Discografia Comentada: Nick Cave

por Leonardo Vinhas
Texto publicado originalmente em 2001 no Scream & Yell. Revisto em 2012

Nick Cave costuma ser associado à canções depressivas, momentos lúgubres, narrativas macabras, etc. Se é verdade que muitas dessas ligações sejam procedentes, também é fato que essa é apenas uma das facetas desse compositor australiano. Em muitas ocasiões, ele apresenta um humor ácido e inusitado, alternando as guitarras de suas canções podem ser discretas camadas ou gritar com velocidade; baixo e bateria desempenham seus papéis sem “preparação” prévia ou alteração de timbres; as cordas e os teclados (órgão e piano, nada digital) são mais ousados nas harmonias que nos arranjos.

Comentar a discografia de Nick é tarefa capciosa, já que ele possui uma carreira extensa, iniciada em 1976 com a banda The Birthday Party e que se estende até os dias de hoje. Além da formação já citada, Cave também gravou álbuns, EPs e participações em discos de diversos artistas. Aqui, será comentada sua discografia com os Bad Seeds, banda que o celebrizou e que também responde por sua maior e mais destacada produção musical. Também está listada a formação que gravou cada disco, já que os Bad Seeds mudam de acordo com as necessidades musicais e relacionamentos pessoais de Nick, mas isso não impede que os integrantes deixem suas marcas pessoais aparecerem de maneira perceptível.

Quando ganhou sua primeira reedição em CD, a primeira parte da discografia de Nick Cave (os quatro primeiros álbuns) veio acrescida de diversas faixas bônus em relação aos vinis. Porém, toda discografia de Nick Cave passou por um relançamento fiel e luxuoso a partir de 2009, com retorno dos tracking lists originais, faixas bônus extras (apenas em MP3 numa pasta dentro do DVD) e um documentário interessante acerca de cada álbum (três destes docs fecham o texto) além de cada álbum disponível em 5.1 Surround Sound. Abaixo, tentamos desmembrar o que cada edição traz e destacar o melhor do trabalho deste bando de malucos. Eis tudo o que você precisa saber para se aprofundar no mundo de Nick Cave and The Bad Seeds.

From Her To Eternity (1984)
Formação: Nick Cave (voz), Mick Harvey (bateria), Blixa Bargeld (guitarra), Barry Adamson (baixo), Hugo Race (guitarra), Anita Lane (parceria em algumas letras e na “concepção” do álbum).

A estréia das “sementes más” não ajuda em nada a dirimir a fama de Cave como um artista sombrio. O disco é opressivo, pesado, sufocante. Musicalmente é monocórdico e obsessivo, com letras que passeiam por ambientes sórdidos em companhia de personagens não menos. O único refresco melódico é a cover de “In The Ghetto”, celebrizada por Elvis em sua fase crooner de Las Vegas – mesmo assim, ela versa sobre uma criança abandonada que se marginaliza e termina assassinada pela polícia. Não que não existam ótimos momentos: a claustrofóbica “Cabin Fever”, o épico sombrio “Saint Huck” e a aterrorizante recriação de “Avalanche” (Leonard Cohen) respondem pela qualidade do álbum, sem contudo facilitar sua audição. O CD traz como bônus a muito superior regravação da faixa-título feita em 1987 para o filme “Asas do Desejo”, de Wim Wenders.

Tracking List: O álbum original tinha apenas sete canções e no relançamento em CD feito pela Mute Records (e copiado pela Paradoxx no Brasil) foram acrescentadas três faixas bônus: “In The Ghetto”, “The Moon Is in the Gutter” e “From Here To Eternity” na versão para o filme “Asas do Desejo”.

Sucessos: a regravação posterior de “From Her To Eternity”
Melhores faixas: “Saint Huck”, “In The Ghetto”, “Cabin Fever”.
Preferida: “Saint Huck”.
Nota: 6

The First Born Is Dead (1985)
Formação: Nick Cave (voz e gaita), Mick Harvey (baixo, piano e guitarra), Blixa Bargeld (guitarras), Barry Adamson (bateria e órgão).

Longe do clima sinistro do anterior, mas ainda com toques mórbidos, esse é quase um álbum de blues rock pesadaçol. Nunca a admiração de Cave pelos Stooges ficou tão clara em termos musicais, originando canções que se resumem a três ou quartos acordes atacados com fúria e intensidade. Dessa receita saem grandes faixas como a violenta “Train Long-Suffering” e “Tupelo” (baseada na obsessão de Nick com a morte do irmão gêmeo de Elvis Presley logo no parto, relacionando o tema com tradições bíblicas). Nessas duas faixas debutam os vocais de apoio que mais tarde seriam marca registrada da banda. Dentre os blues quase ortodoxos, “Black Crow King” e “Knockin’ On Joe” são boas amostras do que o álbum oferece. E há ainda uma versão de Bob Dylan (“Wanted Man”) envolvida num crescendo pesado que nunca chega a explodir. Disco foda.

Tracking List: O álbum original também tinha apenas sete canções e no primeiro relançamento foram acrescentadas duas faixas bônus: “The Six Strings That Drew Blood” e uma versão single de “Tupelo”. No relançamento de 2009 fica de fora a versão single de “Tupelo”.

Sucessos: nenhum.
Melhores faixas: “Train Long-Suffering”, “Tupelo”, “Wanted Man”.
Preferida: “Train Long-Suffering”.
Nota: 9

Kicking Against The Pricks (1986)
Formação: Nick Cave (voz, órgão e piano), Mick Harvey (baixo, piano, violão, guitarra e bateria), Blixa Bargeld (guitarras), Barry Adamson (baixo), Thomas Wydler (bateria).

