Entrevista: Maurício Pereira fala sobre seu novo disco, “Micro”, sobre filhos, São Paulo, Brasil e sobre ser artista independente

entrevista por Bruno Capelas

Um disco nascido na estrada, em teatros pequenos e grandes palcos, em subsolo de coworking, pátio de hamburgueria vegana e quintal de hostel. Esse é “Micro” (2022), novo disco de Maurício Pereira – aquele cara que fala na propaganda da operadora, é o pai do Tim Bernardes e já tocou com o André Abujamra n’Os Mulheres Negras. Gestado feito easy rider e gravado durante a pandemia, “Micro” reúne doze canções do repertório solo de Pereira, gravadas entre o início dos anos 1990 e meados dos anos 2000, em formato quase-mínimo: apenas um duo entre o cantor e o guitarrista Tonho Penhasco, seu parceiro de longa data.

“O ‘Micro’ nasceu como show de combate, despojado, para tocar em todos os lugares. Era guitarra e voz, duas passagens, um quarto de hotel simples, pedindo apoio da produção local. Aos poucos, esse show funcional de estrada foi ganhando espírito – e a gente percebeu que tinha que registrar”, conta Maurício sobre o trabalho, produzido por Gustavo Ruiz. Indicação de Tim Bernardes, Gustavo já havia sido responsável pelo mais recente disco de Pereira, “Outono no Sudeste” (2018), em uma experiência que Pereira chama de “redentora”. Agora, o produtor ajudou a dupla a chegar num resultado macro, passando longe da sonoridade magra de trabalhos “acústicos”.

“Eu e o Tonho somos de garagem, mas é uma garagem de luxo. Não abro mão da excelência estética. Se eu tiver uma lâmpada, faço iluminação. Se tiver microfone, tem que soar bem”, explica Pereira. “E o Gustavo achou um microfone que me fez a minha voz soar que nem a Billie Holliday e achou um amplificador Fender Twin dos campeões, que a Lucinha Turnbull tinha ganho do Gilberto Gil na turnê do ‘Refavela’. São equipamentos que botam os timbres em outro patamar.”

Para chegar ao repertório, Maurício fez uma seleção diversa, buscando privilegiar o trabalho de Tonho como guitarrista e também resgatar canções que, a despeito de terem duas ou três décadas, soam frescas. É o caso da salsa “Pan y Leche”, feita em pleno governo Collor, quando Tim Bernardes ainda estava no colo, mas que parece inédita. “Eu estava tentando ser estrutural, mas a história é cíclica. Se você olhar para o Brasil de quando em quando, sempre vai ter um presidente com pinta de ditador, entregando o ouro. Eu cresci na ditadura, então olhar pro governo e me sentir desamparado sempre esteve lá”, explica o artista.

Nessa entrevista para o Scream & Yell, Maurício Pereira fala sobre “Micro”, os planos de recolocar o disco na estrada e o fato de ter hoje, como amigos músicos, os filhos Chico e Tim Bernardes. “Como pai, ter filhos artistas me preocupa, eles são pessoas públicas, têm muitos haters na rede social, mas como artista eu aprendo muito com eles”, diz. Também conta as histórias por trás de suas canções – incluindo “Trovoa”, que se tornou o hino de uma geração. “Ela expressou coisas que eu mesmo não sei bem, foi meu inconsciente que colocou lá, mas ela bateu realmente para muita gente.”

O que se lê a seguir é um papo “imenso, maior do que penso, é denso”, mas que evidencia o pensamento e a realidade de um artista que, há mais de três décadas, vive o que é ser independente no Brasil. Que transpira São Paulo e já soube o que é estar escondido, que foi redescoberto pela cena indie de Kiko Dinucci e Rômulo Fróes, que pensa sobre o mundo que vive de maneira sensível e atenta. “Uma das violências do mundo de hoje é o excesso de informação, é algo que dessensibiliza a gente. A gente normaliza muita brutalidade pelo excesso de informação. Excesso de arte também: faz a arte virar não-arte, faz tudo ficar chapado”, afirma. Pare, sente na poltrona e preste atenção, caro leitor: com a palavra, Maurício Pereira.

