horários e descobri que os shows que eu mais queria ver estavam todos agendados a partir das 17h20 (Japanese Breakfast, Phoebe Bridgers, Jessie Ware, Lorde e Caroline Polachek). A ideia, então, era me divertir entretendo 25 crianças e 50 convidados entre 12h e 16h (ainda bem que eu já tinha visto Maglore e Don L) e partir para o Distrito Anhembi na sequência. Para tanto, preparei uma playlist com Trem da Alegria, Mundo Bita, Xuxa, Pato Fu e Adriana Partimpim ao lado de Ramones (o tema da festa era Homem-Aranha, e um dia ainda conversaremos sobre essa geração educada pela Marvel), Vampire Weekend, Arctic Monkeys (claro), Blur, Manics, Spoon e Teenage Fanclub (na vibe power pop adorável dos temas de desenhos Blaze & The Monster Machines, PJ Masks e Spidey e Seus Amigos Espetaculares) e fui pra farra… infantil. Foi tão intenso que nem deu tempo de olhar as horas, e quase desloquei as costas descendo num escorregador em tubo com o Martín e o primo dele, o Mateus. Rooooock. Às 15h55 dei pause na playlist e comecei a me preparar mentalmente para ir ao Distrito Anhembi…

RENAN GUERRA: Depois de andar tanto no sábado, eu cheguei já escolado para o domingo. Consegui chegar na entrada sem grandes dificuldades e deu até tempo de dar uma circulada pelos espaços. No sábado foram tantas coisas nos palcos Primavera e Elo que nem tinha ido para o lado do palco Becks e do Palco Bits. Comecei a tarde dando uma passada no Bits, que era o espaço de música eletrônica, dentro de um galpão amplo, com uma estrutura de luz maravilhosa. Assiste um pouco do set dos DJs da Gop Tun e logo fui me preparando para ir assistir à apresentação das CHAI, um quarteto feminino japonês que faz um som que conversa com o pop, mas que bebe em diferentes fontes, como a disco-punk, o indie e a música eletrônica. O show da banda estava marcado para as 3h15 da tarde, porém desde as 3h elas estavam no palco tentando organizar alguma questão técnica. No final das contas, a banda só entrou no palco quase 3h30 e, por algum erro, o telão dela estava com a arte gráfica da banda Japanese Breakfast. Ficou um clima meio estranho entre o público, mas que logo se dissipou com a loucura que as quatro artistas fazem no palco. Elas fazem coreografia, trocam instrumentos, fazem DJ set, tudo ao mesmo tempo, é uma espécie de girlband do mundo invertido, em que há um charme, entre a força punk e a energia kawaii. Mesmo com seu show mais curto, elas ainda mostraram uma força única e deu aquela injeção de ânimo para começar a maratona que seria esse domingo.

Chai / Foto de Pridia

16h-18h

BRUNO CAPELAS: Se a Maglore já tinha conseguido reunir bom público em um horário inicial do festival, Don L deixou o palco Elo abarrotado logo na sequência, pronto para trazer ao palco as canções de seu excelente “Roteiro Para Ainouz, vol.2”, um dos discos mais importantes de 2021. Quem precisa de provas deve ir logo ouvir “Vila Rica”, que abriu a apresentação em ponto alto – a piscadela esperta a “Aquarela do Brasil” me faz sempre pensar: Brasil pra quem, mesmo? Na sequência, “Pânico de Nada”, “A Todo Vapor” e “Favela Venceu”, fiéis polaroides de um Brasil desconfigurado, ainda mais fortes pelo acompanhamento de Don L neste domingo – que trouxe Marielle Franco constante no telão e Thiago França no sax, cheio de improvisos. Dava para ter ficado mais, mas era preciso encarar a caminhada até o outro lado do Anhembi para ver Michelle Zauner em ação, codinome Japanese Breakfast. Àquela altura, o palco Beck’s já estava lotado de fãs de Travis Scott, mas com paciência foi possível avançar por entre as trincheiras para ver a dona do excelente “Jubilee” de perto. Lançado em 2021, o disco é um passeio por ondas dançantes, canções delicadas, arranjos à moda do Beach Boys e ótimas sacadas pop em letra e melodia. E foi ele que deu o tom da apresentação desde o início, com direito a soar do gongo (literal!) em “Paprika” e bailão em “Be Sweet”. Mas…