Primeiro álbum a ser lançado no Brasil e também o primeiro a trazer o baterista alemão Thomas Wydler (também do Die Haut). Um disco de covers, alterna muitíssimo bem os climas, indo do baladão deslavado (“By The Time I Get To Phoenix”, de Johnny Rivers, e “Something’s Gotten Hold of My Heart”, de Gene Pitney) a canções tradicionais americanas (“Long Black Veil” e “Sleeping Annaleah”), incluindo ainda doo-wop magistral (“Jesus Met The Woman At The Well”, dos Alabama Singers, sobre o encontro de Jesus Cristo com uma samaritana em um poço), blues nervoso (“Ï’m Gonna Kill That Woman”, de John Lee Hooker) e recriações inusitadas e perfeitas para “All Tomorrow’s Parties” (Velvet Underground) e “Hey Joe” (aquela).

Tracking List: A versão em CD acrescentou duas canções ao tracking list original do vinil (que tinha 12 faixas) -“Black Betty” (de Leadbelly) e “Running Scared” (Roy Orbison) – e as duas também aparecem no reedição de 2009.

Sucessos: “The Singer” (de Johny Cash).
Melhores faixas: “I’m Gonna Kill That Woman”, “Jesus Met The Woman At The Well”, “Black Betty”, “All Tomorrow’s Parties”, “By The Time I Get To Phoenix”.
Preferida: “Black Betty”.
Nota: 9

Your Funeral… My Trial (1986)
Formação: Nick Cave (voz, órgão, gaita e piano), Mick Harvey (baixo, guitarra e xilofone), Blixa Bargeld (guitarras), Thomas Wydler (bateria).

Um dos álbuns preferidos de Nick Cave, lançado originalmente como vinil duplo de 45 rpm. Aparentemente um disco muito sombrio, apesar do humor sarcástico e da melodia “pra cima” de “Sad Waters”. Procurando, percebe-se mais. Segue com o rock’n’roll furioso de “The First Born Is Dead” nas fortes “Jack’s Shadow”, “Scum” e “Hard On For Love”, mas também investe em temas mais fúnebres e perversos – a contraposição de imagens de Santa Verônica e o Santo Sudário com uma prostituta dá uma idéia do que se apresenta lírica e musicalmente nessa obra. A faixa-título e “Stranger Than Kindness” são deleite para quem cultiva o baixo astral. Em resumo: as três facetas mais freqüentes de Nick Cave And The Bad Seeds – o rock furioso, o blues descarnado e as baladas funestas – separadas em nove fortes canções. É neste álbum que está o épico marcial “The Carny”, grande letra para uma canção cansativa.

Tracking List: Oito faixas no álbum original com “Scum” de bônus nas reedições em CD.

Sucessos: nenhum.
Melhores faixas: “Your Funeral… My Trial”, “Sad Waters”, “Jack’s Shadow”, “Long Time Man”.
Preferida: “Sad Waters”.
Nota: 8

Tender Prey (1988)
Formação: Nick Cave (voz, órgão, gaita e piano), Mick Harvey (baixo, guitarras, xilofone e percussão), Blixa Bargeld (guitarras), Thomas Wydler (bateria), Roland Wolf (piano e órgão), Kid Congo Powers (guitarra).

Disco perfeito. Aprendidas todas as lições de composição dos álbuns anteriores, Cave e os Bad Seeds fazem seu primeiro disco de banda, com participação de todos (principalmente de Harvey), erigindo uma identidade sólida e atingindo um padrão insuperável de qualidade, igualado apenas por eles mesmos. Os backing vocals fortes, os vocais de Cave desdobrando-se do menestrel canastrão ao narrador passional, a riqueza instrumental, a diversidade de idéias – ingredientes de uma concepção musical sem par (e olha que o Crime And The City Solution, banda liderada por Harvey, bem que tentou copiar). “The Mercy Seat”, que narra as impressões de um condenado à morte, tornou-se a obra-prima deles, secundada por outros clássicos como “Deanna” (um r&b rapidinho com letra assassina inspirada em “I Don’t Want Your Money”, de John Lee Hooker), “City Of Refuge” (blues-rock repetitivo e pesado sobre paranóia urbana), “Slowly Goes The Night” (balada de piano bar com piano cafajeste e vocais cafonas, linda!) e “Watching Alice” (depressão traduzida em música). “New Morning” fechou os shows da banda durante anos, talvez para que os concertos terminem com a ideia que existe a esperança mesmo entre a mais desconcertante desgraça, e é outro grande momento. Aliás, o disco todo é.

Tracking List: Tanto LP quanto a primeira reedição de CD tem o mesmo número de faixas: 10. Porém, a reedição de 2009 conta com cinco MP3 extras: versões acústicas de “The Mercy Seat”, “Deanna” e “City Of Refuge” mais “The Mercy Seat – Video Version” e o b-side “Girl at The Bottom of My Glass”

Sucessos: “The Mercy Seat”, “Deanna”, “City Of Refuge”.
Melhores faixas: “The Mercy Seat”, “Deanna”, “New Morning”, “Watching Alice”, “Slowly Goes The Night”.
Preferida: “The Mercy Seat”.
Nota: 10

The Good Son (1990)
Formação: Nick Cave (voz, órgão, gaita e piano), Mick Harvey (baixo, guitarras, vibrafone e percussão), Blixa Bargeld (guitarras), Thomas Wydler (bateria e percussão), Kid Congo Powers (guitarra).

