Festival Las Palmeras Fiesta del Sonido

por Leonardo Vinhas

Aguas Dulces é um balneário localizado em Castillos, um município de pouco mais de 6 mil habitantes na província de Rocha, no Uruguai, acessível a partir de Montevidéu pela Ruta 9. A população fixa do balneário, distante a poucos quilômetros da pequena zona urbana, é de menos de 500 moradores, o que a deixa com cara de vila fantasma no inverno. Porém, o local é bastante concorrido no verão, e por isso não surpreende que aconteça um festival de música por ali.

Surpreende, porém, que seja um festival independente, com uma escalação diversificada e, para o cenário local, ousada em certa medida. Las Palmeras Fiesta del Sonido (LPFS) teve em 26 de dezembro sua quarta edição, uma vez mais sob a organização de Nicolás Molina, da banda Molina y Los Cósmicos. O músico e compositor nasceu e se criou em Aguas Dulces, e acredita que é necessário movimentar a região com arte, e que essa seja não apenas local, mas tão “multinacional” quanto possível. Por isso, a edição de 2015 contou com três brasileiros (os gaúchos Bob ShuT, Spangled Shore e DJ Muzak) e uma venezuelana (Yoyo Borobia), além de sete artistas uruguaios.

O festival aconteceu no Centro Deportivo Aguas Dulces – na realidade, um amplo campo de futebol com algumas pequenas edificações de apoio, ao lado da diminuta rodoviária local. A entrada era gratuita – sem cercas ou muros, era só chegar – mas a renda das comidas vendidas era integralmente destinada a dar apoio ao Baby Fútbol, programa de futebol para crianças de 4 a 13 anos mantido pelo Club de Pesca de Aguas Dulces. Metade da renda das bebidas também era destinada a esse fim, a outra metade sendo destinada à própria organização do festival para ajudar a cobrir os custos (o evento é realizado com orçamento bastante limitado, vindo de apoios de órgãos públicos e de pequenos comerciantes locais).

Tendo iniciada a alta temporada, já havia um fluxo de pessoas maior que o habitual pelas poucas ruas de terra do balneário, e aos poucos grande parte dessa movimentação foi se deslocando para Centro Deportivo, somando ao final mais de 700 pessoas, embora, pela rotatividade, seja possível supor que esse número barrou os 1000. A abertura, ainda com o céu azul das 19h (o anoitecer começa depois das 20h no verão uruguaio) ficou por conta do Nina, um duo da cidade uruguaia de Ismael Cortinas formado pelo casal Natália Espósito e Nicolás Plá, proprietários do selo indie Estampita Records. O som, um amálgama de melodias pop de dois acordes, noise e influências de dream pop, combinou com o horário, mas a verdade é que o Nina, com sua alternância de vocais, seus barulhinhos e suas guitarras meio etéreas, não se diferencia muito de outras “bandas de casal” do universo indie mundo afora. De qualquer maneira, funcionou bem.

O mesmo não se pode dizer (ao menos, não totalmente) da molecada montevideana do Dias Extraños. Os integrantes não têm mais de 19 anos, e a música reflete a inexperiência. É verdade que houve quem se interessasse, mas a garotada ainda não saiu de um amontoado de clichês colhidos a partir da década de 90 – e um cover pífio de “Take Me Out”, do Franz Ferdinand, só fez piorar essa impressão. Era uma banda de colégio – quase literalmente, por assim dizer. Que a universidade da vida os ensine daqui pra frente…

O primeiro grande show da noite aconteceu a seguir. Patricia Horovitz também é da capital uruguaia, mas aos 17 anos já cantava blues em uma banda de músicos veteranos. Seguiu blueseira até que se encheu, começou a investigar a música eletrônica como compositora e se rebatizou como Phoro. As canções do seu primeiro disco, disponível para download gratuito, funcionam ainda melhor ao vivo, graças à sua presença de palco, onde ela se torna uma espécie de ninfa urbana, presa ao chão apenas por suas botas de couro. Phoro usa seu corpo magro e sua pele branca como artifício para se transformar em uma personagem de realismo fantástico cyberpunk. Sua música, por vezes sensual e vez ou outra obscura, convocou um público muito maior para o Centro Deportivo, atraídos pelos sons que saíam daquele ser incomum banhado por luzes vermelhas.