Don L / Foto de Fernando Yokota

JANAINA AZEVEDO: O domingo era o dia com mais atrações que eu abriria mão, o que de fato eu fiz. Já no meio da tarde, cheguei pra amadíssima Japanese Breakfast, um show gracioso que me entregou exatamente o que eu imaginava: a vocalista saltitante e carismática, a banda extremamente indie e estilosa, as músicas adocicadas enfileiradas. Sentia naquele momento que festival é justamente pra isso: pra te trazer algo que normalmente não viria de outro jeito, e um show da Michelle Zauner, justo após lançar um disco que parece ser seu ponto alto na carreira, precisaria de um festival para chegar aqui. Mais um ponto acertadíssimo do line up.

Terno Rei / Foto de Pridia

MANOEL MAGALHÃES: Falam mal do Terno Rei, mas eu gosto bastante. Nunca tinha visto a banda ao vivo. Acho que seguraram bem a responsabilidade do tamanho (e protagonismo) de um Palco Primavera. Não é fácil agradar tanta gente com um repertório de músicas com andamentos lentos e letras tristonhas. É uma vitória para um artista indie brasileiro levar aquele tanto de gente que conhecia, de fato, as canções. Ainda mais porque a maioria do repertório foi pautada pelo disco novo, “Gêmeos”, lançado há sete meses. Os hits do álbum anterior, como “Dia lindo” e “Solidão de volta”, emocionaram coletivamente. Achei que não teríamos companhia, mas o Rodrigo James também escolheu o Terno Rei. Perdemos o fim do show rumando para a Japanese Breakfast, banda que eu confesso que era a minha maior expectativa de surpresa no festival. Embora meu disco preferido seja o “Soft sounds from another planet”, com pegada bem diferente da turnê “Jubilee”, embarquei imediatamente na animação de Michelle Zauner e saí dançando “Be Sweet”. Foi um fim de tarde púrpura redentor no Anhembi.

MARCELO COSTA: Bem, assim como no primeiro dia, faltou pensar, novamente, na margem de erro. Levamos todos os presentes que Martín ganhou para casa e, claro, abrimos alguns (e eu olhando para o relógio). Martín encontrou um Fórmula 1 Lego, duas paixões atuais dele, e de posse do manual começamos a montar o carrinho juntos (“O teeeeeeempo passa”, diria um velho narrador de futebol de rádio AM). Cabe, aqui, um pequeno parêntese: depois de quase três anos de pandemia, em que ficamos grudados grande parte dos dias, a rotina em casa mudou exatamente na semana do Primavera: voltei a trabalhar presencialmente e, durante o dia, só vejo o Martín na parte da manhã – quando chego, por volta das 23h15, ele já está dormindo. Ele sentiu a mudança, que também bateu forte em mim. E aquele momento de brincarmos de Lego estava bastante especial a ponto de eu decidir cortar o show da Japanese da minha lista de desejos. “Ok, vou chegar para Phoebe Bridgers”, pensei. Continuamos abrindo presentes, brincando e matando a saudade um do outro. Lá pelas tantas, não teve jeito: partiu Distrito Anhembi. Quando estou com a chave na porta me lembro que o credenciamento de imprensa se encerrava às 18h, e eu certamente chegaria depois disso no festival. Bem, me desculpem Phoebe, Jessie, Ella Marija e Caroline (e Michelle também, claro), mas voltei aos braços do Martín. O Primavera Sound São Paulo 2022 acabou no domingo para mim sem nem ter começado. Mas eu estava feliz com meu pequeno menino no colo (e com o fato de ter Bruno, Jana, Manoel e Renan presentes no festival para contar para vocês tudo sobre o segundo dia)… Segue o jogo.