Após uma bem-sucedida turnê brasileira em 1989, o artista ficou tão fascinado pelo Brasil (ele que já tinha grande interesse pelo país graças ao filme “Pixote”, de Hector Babenco) que resolveu gravar o álbum inteiro aqui (e casar com uma brasileira que conheceu durante a tour também deve ter pesado na decisão, claro). Gravado no estúdio Cardan, em São Paulo, e mixado por Flood (U2, Depeche Mode) em Berlim, “The Good Son” é carregado de melodrama. Repleto de referências bíblicas, as faixas tendem a buscar a placidez musical, mas a faixa título é uma exceção, combinando um refrão choroso com um riff grave e pesado, balizado por vocais de inspiração gospel (cantados pelos próprios Bad Seeds). Inclui ainda a apropriação do refrão de um hino evangélico (“Foi Na Cruz”, cantado em bom português), a bela “The Ship Song” e uma faixa que se transmutaria com o passar dos anos e ganharia uma outra cara (“The Weeping Song”). Isoladamente, tem excelentes faixas; no conjunto, parece faltar algo – que mais futuramente se descobriria o que era: uma consistência maior em um formato (canções lentas entre esperança e melancolia) no qual a banda superaria seu ídolo Leonard Cohen.

Tracking List: Três faixas bônus na reedição de 2009: “The Train Song”, “Cocks ‘n’ Asses” e “Helpless” (cover de Neil Young)

Sucessos: “The Ship Song”.
Melhores faixas: “The Ship Song”, ‘The Good Son”, “Lament”.
Preferida: “Lament”.
Nota: 7

Henry’s Dream (1992)
Formação: Nick Cave (voz e órgão), Mick Harvey (guitarra base, órgão e vibrafone), Blixa Bargeld (guitarra solo), Thomas Wydler (bateria), Martyn P. Casey (baixo), Conway Savage (piano).

Ciente que até os fãs se assustaram com o álbum anterior (alguns estrangeiros – alemães, principalmente – culparam a “má influência” do Brasil na suavização melódica e lírica), Cave retoma a fúria roqueira de “The First Born Is Dead” sem violentar tanto os ouvidos. O resultado é excepcional: as quatro primeiras faixas estão entre as melhores produções do combo. A abertura se dá às trovoadas de violão, guitarra e órgão (“Papa Won’t Leave You, Henry”), seguindo-se uma canção furiosa (“I Had A Dream, Joe”), quase punk, distorcendo a tradição vocal dos spirituals no refrão (o canto das igrejas evangélicas negras dos EUA). Na sequência, uma das faixas mais pop de sua carreira, “Straight To You”, uma balada dilacerante sobre amor incondicional à beira do Apocalipse (“E as carruagens de anjos estão colidindo / E os santos estão todos bêbados e uivando para lua / E a angústia vem à galope / Mas eu gritarei, amor, e virei correndo / Direto para você”). Fechando o bloco, “Brother, My Cup Is Empty” saracoteia guitarras acústicas numa canção sobre um bêbado de saco cheio com sua esposa, sua cidade e até com o garçom que o serve. Encerram o álbum outras três fortes canções repletas de álcool, desespero e assassinato, precedidas pela delicadeza de “When I First Came To Town” (com curioso dueto entre Cave e o pianista Conway Savage) e pela funesta “Christina The Astonishing”, que contém o verso “o fedor do pecado humano vai além do que consigo suportar”.

Tracking list: Sete faixas bônus na reedição de 2009: o b-side “Blue Bird”, a versão acústica de “The Ripper” mais cinco números ao vivo (“I Had A Dream, Joe”, “The Good Son”, “The Mercy Seat”, “The Carny” e “The Ship Song”

Sucessos: “Straight To You”.
Melhores faixas: “Papa Won’t Leave You, Henry”, “I Had a Dream, Jo”, “Straight To You”.
Preferida: “Straight To You”.
Nota: 7,5

Let Love In (1994)
Formação: Nick Cave (voz e órgão), Mick Harvey (guitarra, órgão e vibrafone), Blixa Bargeld (guitarra), Thomas Wydler (bateria e percussão), Martyn P. Casey (baixo), Conway Savage (piano).

Álbum cheio de tesão, marcado pelo desespero e desencantamento com o amor em si (Nick estava se separando de sua esposa brasileira, e alguns Bad Seeds também não estavam exatamente felizes). É o mais rico musicalmente na discografia da banda e só apresenta uma faixa mediana: “Do You Love Me? (Part 2)” – até porque a “(Part 1)”, cujo clipe foi gravado num puteiro classe Z em São Paulo, é uma aterrorizante “chamada na chincha” para com a pessoa amada, com sinos e backing vocals ameaçadores. “Thirsty Dog” e “Jangling Jock” são rockões barulhentos, rápidos e furiosos. “Loverman”, gravada pelo Metallica no disco “Garage Days Re-Revisited”, é cínica, macabra e mistura o temor e o fascínio pelo cramulhão ao desejo por uma mulher. O tinhoso reaparece como O Corruptor em “Red Right Hand”, um micro-tratado sobre o demo (de deixar teólogo de queixo caído) em forma de canção pop, tanto que é o maior hit dos Bad Seeds em terras americanas, constando na trilha do primeiro “Pânico” e no disco “Songs In The Key Of X” dedicado à série “Arquivo X”. Ainda tem uma balada pop com discreta incursão bluesy (“Nobody’s Baby Now”) e uma hilária predição da própria morte em “Lay Me Low”.

Curiosidade: um monte de convidados figuram nesse disco (membros dos Triffids e Beasts of Bourbon, o ex-Birthday Party Rowland S. Howard, os violinistas Robin Casinader e o futuro Bad Seed Warren Ellis), mas estão quase indedectáveis.