Yoyo Borobia manteve o encanto do público. Ajudou muito o fato de seu repertório já ser conhecido localmente, já que algumas de suas canções caíram nas graças das rádios locais. Em seu recém-lançado álbum de estreia, homônimo, Yoyo abandona o cuatro (instrumento típico da Venezuela) como fio condutor e agrega muito mais variedade de climas e texturas ao seu pop de influências das canções tradicionais de seu país natal e da Espanha, mais MPB e chanson françoise. O resultado, musicalmente, é muito mais interessante que aquele que ela vinha apresentando em shows apenas com o cuatro, mas o uso das trilhas pré-gravadas do disco como apoio para seu show acaba emprestando um ar de karaokê à coisa toda. Não que a plateia, encantada por seu carisma, se importasse com isso.

“Donos da festa”, Molina y Los Cósmicos fizeram um set breve, com apenas oito canções – metade do celebrado “El Desencanto” e as outras de “Folk de la Frontera”, que tem o lançamento previsto para fevereiro. Seu cruzamento de alt country com Nacho Vegas, folk, rock argentino e trilhas de western spaghetti fica melhor a cada apresentação, e temas novos como “YTC en el Fin del Mundo” e “Balada Cassandra” são completos e provocam sedução imediata. Entretanto, o destaque do show ficou para a melhor versão de “Landing Park” que eles já executaram. É curioso notar como eles ainda soam “esquisitos” para parte da população local, que ainda não acolhe a banda com o mesmo entusiasmo que o dedicado a La Vaca del Fondo, heróis blueseiros de Castillos.

Terceiro artista a subir sem banda no palco, o caxiense Gabriel Balbinot, vulgo Spangled Shore, vai na contramão das duas anteriores: banjo, violão, bandolim e percussão de pés, além de sua bem-usada voz, fornecem os “argumentos” para que ele apresente seu som cheio de folk e bluegrass, que ganha em velocidade e peso ao vivo. Mesmo sem falar espanhol, o rapaz conseguiu fazer o público cantar junto boa parte das suas canções em inglês, botou crianças e adultos para dançar e mostrou que as canções do seu vindouro segundo álbum, previsto para esse ano, são ainda mais interessantes que as boas faixas de “Coax the King”, seu álbum de estreia. Isso não impediu que o rapaz vendesse alguns discos por lá, e, mesmo cobrando 100 pesos uruguaios (cerca de 9 reais), houve uma fã que insistiu em pagar 300 (preço médio de um CD no Uruguai), porque não achava que valesse menos. Eis uma atitude que não se vê acontecer muito por aí…

Caxias do Sul continuou no palco com o Bob Shut, que ao vivo acelera seu indie pop com um pique próximo do punk noventista. Pena que não aceleraram a sua montagem de palco, atrasando o festival que até então vinha mantendo impecável pontualidade. Além das subestimadas canções de seu álbum “II”, incluíram dois covers à moda “punk caipira”: um para “Three Little Birds” (Bob Marley) e outro para “Viva Las Vegas”. Essa última foi cantada em português, com a participação de Spangled Shore, trazendo uma letra que celebrava o festival, a ideia de viajar para tocar música e a amizade de ambas as bandas com Nicolás Molina, surgida durante o Festival Brasileiro de Música de Rua 2015. Para não ter dúvida do teor da homenagem, a cidade dos cassinos foi esquecida no refrão, transformado em “Viva Las Palmeras”. Sorrisão no rosto de quem estava no palco e no público, apesar do vento frio que já castigava o início da madrugada. Mas não precisava da versão “banda de bar” para “Track Track”, de Fito Páez, usando a letra vertida para o português por Herbert Vianna.