Vamos começar do começo, Maurício. Como é que nasceu o “Micro”? E por que regravar o seu repertório?
Eu sou parceiro do Tonho Penhasco de longa data. Em todos os meus discos autorais desse século, o Tonho era o primeiro cara que eu ia encontrar depois que tinha as canções escritas e os arranjos pré-desenhados. Isso aconteceu no “Pra Marte” (2007), no “Pra Onde Que Eu Tava Indo” (2014) e no “Outono no Sudeste” (2018). O Tonho é um parceiro que coloca a bola no chão, que põe as cartas na mesa. Mas apesar da parceria, a gente tinha ido pouco juntos para a estrada. Quando eu precisava ir para a estrada de um jeito mais econômico ou mais conhecido, eu ia com o [Daniel] Szafrán e fazia o show do “Mergulhar na Surpresa” (1998), porque o Szafrán conhece todo o meu repertório. Artista independente é aquilo: você faz o show grande, com banda, para lançar o disco no Sesc. Depois o show cai na estrada… e você diminui a produção. Eu sou muito independente, alternativo, não tenho bala, não costumo entrar em lei de incentivo para fazer o show circular. E na boa, eu sou vira-lata da estrada. E em 2014, acho, eu falei para o Tonho que a gente devia montar um show econômico para ir para a estrada. Guitarra e voz, duas passagens, um quarto de hotel simples, usando a minha produção em São Paulo e pedindo apoio da produção local. O “Micro” nasceu na estrada, como um show de combate, despojado, para tocar em todos os lugares, teatro pequeno ou grande. Com o “Micro”, a gente já tocou em subsolo de coworking, em quintal de hostel, em pátio de hamburgueria vegana, tem muita experiência assim. Mas na minha cabeça tem um troço que vem desde sempre: se por um lado eu consigo trabalhar com um mínimo de grana, por outro eu não abro mão da excelência estética do show. Se eu tiver uma lâmpada, eu produzo iluminação. Se eu tiver um microfone, ele tem que soar bem. O “Micro” era nessa lógica: um amp de guitarra, um microfone pra minha voz e um repertório forte, bem tocado e bem cantado. Caímos na estrada e tocamos um monte, dois, três anos, com o Tonho aumentando o repertório que ele tinha na mão dele. Então o “Micro” nasceu na estrada, com muita quilometragem, com todo o meu repertório à disposição para poder cantar em lugares que eu não ia sempre. Aos poucos, esse show funcional de estrada foi ganhando espírito. Um dia, num ensaio, eu percebi uma coisa e o Tonho também: a gente estava cantando diferente. Somos bem céticos, mas rolou um espírito nas canções. O que era uma canção bem tocada e cantada passou a ser arte, aquela coisa que você não tem mais controle da fúria. Quando chegou a pandemia, tínhamos muitos shows marcados. Em 2020, eu e o Tonho ficamos muito recolhidos, mas muito juntos. A gente se ligava todo dia para conversar da vida, do sofá, da política, do Brasil, da música, de outros músicos. Quando as coisas começaram a abrir em 2021, foi natural: senti que precisávamos registrar esse repertório. E aí começamos a ensaiar com cabeça de disco. Imediatamente, eu chamei o Gustavo Ruiz, porque a experiência que eu tive com ele no “Outono no Sudeste” foi redentora. Não sou mais o mesmo cara gravando disco depois do Gustavo.

O que mudou com o Gustavo?
Antes, eu mesmo produzia meus discos. Eu sou muito conciso. A minha tese é que eu consigo fazer uma boa produção de um disco, que não estrague a poesia e a delicadeza do meu trabalho. Com o Gustavo, é arte fonográfica, é estética, é conhecimento. Antes, eu só tentava ir para o estúdio de um modo barato, rápido e correto.

Estúdio custa caro…
Custa caro, e sempre fui eu que paguei, e eu não gosto de estúdio, do lugar. Eu tentava fazer um disco razoavelmente bom, correto, straight. Com o Gustavo, a gravação tem aquele calor de quem é do ramo, de quem sabe buscar o microfone certo, de mixar assim, de achar um ambiente de gravação. Um dia eu preciso escrever sobre isso, porque as duas experiências (“Outono” e “Micro”) foram além de tudo que eu tinha vivido. No “Outono”, ele fez a banda montar e desmontar os arranjos ao vivo no estúdio. Isso deu um frescor para o disco. No “Micro”, a gente gravou na casa dele, que é um estúdio – hoje os estúdios todos estão na casa dos caras. Ele achou um megamicrofone, que fazia a minha voz soar feito a voz da Billie Holliday. E um [amplificador] Fender Twin, dos campeões, que a Lucinha Turnbull tinha ganho do Gilberto Gil na turnê do “Refavela”. São equipamentos muito bons, que melhoram o timbre, que botam os timbres em outro patamar, junto com a sabedoria do Gustavo de como gravar. Eu expliquei para ele: o disco é “Micro”, a gente tá na estrada, é muito austero, muito simples, mas poeticamente é um disco gigante. E não é violão e voz, não é MPB, é pop rock. O Tonho tem uma pegada particular, ele é bom timbreiro. Ele sempre timbra bem, tem um timbre gordo, de guitarrista, de quem ouviu Jimmy Page, Hendrix, Allman Brothers. Eu expliquei tudo pro Gustavo: preciso de delicadeza, de uma coisa áspera. O refinamento está em trazer a aspereza com detalhe. É micro, mas é enorme, tem muita nuance no canto, vida que segue. Depois de gravarmos, o Gustavo falou pra gente mixar no Renatão Coppoli, um cara da velha guarda, que tem uma mesa analógica na casa dele. O Renatão foi quem mixou o primeiro disco d’O Terno, o “Pra Marte”, é um cara que está há um tempão na estrada. Ele mixa como rock’n roll, sangue mediterrâneo. É uma sabedoria que também veio do Gustavo, de sacar o produzido. Antes dele produzir o “Outono no Sudeste”, falamos muito de cinema, trocamos referências, falamos de música, do pai dele [o guitarrista Luiz Chagas], do Tonho Penhasco, do Martim, da Tulipa. Tomamos muito café, em uma interação espiritual técnica. O Gustavo é muito sensível e, ao mesmo tempo, tem muito conhecimento técnico. O que ele fez no disco da Liniker, pô, ele produziu um disco de luxo! E eu disse para ele que eu e o Tonho somos de garagem, mas é uma garagem de luxo. Ninguém precisa saber que dentro do capô do disco tem dez terabytes de informação técnica. E ele sacou isso. O Gustavo é um encontro que mudou minha vida. E foi uma sugestão do Martim! Em 2017, eu ia gravar o “Outono”, estava pronto para me autoproduzir. E o Martim chegou para mim: “Pô, pai, não dá mais para você gravar seus discos sozinho. É legal? É, mas você precisa subir de patamar, precisa ambicionar”. Ele me indicou uns caras. Achei o Gustavo legal, era mais próximo, já conhecia o trabalho, estava em São Paulo. Falei pro Tim que ia ligar, mas não liguei. Uma semana, duas… de repente o Gustavo me liga. O Tim sacou que eu ia embaçar, que ia acabar eu mesmo produzindo o disco, e foi lá ligar pro Gustavo. Aí eu saquei que tinha que ir para as cabeças. Para mim, o custo é um dilema na produção dos discos. Eu me banco. No “Outono”, de forma casual, eu consegui muito escambo. Fiz uns pacotes, troquei favores, gastei pouquíssimo e fiz um disco grande. No “Micro”, tive que juntar uma grana, saiu mais caro que o “Outono”, por incrível que pareça.