Tracking List: cinco b-sides engordam a reedição de 2009: “Cassiel’s Song”, “Sail Away”, “(I’ll Love You) Till The End Of The World”, “That’s What Jazz Is To Me” e “Where The Action Is”

Sucessos: “Red Right Hand”, “Do You Love Me? (Part 1)”.
Melhores faixas: “Nobody’s Baby Now”, “Red Right Hand”, “Lay Me Low”.
Preferida: “Nobody’s Baby Now”.
Nota: 9

Murder Ballads (1996)
Formação: Nick Cave (voz e órgão), Mick Harvey (guitarra, percussão e órgão), Blixa Bargeld (guitarra), Thomas Wydler (bateria), Martyn P. Casey (baixo), Conway Savage (piano), Jim Sclavunos (percussão).

O título revela tudo sobre as letras, todas narrativas sobre assassinatos mais ou menos passionais, mas não denota o lado musical. Nem tudo aqui é balada – tem um “quase-country” fantasmagórico e chato (“Crow Jane”), névoas harmônicas em tons muito graves (“Song of Joy”), minimalismo pesado e pervertido (“Stagger Lee”) e até tentativas frustradas (ainda que passáveis) de revisitar “Tender Prey”: “Lovely Creature” e “O’Malley’s Bar”. Das baladas propriamente ditas, foram extraídos dois hits maciços na Austrália que também se tornaram populares na Europa: os duetos “Henry Lee” (com PJ Harvey, na época esposa recém-casada com Cave) e “Where The Wild Roses Grow” (com Kylie Minogue, sobre uma garota inocente assassinada por um namorado perturbado que enlouquece com sua castidade). Os simples e ótimos clips dessas canções favoreceram bastante seu sucesso, talvez por exibirem mulheres sedutoras em histórias envolventes e surpreendentes. As duas moças se juntam ao bebum Shane McGowan (ex-The Pogues) e à poetisa Anita Lane para dividir com Nick os vocais da irônica “Death Is Not The End”, que encerra o álbum legando uma sensação bizarra ao ouvinte, que não consegue decidir se gostou, se achou meio depressivo ou se ficou assustado. E isso porque nem falamos da suíte de choros “The Kindness of Strangers”…

Tracking List: Quatro faixas bônus na reedição de 2009: “The Ballad of Robbert Moore and Betty Coltrane”, “The Willow Garden”, “King Kong Kitchee Kitchee Ki-Mi-o” e “Knoxville Girl”

Sucessos: “Henry Lee”, “Where The Wild Roses Grow”.
Melhores faixas: “Henry Lee”, “The Kindness of Strangers”, “Where The Wild Roses Grow”, “Death Is Not The The End”.
Preferida: “Henry Lee”.
Nota: 6,5

The Boatman’s Call (1997)
Formação: Nick Cave (voz, órgão e piano), Mick Harvey (guitarra e órgão), Blixa Bargeld (guitarra), Thomas Wydler (bateria), Martyn P. Casey (baixo), Conway Savage (piano), Jim Sclavunos (percussão), Warren Ellis (violino e acordeão).

Outro relacionamento encerrado (com PJ dessa vez), outro grande disco como exercício de terapia e exorcismo interno. Porém, se em “Let Love In” o desespero dava o tom, aqui a esperança é fundamental, e o endeusamento da mulher, superior a Deus e o Diabo (“Nenhum Deus no mais alto dos Céus / Nem demônio algum sob o mar / Poderia conseguir o que você fez / Me colocar de joelhos”, canta Cave em “Brompton Oratory”) chega a ponto de menosprezar o ser masculino (em “Idiot Prayer”). Musicalmente, o álbum é composto por canções conduzidas ao piano (às vezes, com o baixo preciso de Casey acompanhando com maestria), recebendo intervenções discretas e certeiras dos outros instrumentos, que sutilmente fazem a canção acontecer e revelar-se de rara beleza. Assim acontece a guitarra em “Brompton Oratory”, com o violino em “Far From Me” e com o órgão em “(Are You) The One That I’ve Been Waiting For?” e “Lime Tree Arbour”. Wydler surpreende por saber quando não inventar na bateria e prova que nem todo bom baterista precisa ser uma máquina de viradas (coisa que ele também faz bem). Completamente composto por Cave (letra e música), esse discão se define a partir da faixa inicial, “Into My Arms”, que ganhou o clipe mais angustiante da história (apenas closes p&b em faces aos prantos). A letra? Fé e amor sendo distinguidos para logo ser provado que eles são todos parte de um único todo, deixando a esperança de reconciliação. Ouça e tente ficar alheio – mesmo que não entenda a letra, o baixo, o piano e a voz de Nick se encarregarão de deixá-lo sem palavras.

Tracking List: Cinco faixas bônus na reedição de 2009: “Little Empty Boat”, “Right Now I’m a Roaming”, “Black Hair (Band Version”, “Come Into My Sleep” e “Babe, I Got You Bad”

Sucessos: “Into My Arms”, “(Are You) The One That I’ve Been Waiting For?”
Melhores faixas: “Into My Arms”, “(Are You) The One That I’ve Been Waiting For?”, “Brompton Oratory”, “Far From Me”, “Lime Tree Arbour”.
Preferidas: “Into My Arms”, “Brompton Oratory”.
Nota: 9

No More Shall We Part (2001)
Formação: Nick Cave (voz, piano e órgão), Mick Harvey (guitarra, percussão e órgão), Blixa Bargeld (guitarra), Thomas Wydler (bateria), Martyn P. Casey (baixo), Conway Savage (piano), Jim Sclavunos (percussão), Anna McGarringle (vocais), Kate McGarringle (vocais).