Japanese Breakfast / Foto de Fernando Yokota

RENAN GUERRA: A regra do domingo foi: vai pro palco Becks, corre pro Palco Primavera, repete de novo – além claro da saga do “tira casaco”, “bota casaco”, pois apesar do sol forte, o dia estava bem frio. Do CHAI no palco Becks, corremos para o Palco Primavera para assistir a banda paulistana Terno Rei. Apresentando seu mais recente disco, “Gêmeos”, lançado no início desse ano, a banda fez um show muito bonito. Já havia assistido a banda esse ano no Lollapalooza e é interessante ver como eles estão cada vez mais seguros e entrosados, dominando muito bem esses palcos grandes de festival. E isso tudo foi abraçado por um público que encheu o espaço e que cantava as canções em coro. E aí foi o mesmo esquema depois: correr do palco Primavera de novo para o palco Becks, pois logo na sequência entraria por lá o Japanese Breakfast, projeto da musicista coreana-americana Michelle Zauner. Apresentando a turnê de seu mais recente disco “Jubilee” (2021), Michelle veio acompanhada de uma banda poderosa, com direito a violinista e saxofonista, além de um gongo no meio do palco. Michelle tem uma voz envolvente e uma presença de palco cativante, o que apenas ressalta ainda mais a qualidade de suas canções, que trazem um refinamento e uma complexidade para o universo do indie pop. Ponto extra desse show: encontrei duas integrantes do CHAI assistindo ao show da Japanese Breakfast quase ao nosso lado. Era curioso isso de várias celebridades brasileiras ficando apenas na área vip do evento, enquanto os artistas do line-up circulavam por lá ao nosso lado, tanto que tive amigos que encontraram com a Jessie Ware na fila da cerveja, por exemplo.


18h-20h

BRUNO CAPELAS: …há mais do que só um grande disco recente na carreira de Michelle Zauner. Escudada por uma ótima banda, a coreano-americana trafegou com delicadeza pelo seu repertório, conquistando a atenção do público com facadas no coração (a dupla “In Heaven” e “Everybody Wants to Love You”, da estreia “Psychopomp”) e, claro, momentos de pista (“Posing in Bondage”, “Slide Tackle” e o encerramento com “Diving Woman”, num improviso que alçou voo). Só não foi melhor porque o som do palco Beck’s não deixou, mas foi bonito demais – tão bonito quanto alguns dos melhores trechos de “Aos Prantos no Mercado”, seu livro recém-lançado no Brasil pela editora Fósforo. Na sequência, o plano inicial era ver Phoebe Bridgers e ficar. Mas com uma Coca-Cola na mão, o palco distante e os pés cansados, vi três músicas, senti que não era pra mim naquele momento (como Mitski não foi) e decidi embarcar com O Bruxo. Raras vezes tomei uma decisão tão sábia num festival. Primeiro, porque pude dar uma folga para os pés no elegante Palácio de Convenç… caham, Palco Barcelona, na mesma plateia em que sentavam Tim Bernardes e Don L. Segundo, porque Hermeto Pascoal e sua banda estavam numa ótima noite. Com improvisos enérgicos, eles mostraram de forma didática (e pouco hermética, com o perdão do trocadilho) como a música brasileira é um tesouro raro, do qual às vezes a gente se esquece. Uma hora de puro deleite, em uma experiência que é um diferencial do Primavera para outros festivais brasileiros – essa ideia de ter apresentações em espaços fechados, palcos menores, enquanto o mundo acontece lá fora, pode e deve ser um trunfo do evento em outros anos. Para aplaudir de pé.