O atraso do Bob Shut tinha provocado uma dispersão de parte do público, mas este foi voltando ao longo do seu show, e ficou notadamente maior quando La Vaca del Fondo começou seu show. Mesmo desfalcados de seu baixista Stefan Decuadros, a banda entregou um blues rock contagiante, com mais influências de Pappo (um dos nomes mais celebrados da guitarra na Argentina) e Stevie Ray Vaughan que dos bluesões clássicos. O carisma do vocalista Pablo Gonzalez era outro ponto importante na comunicação com o público. O curioso é que dois integrantes dos Los Cósmicos de Molina integram também La Vaca del Fondo: o guitarrista Martín Mendez e o baterista Nacho Vitancourt – ou integravam, já que o show marcou a despedida de Mendez, que deixou La Vaca.

Coube a Alberto Wolf y Los Terapeutas fechar o festival. Wolf é um dos mais veteranos compositores do rock uruguaio em atividade, contemporâneo do El Cuarteto de Nos (que tem mais de 30 anos de carreira, vale lembrar) e autor da canção que mais arrecadou em direitos autorais em seu país, “Amor Profundo”, famosa na gravação de Jaime Roos. A banda se notabiliza por incluir candombe e murga em seu som, mas a apresentação no LPFS focou no lado mais roqueiro, abrindo com as ótimas guitarras de “Desesperados” e incluindo uma poderosa versão de “Llueve” no meio. O frontman é uma figura: barrigudo, de cabelos enrolados longos e óculos de John Lennon, lembra uma versão desenho animado para uma mistura de Alceu Valença com Gerald Thomas. As letras também são estranhas, com uma poética própria (como dizer que “o caracol é o alcaguete da chuva”, na citada “Llueve”), mas o conjunto todo dá certo, misteriosamente, e é de se lamentar que tenham feito uma apresentação breve – breve demais para um headliner, diga-se. E mesmo com a friaca aumentando, o público não arredou pé até ver o palco começar a ser desmontado – quase 3h da manhã.

O saldo final do LPFS é daqueles difíceis de ser contabilizado na íntegra. Porque, além dos benefícios para o Baby Fútbol e para o turismo local, há a questão maior: o quanto um festival desse tipo impacta em uma comunidade pequena? O que vai representar, para uma garotada que vive numa pequena cidade de um pequeno país, ver aquelas pessoas no palco entregando tantas sensações e emoções diferentes? O que mudou na cabeça dos pais de família desavisados que passavam por ali, e algumas canções depois saíam procurando a organização do festival para comprar discos dos artistas, saber onde encontrá-los e curtir música mais desafiadora? E desculpem-me os que acham isso piegas, mas qual o impacto de uma feliz noite de verão na vida de uma pessoa? Las Palmeiras Fiesta de Sonido proporcionou muitas dessas coisas em um lugar de incomum beleza, com simplicidade, respeito ao público e profissionalismo. Há coisas para melhorar? Sempre há. Mas o exemplo e o resultado são muito bons. Que possam crescer e se tornar também legado.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
– Fotos de Ripi Arruti, Pata Torres e Ameba / Divulgação LPFS

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4 thoughts on “Festival Las Palmeras Fiesta del Sonido

  1. Alberto Wolf é un de nossos compositores mais criativos e sua banda com os Terapeutas é verdadeiramente profissional. Recomendo procurar vídeos em Youtube (deixo um que eu gosto muito abaixo). O valor de Mandrake para a música uruguaia é imenso e sao parte essencial de nossa paissagem musical.

    https://youtu.be/Jg5NRJl6K2w

  2. Patrícia, obrigado por seu comentário, e por tê-lo escrito em português. De fato, Wolf é um compositor destacado, e o texto o aponta. Nas redes sociais, alguns (poucos) fãs se incomodaram com o fato de ter mencionado de passagem que Mandrake está “barrigón”, mas isso foi apenas um comentário sobre sua curiosa figura no palco. O show foi muito bom, apesar de ter sido muito breve. Com um repertório tão vasto, o público certamente não teria se queixado de ter ouvido pelo menos mais umas seis ou sete canções.

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