Outra obra-prima, quase da mesma cepa de “Tender Prey” (um tiquinho inferior). Já foi comentado faixa-a-faixa e também resenhado por Nick Hornby neste mesmo site (link no final), mas tentemos sumarizar: nas letras, Cave está mais religioso que nunca, e na música, os Bad Seeds estão 100% Bad Seeds, ou seja, bateria fazendo harmonia, piano fazendo percussão, violino descendo às saraivadas (aqui, Ellis começaria a marcar forte presença na sonoridade da banda), guitarras econômicos numa força bruta que parece ser contida para não pesar mais que os poderosos vocais (de Cave e das irmãs Anna e Kate McGarringle, essa última mãe do ícone pop-gay Rufus Wainright). Da delicadeza quase pop de “Love Letter” (que letra!) à surpreendente “Fifteen Feet Of Pure White Snow” (“Levante suas mãos ao mais alto dos céus / É de se duvidar? / Oh, meu Deus!”, brada um Cave irado em meio ao caos de uma cidade soterrada pela neve), uma obra que atesta a singularidade e excelência da proposta musical da banda. Se acabassem hoje, não teriam deixado nenhum fã com a sensação de que ainda haveria algo a se cumprir.

Tracking List: Oito faixas bônus na reedição de 2009: os b-sides “Goog Good Day”, “Little Janey’s Gone”, “Grief Came Riding” e “Bless His Ever Loving Heart” mais quatro faixas gravadas ao vivo para o programa Westside Session: “Fifteen Feet of Pure White Snow”, “God Is In The House”, “And No More Shall We Part” e “We Came Along This Road”

Sucessos: “Fifteen Feet of Pure White Snow”.
Melhores faixas: “Fifteen Feet of Pure White Snow”, “Love Letter”, “Oh My Lord”, “Hallelujah”.
Preferida: “Fifteen Feet of Pure White Snow”
Nota: 10

Nocturama (2003)
Formação: Nick Cave (voz, piano e órgão), Mick Harvey (guitarra, baixo, percussão e órgão), Blixa Bargeld (guitarra), Thomas Wydler (bateria e percussão), Martyn P. Casey (baixo), Jim Sclavunos (percussão), Conway Savage (teclados), Warren Ellis (violino).

“Nocturama” foi gravado apenas em uma semana e nasceu com a missão de resgatar um som mais orientado para a banda e menos para o Cave crooner dos dois últimos álbuns. Não cumpriu esse objetivo à risca, mas certamente rendeu um belo disco, musicalmente econômico e liricamente rico. A joia que mais brilhava era “Bring It On”, um pop intenso e vibrante, cujo clipe ia da sobriedade à vulgaridade com insuspeito amor. Tinha o prenúncio da barulheira que viria nos próximos anos (“Dead Man In My Bed” e a interminável “Babe, I’m On Fire’), mas o que dominava as outras faixas era a busca pela sutileza e pelas frases ditas nos silêncios. Nesse sentido, cabe destacar “Rock of Gibraltar”, “He Wants You”, ‘Wonderful Life” e “She Passed By My Window”. É um dos discos em que a contribuição de Blixa Bargeld foi mais destacada – e ele abandonou a banda após seu lançamento! Há quem ache exagero, mas é possível que isso tenha contribuído bastante para a mudança sonora que viria nos álbuns seguintes.

Tracking List: Cinco faixas bônus integram a reedição de 2012: “Shoot Me Down”, “Swing Low”, “Little Ghost Song”, “Everything Must Converge” e “Nocturama”

Sucessos: “Bring It On”.
Melhores faixas: “Bring It On”, “He Wants You”, “Wonderful Life”, “She Passed By My Window”.
Preferida: “Wonderful Life”
Nota: 7

Abattoir Blues / The Lyre of Orpheus (2004)
Formação: Nick Cave (voz e piano), Mick Harvey (guitarra), Thomas Wydler (bateria e percussão), Martyn P. Casey (baixo), Jim Sclavunos (bateria e percussão), Conway Savage (teclados), Warren Ellis (violino, bandolim, flauta e bouzouki), James Johnston (órgão).

Um disco duplo gravado em doze dias – Cave e os Bad Seeds estavam muito a fim de tocar, e queriam se arriscar. Nunca se havia escutado tanta variação musical em um disco da banda, que poderia ir desde a soul music (de maneira tranquila em “Abattoir Blues” e com energia avassaladora em “There She Goes, My Beautiful World”) ao pop (“Nature Boy” e “Let the Bells Ring”) e ainda caber folk (“Breathless”), country (“Baby You Turn Me On”) e a típica canção badseediana (“Messiah Ward”, “Easy Money”, “Supernaturally”). Muito pichado na época (imagine, havia rock’n’roll pesado e… dançante! Vide “Get Ready for Love”), é na verdade um dos trabalhos mais completes da banda, que recebeu o reforço de James Johnson (Gallon Drunk) no lugar de Blixa Bargeld. Curiosidades: a bateria foi assumida por um integrante diferente em cada disco, Wydler em “The Lyre of Orpheus” e Sclavunos em “Abattoir Blues”; e o disco foi número 1 nas paradas… da Noruega!