Hermeto Pascoal / Foto de Pridia

JANAINA AZEVEDO: Ainda consegui dar uma olhada na Phoebe Bridgers – de quem gosto mais do estilo do que das músicas propriamente ditas -, que estava divertida mas um pouco lenta, ainda mais comparando com a empolgação do Japanese Breakfast. Resolvi fechar a programação com um show do Hermeto Pascoal, comandando e supervisionando uma banda furiosa executando música brasileira em estado bruto. Uma jam que botou ritmos em profusão, com o Hermeto ali, ora sentado e vibrando as mãos, ora tocando teclado ou escaleta, emprestando seu peso histórico para o festival recém chegado no país. Foi uma forma bonita de me despedir. Perdi todos os artistas principais do domingo, porque nenhum me apetece tanto. Depois de ler alguns relatos e ver alguns vídeos, até achei que poderia ter tido mais boa vontade e lutado mais contra o cansaço para ver o espetáculo pop da Lorde, por exemplo, mas para mim não adiantaria muito já que não gosto das músicas.

MANOEL MAGALHÃES: Sim, pulamos a Phoebe Bridgers para ver o seu, o meu, o nosso Hermeto Pascoal. Imaginem aí uma plateia delirando. O jogo era tão ganho que Hermeto muitas vezes sentava para assistir ao próprio show, dada a qualidade dos músicos que o acompanham. Foi um festão brasileiro.

Phoebe Bridgers / Foto de Fernando Yokota

RENAN GUERRA: O sol se pondo, o frio aumentando e mais uma vez a peregrinação: saí do palco Becks e voltei para o palco Primavera, pois era hora de ver Phoebe Bridgers. Com seu rock melancólico, a cantora e compositora norte-americana reuniu um público bem grande e que sabia cantar suas músicas do início ao fim. Apresentando a turnê de seu disco “Punisher”, o palco de Phoebe contava com uma iluminação extremamente bonita, que usava e abusava do azul e do vermelho – as duas cores presentes na capa do disco -, tudo meio que emoldurado por projeções muito bonitas que abarcavam muito bem esse mood do show. Phoebe desceu para a plateia, cantou ao lado dos fãs e deu inclusive o microfone para um deles, que estava chorando de emoção ao lado dela. Uma belezinha! De todo modo, alguns minutos antes de acabar o show de Phoebe já era hora de seguir o fluxo e voltar para o palco Becks e assistir Jessie Ware. Com mais de 10 anos de carreira, a cantora e compositora inglesa viu sua carreira meio que desabrochar para um novo público com o disco “What’s Your Pleasure”, lançado em 2020, bem no momento em que estamos vivenciando o distanciamento social. Esse disco se tornou uma espécie de trilha sonora da pandemia para muita gente e o show de Jessie Ware foi uma espécie de festa e de liberdade, pois era o momento em que podíamos cantar essas canções de forma conjunta ao lado dos nossos amigos. E que show! Jessie focou especialmente em suas canções mais animadas e fez um setlist nonstop, sem tempos para respiros, foi hit atrás da hit, tudo isso acompanhada de uma banda luxuosa, com direito a um coro de backing vocals e um grupo de dançarinos. Um show chic e que lavou a alma dos fãs que esperaram tantos anos para ver Jessie Ware no Brasil.