Quanto custou o “Micro”?
Olha, vamos dizer… (respira). Discos tem dois preços, né? O que a gente paga e o que eles custam de fato. Vamos dizer que até agora, eu tinha um dinheiro guardado, tô devendo um tanto e vou recuperar. O “Micro” deve estar custando uns R$ 50 mil. Mas se colocar em valores reais, ele custa uns R$ 200 mil. Sempre foi isso. Eu gravava meus discos com R$ 10 mil, R$ 20 mil, R$ 30 mil. Mas se for colocar em valores reais, eles custam 100, 150 paus. A gente troca muito. Um produtor grava o disco, depois eu vou lá e gravo o dele. Eu ajudo a conceituar discos, canto no disco dos outros. No Brasil, o showbiz não tem dinheiro, então a gente troca muito. É independente, estamos na pré-história, mas trocamos muito. E o “Micro” é um disco simples, que para ser bem feito ele custa caro. What you pay is what you get, ter bons profissionais, equipamentos, isso tudo custa. Eu nunca cresci com lei de incentivo, não tenho esse hábito, eu cresci com bilheteria, desde a época dos Mulheres Negras. Lei de incentivo é legal para quem é de periferia, para quem é fora do eixo Rio-São Paulo. Eu sou homem branco, macho, classe média, então eu me viro. Faço locução, dou oficina, dou canja no disco das pessoas, produzo, caço uma grana e vou para cima do disco. Não tem segredo. Se a gente fosse americano, em que tudo se paga, não tem escambo, mas onde o mundo alternativo gira dinheiro, o “Micro” custaria uns US$ 20 mil. É isso: colocando na ponta do lápis, um bom disco custa dinheiro.

Maurício Pereira e Tonho Penhasco / Foto de Biel Basile

Um show dura mais do que o tempo do “Micro”, que tem pouco menos de 45 minutos. Como foi escolher esse repertório?
Tinha algumas músicas bem lado-A [no repertório] que eu queria colocar, como “Imbarueri”, “Dia Útil”, “Pan Y Leche”. Outras, como “Andas Seca”, “Deixa Eu Te Dizer”, “Não Adianta Tentar Segurar o Choro”, foram músicas que o Tonho chegou num desenho bacana de arranjo. Um dos motivos do disco é poder registrar o trabalho do Tonho como pensador guitarrístico. A própria “Um Dia Útil”, o Tonho falou pra mim: “Pereira, não tem que complicar. Eu vou fazer violão de fogueira, é uma música reta”. Mas “Um Dia Útil” tem tensões harmônicas, uma timbragem de rock’n’roll que envenena todo o passado dessa música, então tinha que registrar. E tinha músicas que achei que, na gravação original, eu não sabia cantar. Leva anos para saber como cantar uma música. “Trovoa”, quando eu gravei em 2007, eu não sabia cantar. Levou uns três, quatro anos para ter “Trovoa” na corrente sanguínea. Um dia vou gravar “Trovoa” de novo, como se deve. No show, a gente toca, mas no disco ela não tá. E tinha algumas canções que eu queria gravar de novo porque são atuais: falam do mundo violento, polarizado, grosseiro, com excesso de oferta de informação. “Pan y Leche” tem a ver com esse mundo, “Não Me Incommodity”, “Um Teco Teco Amarelo em Chamas”. “Teco Teco” é revolta interior transformada em poesia, é fúria, é como se eu tacasse fogo no meu corpo e me atirasse contra um tanque na praça de Pequim. É um quadro clássico que tinha nos anos 1960. Mas eu não sou um cara desses: eu funciono muito pela poética. Nunca vou escrever uma música que vai dizer “eu vou dar porrada em fascista nojento”. Então eu faço coisas na canção. “Teco Teco” é uma canção de fúria, de inconformismo. “Pan y Leche” é “abaixo a ditadura”, é “o povo unido jamais será vencido”. Só que ela vem com doçura, é o jeito que eu consigo fazer. Enfim, é essa a ideia do repertório do disco, tem coisas que entram por acaso, tudo misturado. Tem hora que eu olho e me pergunto se devia ter gravado “Imbarueri” de novo. Mas pô, ela tem uma delicadeza nessa gravação que ela nunca teve, a leitura do Tonho é sempre muito bonita, então justifica tudo.