Tracking List: Quatro faixas bônus aparecem na reedição de 2012: “She’s Leaving You”, “Under This Moon”, “Hiding All Away (Live at Maida Vale)” e “There She Goes, My Beautiful World (Live at Maida Vale)”

Sucessos: “Nature Boy” e “Breathless”.
Melhores faixas: “There She Goes…”, “Nature Boy”, “Messiah Ward”, “Abattoir Blues”, “Breathless”.
Preferida: “There She Goes…”
Nota: 9,5.

Dig, Lazarus, Dig!!! (2008)
Formação: Nick Cave (voz, piano, órgão, percussão e guitarra), Mick Harvey (guitarra, baixo, violão e órgão), Thomas Wydler (bateria e percussão), Martyn P. Casey (baixo), Jim Sclavunos (bateria e percussão), Conway Savage (teclados), Warren Ellis (viola, guitarra, bateria eletrônica, percussão, flauta, bandolim e piano), James Johnston (órgão e guitarra).

O choque aqui foi muito maior que no álbum anterior. Os Bad Seeds haviam se tornado a maior banda de bar/garagem do mundo! Oito malucos lascivos compondo crônicas urbanas que foram descritas pelo New Musical Express como “um apocalipse gótico psicossexual”. O álbum mais veloz dos Bad Seeds, “Dig, Lazarus, Dig!!!” é urgente, safado, alto (e não só nas guitarras, mas também nos vocais e nos teclados). Até a desaceleração de “Night of The Lotus Eaters” tinha um peso bruto distinto, inaudito até então. Tem muita influência do Grinderman (o projeto paralelo de rock garageiro que Cave montou com Ellis, Casey e Sclavunos), mas a linguagem é outra – bem mais interessante, aliás.

Tracking List: Três faixas bônus surgem na reedição de 2012, “Accidents Will Happen”, “Fleeting Love” e “Hey Little Firing Squad”

Sucessos: “Dig, Lazarus, Dig!!!”
Melhores faixas: “Today’s Lesson”, “Albert Goes West”, “Dig, Lazarus, Dig!!!”, “Jesus of The Moon”.
Preferida: “Today’s Lesson”
Nota: 9.

Push the Sky Away (2013)
Formação: Nick Cave (voz, piano), Thomas Wydler (bateria), Martyn P. Casey (baixo), Jim Sclavunos (percussão), Conway Savage (vocais), Warren Ellis (violino, viola, guitarra, flauta e sintetizadores)

É difícil dizer se “Push the Sky Away” é um bom álbum. Porque sim, tem muitos méritos, mas empalidece na comparação com o passado dos Bad Seeds. Ou melhor, parece um bom disco de uma banda que não é os Bad Seeds. Se “Jubilee Street” pode, por seu lado, estar junto aos melhores momentos da banda, há faixas como “We Real Cool” e o single “We No Who U Are” que parecem ser de outra banda – talvez um Grinderman mais tranquilo e menos alto, já que o núcleo essencial da banda, sem Bargeld e Harvey, parece ter sido reduzido a um Grinderman desprovido do alto volume, reservando destaque principalmente ao multi-instrumentista Warren Ellis. Como um todo, o resultado final não é empolgante, mas há momentos em que se percebe que houve vontade maior do a simples comodidade de soar “esquisito” e auto-complacente. Uma versão de luxo foi lançada incluindo um DVD (e outra com um vinil de 7’) com duas faixas bônus, “Needle Boy” e “Lightining Bolts”, mas sinceramente, não acrescentam nada.

Sucessos: nenhum
Melhores faixas: “Jubilee Street”, “Mermaids”, “Higgs Boson Blues”

Preferida: “Jubilee Street”
Nota: 6.

COLETÂNEAS E REGISTROS AO VIVO
“The Best of Nick Cave And The Bad Seeds” traz todos os lados A de todos os singles de “The First Born Is Dead” a “The Boatman’s Call”, menos os de “Kicking Against The Pricks”. Serve aquele lugar-comum: nem tudo que deveria constar está aqui, mas tudo que aqui está é obrigatório (à possível exceção de “The Carny”, substituível por pelos menos 35 outras faixas mais interessantes). A primeira edição trouxe como bônus um disco ao vivo da turnê do álbum de 1997. Em 2005, saiu a coletânea “B-Sides & Rarities”, cujo título é auto-explicativo: tem versões acústicas de hits, faixas que só saíram em singles, participações em tributos (a Neil Young e Leonard Cohen) e trilhas sonoras, além de faixas inéditas, tudo num CD triplo (e com muita coisa que acabou sendo distribuida na reedição de 2009/2012).

“Live Seeds” (1993) foi o primeiro ao vivo da banda, e é decepcionante. Sem exibir metade da vitalidade habitual, os Bad Seeds acabam deixando as canções algo frouxas, sem peso – até “The Mercy Seat” perde impacto aqui. São justamente as mais calminhas que têm valor notável, como “New Morning”, “The Ship Song” e “The Good Son”. Trazia uma inédita, “Plain Gold Ring’, chata, chata. “The Abattoir Blues Tour” (2007) é bem melhor: foca, evidentemente, no album da turnê, mas tem ótimas versões de “The Weeping Song”, “Deanna”, “Lay Me Low” e outras antigas. A versão deluxe vinha com um DVD duplo – um disco traz uma apresentação na Brixton Academy, de Londres, e outro mistura clipes e canções gravadas no Hammersmith Apollo, também de Londres. Por fim, “Live at the Royal Albert Hall” é a edição “oficial” do disco que era bônus na coletânea de 1993 (com quatro músicas a mais menos ”The Weeping Song”). Um show correto, focado no repertório mais baladeiro de “The Boatman’s Call”, que traz a curiosidade de ter uma rendição de “Where the Wild Roses Grow” com o vocal de Blixa Bargeld.