20h-22h

BRUNO CAPELAS: Quando veio ao Brasil há quatro anos, Lorde encontrou um público desolado pela vitória de Bolsonaro nas eleições e tentou fazer seu melhor ao mostrar que ia ficar tudo bem. Não ficou, mas seguimos em frente a ponto de poder reencontrá-la novamente de vermelho, agora seguindo o tom da temporada primavera/verão 2023 aqui ao sul do Equador. Para muita gente, só esse simbolismo bastava, mas para mim havia algo diferente. Naquele distante Popload Festival de 2018, usei minha irmã como desculpa para assistir a uma das artistas mais interessantes dos últimos anos e chorei copiosamente as feridas de romances esquisitos com petardos como “Liability” e “Green Light”. Também naquele festival eu conheci ao vivo uma “moça” a quem há tempos eu tentava paquerar pela internet. Corta para 2022 e essa “moça” é minha namorada. (Quer dizer: a gente “terminou” durante “Liability”, só para ela poder sentir e chorar como queria, mas já estamos juntos de novo). Toda essa digressão serve para dizer que muita coisa muda no mundo – inclusive Lorde. Quatro anos depois, às vésperas de fazer 26, ela está mais madura, mais sensual e muito mais segura de si no palco, sem medo de ser um pouquinho esquisita (e quem não é). Eram as bases para um show inesquecível, mas é uma pena que parte desse potencial seja desperdiçado com as canções do insosso “Solar Power” – e olha que ainda teve uma participação inesperada de Phoebe Bridgers em “Stoned at the Nail Salon”. Quando se afasta do trabalho recente, porém, Lorde mostra porque é uma das grandes artistas da última década, enfileirando petardos (a sequência “Supercut” / “Perfect Places” / “Green Light” merece o adjetivo da canção do meio) e regendo a plateia. Isso para não falar no hino de uma geração – “Royals”, claro. Ao final, um pensamento de 2018 voltou à cabeça: o próximo show dela no Brasil vai ser ainda maior que este.

Lorde / Foto de Fernando Yokota

JANAINA AZEVEDO: Já no rumo de casa, esperei o ônibus ouvindo o show da Jessie Ware. Esse sim bateu um arrependimento de ter desperdiçado. Um festival envolve uma série de escolhas, e eu lidei com as consequências das minhas. Hoje já se passaram vários dias e eu ainda me pego lembrando da Björk dizendo “boa noite” ou da Mitski parando de cantar, surpresa ao perceber que o público berrava suas músicas. Por momentos como esse, sinto que o Primavera Sound valeu demais a pena, problemas e perrengues à parte.

MANOEL MAGALHÃES: Eu não esperava o que viria na sequência: o melhor show de palco grande no festival. Lorde brilhou tanto que parecia possuída. Cenário e figurinos lembrando coisas do David Byrne, ela toda de vermelho, fazendo questão de dizer o quanto é importante estar na América do Sul. Enfileirou “The Path”, “Homemade Dynamite” e “Buzzcut Season”. Convidou Phoebe Bridgers para cantar “Stoned at the Nail Salon”. Teve o sucessão “Royals”. Valeu o ingresso.

Jessie Ware / Foto de Fernando Yokota

RENAN GUERRA: Mais uma vez o mesmo fluxo: saí do palco Becks e fui para o palco Primavera, pois era a hora do show da Lorde, porém depois de todo o turbilhão de emoções do show da Jessie Ware meu corpo estava pedindo um pouco de descanso, por isso optei por ir sentar na arquibancada que ficava na frente do palco Elo. O frio só aumentou e acabei descendo para a pista, pois dali meia hora a venezuelana Arca subiria ao palco. Porém logo depois que cheguei na pista, uma surpresa: Arca entrou em 20 minutos e ali todo o meu cansaço foi embora. Arca é uma artista extremamente experimental e avant-garde e é interessante vê-la em ação, pois ela transita entre um show com canções autorais e uma espécie de DJ set/happening em que ela faz diferentes misturas de sons. Altíssimo e extremamente barulhento, a apresentação de Arca é uma experiência única, é até difícil explicar em palavras o que acontece naquele momento, pois do completo caos, Arca cria coisas belas e nos deixa maravilhado enquanto a gente ouve os ruídos industriais mais pesados possíveis. Arca passou por canções importantes de seu repertório, tocou mixes de diferentes canções, dançou com o público, mostrou o cu para a plateia (é preciso ser bem literal, pois foi isso mesmo que rolou) e ainda terminou a noite dizendo “ai agora quero tocar uma canção de Caetano Veloso que eu gosto muito” e meteu um mix de “How Beautiful Could a Being Be”, enquanto ficou dançando pelo palco. Esse com certeza foi o show mais barulheto que já vi e uma das melhores experiências desse domingo.