Uma nuance simples e muito bonita desse disco é o tempo – ou a atemporalidade. Quando você canta “apesar do presidente”, em “Pan y Leche”, tem essa atemporalidade. Como é ver essa música de três décadas ainda fazendo sentido? É bom ver a música resistindo ao tempo ou é ruim ver que o Brasil não melhora?
Já pensei muito nisso. “Pan y Leche” tem a idade do Martim, que tem 31 anos. Eu fiz a música com ele no colo, um pouco depois dele nascer. Na época, minha mulher tinha saído da licença maternidade e eu ficava em casa, cuidando do Martim e compondo o que veio a ser o “Na Tradição”, meu disco de 1995. Depois que eu saí d’Os Mulheres, vi que ia entrar num mundo de pobreza, não ia ter grana para gravar e não sabia quando ia gravar um disco de novo. Meus discos autorais saíam de cinco em cinco anos, seis anos, então eu pensava que ia levar muito tempo para gravar um disco. E o público era pouco. Então, eu pensava que precisava fazer uma música em 1991, em 1992, mas que talvez ela só fosse ser escutada em 2020. Tinham que ser canções gerais, que funcionassem hoje e daqui a 50 anos, inclusive na sonoridade. É por isso que meus discos não têm invenção: é piano, baixo, bateria e guitarra, uma fórmula que funciona em 1930 e 2030. E como é que se faz uma canção durável, um texto que dure? Isso foi algo que o velho Antonio Abujamra, pai do [André] Abujamra, me falava: “pô, vocês têm que ler os clássicos!”. Tem tudo a ver: num mundo que tem 10 bilhões de livros para ler, se você ler a tragédia grega, Shakespeare, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, os clássicos, eles acabam englobando todo o resto. E foi essa a sacada: eu tenho que ser clássico e essencial na hora de estruturar meus temas. Isso não se faz só com a cabeça, mas com a intuição: joguei muita coisa fora porque achei que ia ficar datado. Sou até meio severo demais com a minha caneta, joguei muita coisa fora. Meu processo criativo é duro, cruel, eu sofro para escrever, mas são músicas que duram. “Pan y Leche” é isso: foi feita quando entrou o governo Collor. A gente sacava que ia ser um governo autoritário, economicamente neoliberal, com muito pouca defesa do povo. O Collor fechou a Funarte, fez um confisco, foi um governo duro para o cidadão comum. Eu estava saindo dos Mulheres, sem saber para onde a minha carreira ia, inexperiente e com o moleque no colo. Eu sentei, me bateu o pânico: “como é que eu vou alimentar esse cara? o que vai acontecer com o Brasil? o que vai ser feito da minha carreira?”. Só que o Brasil é um país tão louco… eu tento ser estrutural, mas a história é cíclica. Não é mérito meu, é que a história é cíclica. Você pode pegar uma música do Lamartine Babo, de 1930, e ela funcionar em 1950, mas não em 1970, mas funcionar de novo em 2015. Isso é da arte. É por isso que tem músicas dos Beatles, do Caetano, do Gil, tem épocas que elas colam no tempo presente. E “Pan y Leche” é bem isso: se você olhar para o Brasil de quando em quando, sempre vai ter um presidente com pinta de ditador, entregando o ouro. Pode ser que o General Dutra tenha sido isso, a ditadura foi isso. Eu cresci na ditadura, então olhar para o governo e me sentir desamparado sempre esteve lá. “Pan y Leche” tem essa sensação, e por isso ela cola bem hoje. Assim como “Não Me Incommodity” cola. É uma música que eu fiz há 20 anos com o Edson Natale. Na época, eu estava puto que a banda larga estava chegando e a molecada estava baixando uma discografia inteira de uma vez. Um cara baixava cem músicas em duas horas, mas gastava seis horas para ouvir. Eu não acreditava que a música pudesse ser uma commodity. Minha música tem que ser mastigada quarenta vezes, é álbum mesmo. Falei isso de bobeira e o Natale falou para eu escrever. E uma das violências do mundo de hoje acaba sendo o excesso de informação, é algo que desensibiliza a gente. A gente normaliza muita brutalidade pelo excesso de informação. Excesso de arte também: excesso de arte faz a arte virar não-arte, faz tudo ficar chapado.