PROJETOS PARALELOS
Nick Cave é muito inquieto. Para ser justo, quase todos os Bad Seeds também o são. Então vamos dar um passeio por um pouco do que esses cidadãos fizeram por aí (vai faltar coisa, vou avisando). O homem escreveu livros, compôs trilhas sonoras (leia a respeito mais pra baixo) e teve inúmeras participações em discos de outros artistas, de Ute Lemper a Seasick Steve. Também gravou faixas solo, como “There Is a Light’ (da trilha de “Batman Eternamente”), e covers dos Beatles como “Here Comes the Sun” e “Let It Be” (presentes na trilha do filme “Uma Lição de Amor”).

Ele ainda excursionou “solo” com Ellis, Casey e Sclavunos (tocando músicas dos Bad Seeds, inclusive) ao longo dos anos 1980. Essa formação, que tinha o carinhoso apelido de “Mini-Seeds”, acabou virando uma banda de verdade, o Grinderman, que gravou dois discos (“Grinderman”, de 2007, e “Grinderman 2”, de 2010). Rock garageiro alto e muito barulhento, entupido de efeitos de guitarra e ruídos. Ótimo para quem gosta dessa linguagem musical, difícil para quem não está acostumado a ela.

Mick Harvey, por sua vez, também teve seu “Mini-Seeds”, por assim dizer. Em 2006, sua turnê solo tinha James Johnston e Thomas Wydler junto à baixista Rosie Westbrook como banda de acompanhamento. Também excursionou com Wydler, Conway Savage e Martyn P. Casey. Durante quase 40 anos foi parceiro de Nick (a amizade vinha desde os tempos do Birthday Party), e ainda gravou seis álbuns solo, produziu discos de amigos como PJ Harvey e Rowland S. Howard, fez parte do Crime and The City Solution entre 1985 e 1990 e lançou um EP com a banda The Wallbangers em 2007. Infelizmente, deixou os Seeds em 2009, alegando que a relação com Cave estava desgastada, e também que a direção musical que a banda vinha tomando não lhe agradava.

Os Bad Seeds vinham de outras bandas, e muitas vezes era difícil saber qual era o projeto principal e quais os paralelos: Thomas Wydler com o Die Haut, Kid Congo Powers com o Gun Club e os Cramps, Blixa Bargeld com o Einstürzende Neubauten, Warren Ellis com o excelente Dirty Three, James Johnston com o Gallon Drunk, Martyn P. Casey com os Triffids, Jim Sclavunos com o Vanity Set e muitas outras (inclusive os Cramps)… Além disso, muitos deles têm longas carreiras solo – Harvey e Barry Adamson talvez sejam os mais prolíficos, com este último produzindo ou mixando diferentes artistas. Vale checar as gravações dos dois com calma, há muito material de alta qualidade.

TRILHAS SONORAS
Esse é outro caminho que muitos dos Bad Seeds tomaram. Blixa Bargeld fez trilhas para peças de teatro que tiveram registro fonográfico, Harvey compôs para filmes cult como “Ghosts… of the Civil Dead”, mas Cave e Ellis são os que têm o conjunto da obra de maior destaque. Juntos, compuseram para oito filmes – majoritariamente, temas instrumentais para todos eles – incluindo os ótimos trabalhos de John Hillcoat, como “A Proposta” (que tem a espetacular “The Rider Song”) e “A Estrada”. As composições dos dois, que foram muitas vezes apresentadas ao vivo, são firmemente baseadas em violino e piano. Há uma coletânea dupla, “White Lunar”, que passa uma boa peneira na carreira musical cinematográfica de Cave e Ellis.

FILMES

“Nick Cave: 20 Mil Dias na Terra”, de Iain Forsyth e Jane Pollard (2014)
por Marcelo Costa

Exemplar mistura de documentário com ficção que deixa no ar uma aura de mistério que casa muito bem com o personagem retratado, “20 Mil Dias na Terra” flagra (apenas em teoria) um dia na vida de Nick Cave (o de número 20 mil / 54 anos), desde quando o despertador toca e ele começa a teorizar sobre a vida (“Eu acordo, eu escrevo, eu como, eu escrevo, eu assisto TV”), passando por ensaios com os Bad Seeds (flagrados durante as gravações do que viria a ser o álbum “Push The Sky Away”, de 2013), visitas ao grande parceiro Warren Ellis, com quem Nick já dividiu a assinatura da trilha sonora de oito filmes e duas peças de teatro (não à toa, Warren diz em certo momento: “Acho que já almocei mais vezes com você do que com minha esposa”) e interessantes conversas em trajetos de carro com o ator britânico Ray Winstone, com o ex-parceiro Blixa Bargeld (com quem Cave acerta contas pessoais) e com a cantora Kylie Minogue (“Sua missão é aterrorizar a plateia?”, ela questiona divertidamente em certo momento). Num dos melhores trechos do filme, Nick Cave conversa com o psicólogo Darian Leader, e fala sobre seu pai, sobre um show marcante de Nina Simone, religião, drogas e, principalmente, sobre seu maior medo: perder a memória. A esposa Susie Cave ganha uma declaração de amor poderosa e os filhos, gêmeos, fazem uma pequena ponta assistindo com o pai ao filme “Scarface” (1983), de Brian De Palma. A edição de Jonathan Amos (“Scott Pilgrim Contra o Mundo”, 2010) é engenhosa e brilhante enquanto o roteiro, assinado pela dupla de diretores com Nick Cave, consegue fugir do didatismo, tanto cronológico quanto temático, e, ainda assim, não soar voltado apenas para fãs. O mote é despir a persona criativa de Nick Cave sem desvendar seu mistério, muito pelo contrário, engrandecendo-o. Entre ótimas passagens musicais, bela fotografia e algumas memórias, “Nick Cave: 20 Mil Dias na Terra” se posiciona, ao lado de “Pulp: A Film About Life, Death & Supermarkets” (2014), com um dos melhores filmes musicais do cinema recente.