Arca / Foto de Fernando Yokota

22h-00h

BRUNO CAPELAS: Eu tinha tanta coisa para dizer sobre Lorde que esqueci de comentar minha única ida à praça de alimentação principal do Primavera Sound. Melhor do que as duas empanadas que comi, só a noção de que, no que diz respeito a bares e restaurantes, a organização do festival funcionou super bem. Mas de volta ao palco Primavera, o cenário após a saída de Lorde era de terra arrasada, seja pelo lixo no chão ou os poucos presentes. Quase achei que não ia sobrar ninguém para ver Father John Misty – afinal, depois de tantas mulheres (e ainda havia Caroline Polachek e Charli XCX), quem é que iria ver um homem hétero fazendo coisas de homem hétero? Ainda mais este Josh Tillman, dono de uma postura inúmeras vezes “sem vergonha” – e o recente “Chloë and the Next 20th Century”, em clima meio rendezvous piadinha, não me deixa mentir. Felizes aqueles que ficaram na plateia, que incluía até a jornalista Vera Magalhães: amparado por uma banda vigorosa, Father John Misty fez um show carismático e direto, sem perder muito tempo para conversa fiada ou malabarismos narrativos. Além disso, ele soube exibir o melhor de seu repertório: começou já com a baladaça “I Love You, Honeybear”, faixa-título de seu segundo (e melhor) disco. Não à toa, seis canções do trabalho apareceram ao longo da noite, incluindo a safada e bela “Chateau Lobby #4 (in C for Two Virgins)”. O mesmo clima prevaleceu em “Mr. Tillman” e da divertida “Total Entertainment Forever”, além da faixa título do álbum mais recente – cuja ironia, no palco, se resolve muito melhor que em estúdio. Pra quem resistiu até o final e nem pensou no transporte público, o brinde final ficou com o rockão “The Ideal Husband” – uma das muitas amostras de como Misty consegue, sem querer, fazer o que Alex Turner almeja: um show com aquele cheirão de Campari e decadência charmosa, sin perder la ternura jamás.

Father John Misty / Foto de Pridia

MANOEL MAGALHÃES: Resolvemos relaxar, comer, pegar brindes de patrocinadores como Beefeater e Ice Breakers. Vimos pelo telão o Travis Scott botando um fã pra cantar com ele. Até que chegou a madrugada com Father John Misty para encerrar o Palco Primavera. Show bom, banda boa, lotação já bem esvaziada. Típico clima de fim de feira. Tivemos a companhia dos queridos Carlos Soares e Rodrigo James (o nosso motorista da rodada). Pegamos o carro no circo já pensando no próximo Primavera Sound.

RENAN GUERRA: Com o ouvido zumbindo pós-Arca, fui atrás de um lugar para sentar na arquibancada e esperar o show de Caroline Polachek. Com o vento gelado no palco Elo tinham pessoas sentadinhas com cobertas na arquibancada, o pessoal foi preparado. Caroline Polachek entrou no palco pontualmente às 23h20, porém o seu telão não foi ligado e com a luz um tanto quanto escura do palco, eu apenas confiei que aquela era a Polachek, pois da arquibancada não dava pra identificar nada. Depois de cerca de três canções, o telão foi ligado e eu pude confirmar: era realmente Caroline Polachek no palco e sua voz é real! Ex-integrante do Chairlift, Caroline apresentou o show de seu primeiro disco solo, “Pang”, de 2019. Seu som é uma espécie de pop mais etéreo e seu show traz para o palco toda a estética que ela construiu em torno desse disco, algo meio dark, meio bruxa moderna, é muito bonito. Porém não adianta, o mais surpreendente é sempre a sua voz. Eu acreditei durante anos que ela usava efeitos, pois desde o Chairlift já parecia que ela brincava com o autotune, porém a sua voz é realmente com aquele timbre e aquelas entonações e tudo parece muito natural para ela, parece que ela canta com certa leveza. Foi um show extremamente bonito e que deu aquele espaço para respirar depois do caos sonoro da Arca.