“Na Tradição”, de 1995, e “Mergulhar na Surpresa”, de 1998

Queria falar de outro efeito do tempo, Maurício. Em “Um Dia Útil”, tem uma coisa bonita que é a contraposição entre “o pessoal lá de casa, os meninos”, e os “meus amigos músicos”. Hoje, os meninos, o Martim e o Francisco, são também os seus amigos músicos. Como é ter filhos como companheiros de profissão? Você forçou a barra para eles tocarem ou queria, como o Paulinho da Viola dizia, que eles estudassem Medicina, Filosofia ou Engenharia?
Aí é que tá: além do Chico e do Martim, que são músicos, tem a minha filha Manuela, que é atriz e dubladora. Minha preocupação como pai não é os caras serem famosos. É o cara pagar aluguel, pagar o supermercado no fim de mês e ter uma relação afetiva legal, levar uma vida razoável, com alguma felicidade, amar e ser amado. Então, eu não imaginava que alguém ali dos três ia ser artista. Se bem que com o Martim dava para desconfiar. Quando ele abriu a boca pela primeira vez, ele não falou “mamã” ou “papá”, ele falou “múca”. Música. Ele queria botar o CD no CD player. Eu tive que ensinar, com dois anos ele já sabia usar o CD player. Ele foi estudar, tinha uma violinha, uma bateria, desde criança… com esse não tinha jeito. O Chico foi mais tarde, e no fim a Manuela também foi para as artes. Eu acho legal, porque ser artista é uma profissão bonita, tesuda, a gente conhece gente legal, a gente expressa angústias, trabalha muito o pensamento, está abraçado com o mundo. Mas a profissão em si, o cotidiano, ele é sangrento. Às vezes você não ganha dinheiro, passa três anos gestando um trabalho e ele fracassa. Ou às vezes não fracassa, mas também não traz dinheiro e a gente continua tendo que pagar aluguel. A profissão é muito difícil. Não somos os EUA, em que um artista independente se sustenta com bilheteria e venda de disco, em que existe um midstream estruturado. Hoje também tem uma coisa que me preocupa mais: essa coisa da rede social, meio idiota, meio violenta, sem noção. Tem uma falta de respeito muito grande. Eu me preocupo muito com os meus filhos soltos na rua, sendo pessoas públicas. Vejo os haters por aí, as pessoas se dão ao direito de detonar qualquer coisa. Pô, não gosta do trabalho? Vai buscar um artista que você goste. E artista é muito um para-raio de desejos e frustrações das pessoas. Estou falando dos meus traumas de pai. Mas é demais conviver com artistas interessantes como os meus filhos. O Martim, você vê, foi diretamente responsável por melhorar a qualidade dos meus discos ao me indicar o Gustavo Ruiz. Os três são caras que trazem muitas sugestões, abordagens, modernidades que eu não conheço. Martim e Chico são artistas novos, têm jeitos de cantar, de se produzir, então trocamos muita figurinha sobre produção e caminhos estéticos. Eu aprendo muito com eles e eles aprendem muito comigo. O Martim foi meu roadie aos 14 anos. Então, com 14 anos, ele estava montando palco dos meus shows mais baratos – que são os shows mais difíceis de enfrentar –, montando bateria, vendo o show lá de trás, vendo como eu chamava a banda para improvisar. É um know-how de oficina mecânica que todo show tem e o Martim teve. É por isso que ele é tão completo no sentido de oferecer um espetáculo, pensando no cenário, no comportamento, no trato com o público, na iluminação. O Martim é mais perfeccionista que eu, é muito rigoroso, e está num patamar de público maior que o meu. Ele vivenciou coisas que eu não vou viver. Ser gravado por caras da MPB, os números, ele tocou no Maracanã! Eu vi uma foto dele tocando no Maracanã e fiquei maluco. Já o Chico é outra experiência, outra parada. Ele é quase um folk, um menestrel, uma coisa de repouso. Na pandemia, como ele estava na mesma casa que eu, fizemos alguns shows juntos, online, e ele me produziu em algumas coisas. O Chico grava muito bem, ele tem a sonoridade na orelha. A geração deles faz isso muito bem. E a Manuela, minha filha, tem um canal chamado Epifanias Noturnas, então ela me dá muita dica de redes sociais, puxa minha orelha quando eu tô sendo muito caipira. O legal de ter filhos no ramo é que a gente discute coisas técnicas, mas com amor. Eles têm a liberdade de dizer que eu caguei, que eu fiz tudo errado, que tô fazendo algo como se fazia em 1985, que hoje tem um aplicativo para resolver tudo isso. Podem me dizer que eu tô vacilando no trato com meu público ou cantando uma música de um jeito preguiçoso. A gente tem conversas técnicas preciosas, eles têm muitas experiências interessantes. Como pai, ter filhos artistas me preocupa, mas como artista eu aprendo muito.