“One More Time with Feeling”, de Andrew Dominik (2016)
por Marcelo Costa
Em julho de 2015, Nick Cave perdeu seu filho, então com 15 anos, que caiu de um penhasco próximo de sua casa, em Brighton, Inglaterra. Nick estava trabalhando em “Skeleton Tree”, que viria a ser seu 16º disco de estúdio, e a morte do filho, como era de se esperar, influenciou decididamente o rumo do álbum. Abalado e em silêncio, Nick Cave decidiu convidar o cineasta Andrew Dominik para registrar os últimos 10 dias de gravação do álbum, já em fevereiro de 2016, e concordou em falar sobre a perda em entrevistas improvisadas pelo diretor numa atitude que, depois ele explicaria, visava evitar ter que falar mais para toda a imprensa. O resultado, tal qual o álbum, é doloroso. Filmado lindamente em 3D preto e branco, “One More Time with Feeling” flagra Nick e a esposa Susie Cave quase despedaçando. Em certo momento, o poeta, escritor e pai Nick diz que as palavras perderam o sentido. Mais para frente, se revolta consigo mesmo: “Não sei o que estou fazendo aqui, com todas essas câmeras me filmando”, no que recebe o apoio do diretor: “Pra mim também não é nada confortável”. Numa analogia perfeita, ele explica que traumas são como elásticos: “Você pode tentar esticar, mas ele irá voltar com força em algum momento”. Desta forma, “One More Time with Feeling” soa como uma terapia pública de um casal que perdeu seu filho ainda jovem, e ao invés de fugir do trauma esticando o elástico até o limite, decidiu enfrentar a tragédia com aquilo que eles tinham nas mãos: arte, música, dor e sinceridade. Um filme corajoso para ver, respeitar e chorar.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

Leia também:
– “Doce Miséria – A suavização de Nick Cave”, por Nick Hornby (aqui)
– Discografia comentada: Suede, por Eduardo Palandi (aqui)
– Discografia comentada: Alanis Morissette, por Renata Arruda (aqui)
– Discografia comentada: Pato Fu, por Tiago Agostini (aqui)
– Discografia comentada: Mogwai, por Elson Barbosa (aqui)
– Discografia comentada: Wander Wildner, por Marcelo Costa (aqui)
– Discografia comentada: Foo Fighters, por Tomaz de Alvarenga (aqui)
– Discografia comentada: Morrissey, por Marcelo Costa (aqui)
– Discografia comentada: Bob Dylan, por Gabriel Innocentini (aqui)
– Discografia comentada: Paul McCartney, por Wilson Farina (aqui)
– Discografia comentada: Elvis Costello, por Marco Antonio Bart (aqui)
– Discografia comentada: Echo and The Bunnymen, por Marcelo Costa (aqui)
– Discografia comentada: The Cure, por Samuel Martins (aqui)
– Discografia comentada: Leonard Cohen, por Julio Costello (aqui)
– Discografia comentada: Midnight Oil, por Leonardo Vinhas (aqui)
– Discografia comentada: Nick Cave, por Leonardo Vinhas (aqui)
– Discografia comentada: The Clash, por Marcelo Costa (aqui)

14 thoughts on “Discografia Comentada: Nick Cave

  1. Tenho esse, mais o Good Son e o Tender Prey em vinil. E um VHS podraço com trechos do show no Brasil, transmitido pela TV Cultura. Assisti tanto que a fita tá puída…

  2. da minha edição nacional do “kicking”, ninguém nem nada jamais me separarão…

    apenas um comentário sobre o “henry’s dream”: neste album, justamente buscando uma sonoridade mais “rock”, a banda trabalhou com o famoso produtor do neil young, david briggs… e odiaram o resultado!

    pessoalmente, eu gosto do album, mas não está entre os meus favoritos.

    parabéns pela matéria!

  3. em primeiro lugar, parabéns pela revisão!!

    com relação ao “henry’s dream” é bom lembrar que, neste album, justamente procurando por uma sonoridade mais “rock”, a banda trabalhou com o famoso produtor do neil young, david briggs… e odiou o resultado!!

    pessoalmente, também não é dos meus favoritos.

    o “kicking” foi a introdução da maioria de nós ao mundo dos bad seeds; da minha edição em vinil da stilleto, jamais me separarei. dois comentários de cunho pessoal:

    1. isso quase nunca acontece comigo, mas prefiro a versão bad seeds de “all tomorrow parties” do que a original dos velvets… blixa está simplesmente sensacional com sua não-guitarra!!
    2. na época, ouvia tanto “by the time i get to phoenix”… hoje (thanx itunes) montei uma playlist que eu chamo de “1006 miles” com todas as versões disponíveis no itunes… hehe! ficou bem legal; a versão do isaac hayes tem mais de 18 minutos!!

    abraços do sul,

    rodrigo.

  4. Observei certa rigidez na cotação de alguns álbuns. Tudo bem que, no frigir dos ovos, possa culpar-se as idiossincrasias do resenhista. Dou como exemplo o “Henry’s Dream” que, creio, não foi devidamente reavaliado com o passar dos anos por setores da crítica. A mim sempre me pareceu um discaço.

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