Caroline Polachek / Foto de Pridia

00h-02h

BRUNO CAPELAS: A missão “não basta ser irmão, tem que participar” tinha nesta noite um segundo capítulo: afinal, a irmã mais nova queria porque queria ver Charli XCX – e precisava ser despachada para o ABC assim que fosse possível. Confesso que até gosto de “I Love It”, o que mostra que eu estou mais perto dos 40 que dos 20 há muito tempo, mas capitulei: comprei uma batata frita, sentei numa ativação de marca e esperei o show acabar para enfrentar a sequência de ônibus até o metrô, esperar Uber escondido num hotel enquanto moleques faziam arrastão na Cruzeiro do Sul e chegar em casa lá pelas 3h e pouco, cansado de tudo. Afinal de contas, não foram só dois dias de festival – mal deu tempo de falar aqui, mas ainda foram duas noites de Primavera na Cidade no Cine Joia, com direito a ótimos shows de Ana Frango Elétrico, Jup do Bairro, Carolina Durante e Boogarins. Todos eles fariam ótima figura no Anhembi, diga-se de passagem. (Teria sido mais, não fosse uma gripe que me tirou de combate para ver FBC na sexta-feira, vale dizer). Cabeça no travesseiro, dormi mais feliz: não só porque o domingo teve ótimos shows, mas porque, a despeito de árvores e problemas com chegada e saída, a primeira edição do Primavera Sound São Paulo foi um festival de respeito. Estou cansado de utopias, os defeitos pesam muito na conta e ajustes precisam ser feitos para deixar o festival redondo, mas por um instante dá para acreditar que o público brasileiro não só aceita, como merece um evento desses. Nos vemos no ano que vem?

RENAN GUERRA: Nesse domingo fui guerreiro e decidi ficar até o final para acompanhar o show de Charli XCX, que aconteceria no palco Becks. Então fiz novamente a peregrinação rumo ao outro palco e fui acompanhado de uma horda de fãs da cantora, inclusive alguns me assustaram, pois estavam maquiados tal qual Charli na capa do disco “Crash” (2022), isto é, com a cara ensanguentada! Quase uma da manhã, depois de tantas cervejas eu realmente acreditei que um deles devia ter caído e estava machucado, só depois fui me tocar que era a capa do disco. Enfim, Charli XCX entrou no palco 00h45 e seu show é, digamos assim, mínimo: Charli, um microfone, duas pilastras de isopor, uma base musical pronta no pen-drive e uma certa dose de caos. A cantora suou, dançou, se jogou no chão, pediu pros fãs cantarem e até incentivou que eles subissem um nos ombros dos outros. Um tanto quanto divisivo, o show de Charli me agradou bastante, pois a minha expectativa era realmente essa: uma dose de caos e muitas batidas de hyperpop. Ela passou por seus principais hits, como “Beg for you”, “Boom Clap”, “Boys” e “Vroom Vroom” e, para mim, fez um encerramente divertido para quem se aventurou madrugada adentro. 2h e tanto da manhã consegui ir embora, uma dose de tumulto na saída, mas até que consegui escapar rapidamente. Com dores nos pés, pernas cansadas e o corpo exausto, a sensação quando entrei no uber era a de alegria plena, pois o domingo não deu tempo de descanso, foi um show bom atrás do outro, não vi um show ruim, não peguei filas nem pra comprar bebida nem para ir ao banheiro e ainda encontrei tanta gente bacana. Bom demais ir num festival de música em que as pessoas são realmente apaixonadas por música, em que a gente vê o público cantando e chorando na plateia, em que você faz amizade com a pessoa ao seu lado na hora de cantar um refrão, em que você se sente parte de algo coletivo. Espero que logo possamos ter mais um Primavera Sound em São Paulo!

Foto de Fernando Yokota

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/
– Janaina Azevedo (www.facebook.com/janaisapunk) é jornalista e colabora com o Scream & Yell desde 2010. A foto que abre o texto é de Steven Friederich.
– Manoel Magalhães (@manoelmagalhaez) é músico e jornalista. Vive no Rio de Janeiro.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. 

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