Tenho duas sensações sobre a sua carreira, Maurício. A primeira, talvez por ter visto muita TV, é que você sempre esteve presente, seja na TV mesmo ou em propagandas. Eu não me lembro de um momento em que eu descobri que o Maurício Pereira existia. Como é que você vê isso?
É muito louco. Sou um artista que começou a carreira tarde, eu tinha 25 anos n’Os Mulheres Negras. Com 25 anos, o Martim já tinha dois, três discos gravados. O Chico gravou com 18. E eu me formei como jornalista, cheguei a trabalhar, foi meio sem querer querendo que virei artista. Para mim não é fácil o trabalho artístico. É diferente dos meus filhos, que foram criados no palco. Eles não têm tanto… trauma. Eu tive que mudar de profissão para ser músico. E eu caí na profissão cheio de contradições: sou introvertido, não tenho um ego gigante explícito. Ego implícito eu tenho, não tenho ego murcho não, mas não sou pavão. Eu tinha medo de avião, para mim era difícil me mostrar, frequentar festas. E para fechar, eu sempre tive esse sonho meio “easy rider” de cair na estrada. Acho que demorei para ganhar visibilidade. O Mulheres me deu certa visibilidade, mas depois eu fiquei muito tempo escondido. Nos anos 1990 e antes de existir essa cena indie, que mais ou menos eu acho que começa em 2005… foram 15 anos que eu fiquei muito escondido. Fiz três discos nesse meio tempo: o “Na Tradição” (1995), o “Mergulhar na Surpresa” (1998), que é um disco do meu coração, um fracasso comercial, mas um disco que resistiu ao tempo, e o “Canções Que Um Dia Você Já Assobiou” (2003). O que me botou na roda foi a cena indie. Foi Rômulo Fróes, Kiko Dinucci, esse povo ali da primeira golfada do indie que começou a citar meu nome. O Kiko me convidou para gravar uma música no disco dele, o Metá Metá gravou “Trovoa”. Em 2008, a Casa de Francisca me convidou para fazer um show do “Mergulhar na Surpresa”, dez anos depois que eu gravei o disco… e isso rendeu uma matéria de meia página na Folha! Essa molecada (alguns não são tão moleques) me abraçou. Meus métodos de sobrevivência na profissão e na poética casavam muito com eles. Mas sei que a minha carreira é meio desconjuntada. Outra coisa que faz diferença é que eu sempre fui muito paulistano na maneira de me comportar, de sentir, de escrever. Nos anos 1990, São Paulo não era o lugar hegemônico artisticamente no Brasil. Era o Rio. E os anos 1990 foram muito do manguebeat, do axé… eu era um dos poucos caras, além do rap, que escrevia em idioma paulistano – e isso dificultava o meu trabalho chegar no Brasil. Por outro lado, os anos 1990 são transformadores para São Paulo. O mundo pós-moderno pôs São Paulo no mapa, com a Parada Gay, a Fórmula 1 em Interlagos, a Mostra de Cinema, isso colocou São Paulo hegemônica no fluxo de gente que passava por aqui. E eu vim nesse bolo, fui um krill grudado nesse mar. Esse movimento culminou com a cena indie, na primeira década do 2000, porque tinha muitos sotaques diferentes no indie, muitos pernambucanos, muitos gaúchos, sempre penso no Júpiter Maçã. E para mim era importante poder falar errado, ser mais áspero, coisa de São Paulo mesmo, né? São Paulo abraçou o indie porque a gente sempre viveu à parte da lei de incentivo, da Rede Globo, das grandes gravadoras. A gente sobreviveu de algum modo, a cidade tinha dinheiro – e eu estava ali no subterrâneo dessa coisa. Sei que a minha poesia é forte, sempre foi, mas eu estava escondido. Se o mundo não tivesse aterrissado em São Paulo, talvez a gente não estaria falando aqui agora. Devo muito a esses artistas do século XXI que levaram meu nome, me chamaram para cantar junto, gravaram “Trovoa”, que prestam atenção nas minhas conversas. Troquei muito com eles, gravei com eles, troquei muito com os produtores. Eu renasci na mão dessa cena indie. Mas não sei se respondi tua pergunta!

“Canções Que Um Dia Você Já Assobiou – vol.1”, de 2003; e “Pra Marte”, de 2007

Respondeu! E antecipou a outra parte, que era sobre uma sensação de que o Maurício Pereira está sempre sendo redescoberto por alguém.
Para os iniciados, eu sempre existi. Sempre teve um público bem pequeno que me conhecia de longa data. Mas para muita gente, eu sou o pai do Martim. É engraçado: muita gente não associa eu ser locutor de propaganda, que é um troço que eu fiz para sobreviver e me fez aprender um monte. Foi algo que mudou até meu jeito de cantar. Mesmo os caras da Vivo, para quem eu fiz muita propaganda, não conheciam direito minha carreira musical. Era muito longe do mundo das corporações. E vice-versa: muito cara que me ouvia cantando não pensava que era o mesmo cara que fazia locução. É verdade, eu estou sempre sendo descoberto. Cada vez que o Martim faz um post sobre mim, ou o próprio André [Abujamra], aparece muita gente no Instagram começando a me seguir. “Pô, esse Maurício Pereira aí… ele que era do Mulheres Negras? Pô, ele que é o pai do Martim? Não acredito!”. Então, eu me sirvo de tudo que tem para conseguir um pouco mais de público.

Você falou da importância de “Trovoa” na tua redescoberta. É uma música singular na tua carreira. Para muita gente, é um hino de geração, uma música que brilha… tem gente até que só conhece “Trovoa” e não conhece o resto da sua carreira.
Isso é normal, normal.

Mas tem duas coisas que eu queria saber dela. A primeira é como é a tua relação com a música depois da redescoberta, das regravações. E a segunda é que certa vez você definiu “Trovoa” como uma ode à monogamia. Nesses tempos em que todo mundo fala mal da monogamia, queria entender esse sentimento.
É, eu sou um tiozinho straight num mundo louco, né? Num mundo que não tem mais só dois gêneros, né? Eu venho de outra época. Mas uma vez que eu sou monogâmico, isso tem que ser legal pra caralho, senão não dá, né? A monogamia não é algo que a gente quer. É algo que tem muita contradição. Eu estou casado com a mesma mulher há trinta e poucos anos, mas eu venho me casando com ela ao longo desse tempo. Hoje isso é mais claro, é mais sossegado, mas quando você é mais jovem, isso é muito louco: os desejos trespassam a gente. Nós somos carregados de libido e desejo. Não vou defender nada com unhas e dentes, porque o mundo é misterioso e nada é fechado. Mas “Trovoa” não é bem sobre monogamia. Deixa eu contar a história dessa música. Se eu gravei “Trovoa” em 2007, eu devo ter feito ela em 2003, 2004. É o tempo que eu levo para fazer um disco. Nessa época, eu estava muito agoniado, estava muito difícil de trampo, o Chico era pequeno ainda. Em italiano, existe uma palavra para o que eu sentia na época: “sconvolto”. A cabeça estava girando muito, estava trovoando mesmo. Era uma época que eu tinha muita angústia e muita insônia. Às vezes eu acordava cedo e saía andando perto de casa, na zona oeste de São Paulo, para a Vila Ipojuca, para a Lapa. Era como se eu precisasse ver o cidadão comum acordando, o ônibus passando, a padaria abrindo, cheirar o café, ver as pessoas saindo com ramela no olho, para conseguir me tranquilizar. E aí pintou a chance de fazer o “Pra Marte”, numa das raras leis de incentivo que eu entrei, no Projeto Petrobrás, que privilegiou artistas pequenos. A grana era pouca, mas era suficiente para fazer um disco. Fiz um repertório e pensei em gravar achando que aquele ia ser meu último disco, que não ia ter mais espaço para mim. Então eu ia gravar um disco com meus amigos, escrever desbragadamente e pronunciar tudo como paulistano. Era meu testamento e pronto, acabou, tchau, vou fazer outra coisa. São músicas que eu escrevi de um jeito paulistano, não tem plural direito. “Trovoa” mesmo: eu não falo “não vou ser teu amigo”, eu falo “num vô sê teu amigo”. Não tá em português, tá em paulista. “Trovoa” claramente foi uma música que eu fiz andando, caminhando e somando imagens na minha mente, lembranças, sentimentos, coisas que eu vi na minha frente, que eu imaginei, coisas que eu imaginava que poderiam acontecer em São Paulo, numa cidade grande. Eram situações afetivas, que me davam alegria ou tesão ou tristeza ou medo. “Trovoa” é um fluxo, não tem muita explicação, são cinco minutos de música sem repetição. É tipo uma balada, meio Bob Dylan. Quando eu escrevi, era um rap: pus no computador uma base, era um rap. Eu dividia como rap. Mesmo sendo branco, eu ouvi bastante rap, é uma música paulistana e São Paulo sempre me interessou. Mas aí eu pensei que não podia fazer rap. Ainda não se usava a expressão “lugar de fala”, mas eu não queria pagar de turista. Um branquelo fazendo rap? Não. Então meti uma harmonia e deixei ela bem lírica, cantei ela como um descendente de mediterrâneos. Deixei ela mais lírica, mais doce, quase piegas em algum momento. Eu não imaginava que não ia dar certo. Afinal, foi um disco que eu escrevi em paulistano, uma música que não tem refrão, não tem quadratura. Gravei, tudo bem. Quando o disco saiu em 2007, senti que as pessoas se emocionavam, mas era o meu público pequeno, o giro do “Pra Marte” foi pequeno. Eu sabia que era um bom repertório, gravado com simplicidade. Era uma banda tipo Stones: baixo, bateria e duas guitarras, com o Tonho Penhasco e o Luiz Waack, que tocaram com o Itamar Assumpção em “Sampa Midnight”. Eu fiz questão de ter os dois para soar bem paulistano, ainda que eu tenha feito eles ouvirem muito James Taylor para escapar daquele Itamar todo. Eu queria um disco pop-rock, meio folk, minha referência para aquele disco era meio Stones. E aí “Trovoa” ganhou vida. A cena indie veio pinçar essa música e ressignificou ela. Eu escrevi sobre Santa Cecília quando Santa Cecília ainda não era essa coisa. Tinha uma imagem na minha cabeça, alguém num bar em Santa Cecília batendo a mão num copo de cerveja. Quando eu era pequeno, eu morei no bairro, eu ia no salão de barbeiro no largo de Santa Cecília, ia comprar brinquedo no Mappin. São cenas, são misturas e lembranças. Não sei, acho que “Trovoa” foi ressignificada por quem cantou e quem ouviu. É uma música que fala de coisas cotidianas, fortes. E tem uma coisa sobre a psique da gente: é uma música com um espírito meio assim, “eu sou legal, mas sou um idiota também. Ok, eu sou um idiota, mas eu mereço o melhor. Claro, todo mundo tem que ser feliz, mesmo que você seja um cretino. Mesmo que você não saiba fazer, você faz. E aí quando você menos espera, a luz aparece”. “Trovoa” é isso: tentativa e erro, acerto, ela é muito sincera, muito simples. É um texto de palavras de música comum, de rádio, na boca de um cara que tem uma caneta mais louca, como a minha. Não tenho muita explicação para “Trovoa”, embora eu tenho te dado um monte de explicações. Acho que ela deve ter expressado coisas que eu mesmo não sei bem, que o meu inconsciente colocou lá, mas ela bateu realmente nessa geração.

“Pra Onde Que Eu Tava Indo”, de 2014 e “Outono No Sudeste”, de 2018 

Você falou sobre “lugar de fala” e isso me leva a uma pergunta que sempre quis te fazer. Como você olha para o nome Os Mulheres Negras hoje?
Olha, é complicado. Quando a gente criou o nome da banda, tinha muito a ver com o fato de que a minha geração dos anos 1980 era muito tributária da música negra. Nós, Skowa e a Máfia, Luni, Lagoa 66, todo mundo ouvia muito Prince, James Brown, Marvin Gaye, Afrika Bambaatta. Era um nome que parecia natural para o Mulheres. Dois branquelos, era um nome nadavê, mas era uma época de nomes loucos para as bandas: Paralamas do Sucesso, Bíquini Cavadão… Era algo casual. A gente viu o nome na lombada de um livro, gostou, pronto. Era um mundo mais solto, mais frouxo, as pautas não tinham entrado em pauta ainda. Hoje, acho o nome complicado. As pautas são corretíssimas e o mundo vai ter que se transformar. As piadas vão ser diferentes. As pessoas vão se referir às outras de uma maneira menos agressiva, preconceituosa. O mundo está em transformação e não é só para o mal, é para o bem também. Vamos ter que achar outra soltura para lidar com quem é diferente da gente. Estamos em guerra com conceitos, com certezas, com a ideia de que há apenas dois gêneros, guerra com o branco ser hegemônico. É guerra com tudo isso, mesmo para quem ainda não sabe. Hoje, o Mulheres Negras teria outro nome. Eu não sei, para mim é um haikai, mas posso abrir a boca aqui e alguém dizer que sou racista. Há alguns anos, o Mulheres fez uns shows e alguém peitou a gente na rede social, dizendo que era apropriação, já que não somos mulheres nem negras. Quando isso aconteceu, nem o André nem o Agnaldo, nosso produtor, que é o terceiro mulher, nenhum dos dois estava por perto. E eu respondi o seguinte: em princípio, a gente não é racista. Aparece num show, vem ver o que é, analisa, debate e conversa com a gente. Estamos à disposição. Se você achar que a gente tá ofendendo, oprimindo, a gente muda o nome ou acaba com a banda. Não queremos atrapalhar. Mas aí a pessoa apagou o post e a discussão murchou. Mas na minha cabeça, essa discussão não acabou, eu não sei mesmo. Hoje, o Mulheres não chamaria assim, seguramente.

Outra curiosidade que eu sempre quis saber é sobre as músicas que você fez para a trilha do “Castelo Rá-Tim-Bum”. São músicas para o universo infantil, mas não só para as crianças. Como é compor esse tipo de trabalho?
Você matou uma charada aí. Não sou especialista em criança, mas tive três filhos. Pela minha profissão, eu viajei muito, mas também fiquei muito em casa. Minha mulher assalariada ia trabalhar e eu ficava cuidando das crianças. Eu levei muito no parque, troquei muita fralda, sei pegar, curar, dar de mamar, dar banho, conversar quando a criança chora, contar história. Fui pai três vezes full time. Tive que conversar com criança, e me enche o saco historinha piegas de criança, a borboletinha amarela. É legal, claro, mas não é só isso. Criança gosta de maluquice! Minhas letras para o “Castelo” são um pouco malucas, o “Castelo” já era maluco. Peguei carona e fui pop, entrei nessas brincadeiras, meio tresloucadas, jogos de palavras. Às vezes você fala uma coisa esquisita, “o caminhão voou e caiu na cabeça da pulga”, e a criança dá risada com isso. Acho que é legal, tem muita produção bacana para criança, o “Castelo”, do Palavra Cantada para cá teve muita coisa boa. E muito da minha formação musical veio dos Disquinhos dos anos 1950 e 1960, eu ouvi tudo aquilo ali, era o Braguinha, o Guerra Peixe, o Radamés Gnatalli, era demais. Além disso, tem uma coisa que me interessa demais: deixar umas mensagens cifradas para os adultos, um feeling de escrever para a criança e para o adulto. Das quatro letras que eu escrevi pro “Castelo”, “Morgana” é a que mais fala para o adulto, que se o cara ouvir toma um chacoalhão. Até porque quase sempre os pais estão ouvindo junto, então já que eles estão ali, toma uma casca de banana também.

Para fechar, Maurício, quais são os planos de 2022? Botar o “Micro” na estrada, deixar “Pan y Leche” obsoleta de novo…?
Queremos deixar “Pan y Leche” obsoleta de novo. Queremos que o Brasil tenha um presidente que a gente não precise pedir nada para ele. Que a gente tenha um governo que se preocupe com a população, que já assuma pensando em erradicar a pobreza, pensando em respeitar opiniões diferentes. Vamos tornar o dia a dia do Brasil mais gentil, mais justo. O governo que a gente vive agora é um pesadelo, mas eu não acho que ele vem do nada, não. É um processo. Se pegar o Brasil de 1500 para cá, ele corre para o lado da injustiça e da violência. Então sim, vamos tentar fazer “Pan Y Leche” obsoleta. E não é que eu quero levar o “Micro” para estrada, eu quero voltar com ele para a estrada, porque esse é um disco de estrada. Eu e o Tonho estamos ensaiando, falei pra ele esses dias: “a gente precisa fazer aquelas viagens terrestres da gente. São Carlos via Piracicaba e Rio Claro, sabe?” E na pandemia, meio sem querer, eu escrevi muito para me desafogar, porque eu estava muito angustiado. Eu vi que eu tenho repertório pronto para um autoral, já estou trabalhando alguma coisa, mas sou lento com isso. Então em 2023, talvez, venha aí um trabalho autoral. Eu não sei como eu vou fazer, porque eu tô sem grana, não vai ser um trabalho pequeno que nem o “Micro”, vou precisar de banda. Talvez eu lance cada faixa como um single e cada uma tenha uma formação. Mas é isso, não tem muito plano. É botar o autoral pra andar e o “Micro” na estrada, num país livre.

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e é autor de “Raios e Trovões – A história do fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum”, editado pela Summus Editorial. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.

3 thoughts on “Entrevista: Maurício Pereira fala sobre seu novo disco, “Micro”, sobre filhos, São Paulo, Brasil e sobre ser artista independente

  1. É sempre muito inspirador e instigante ouvir o Maurício Pereira, em músicas, vídeos e em entrevistas ótimas como essa aqui.

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