CALMANTES COM CHAMPAGNE

Qual música te define?

por Marcelo Costa
25/05/2007

"Por que a gente gosta de cantores? Onde se esconde o poder das canções? Talvez se origine da mera estranheza de se existir canto no mundo. A nota, a escala, o acorde; melodias, harmonias, arranjos, sinfonias, ragas, óperas chinesas, jazz, blues: o fato de essas coisas existirem, de termos descoberto os intervalos mágicos e as distâncias que produzem o pobre punhado de notas, todas ao alcance da mão humana, com as quais construímos nossas catedrais sonoras, é um mistério tão alquímico quanto a matemática, ou o vinho, ou o amor. Talvez os pássaros tenham nos ensinado. Talvez não. Talvez sejamos, simplesmente, criaturas em busca de exaltação. Coisa que não temos muito. Nossas vidas não são o que merecemos. De muitas dolorosas maneiras elas são, temos de admitir, deficientes. A música as transforma em outra coisa. A música nos mostra um mundo que merece os nossos anseios, ela nos mostra como deveriam ser os nossos eus, se fôssemos dignos do mundo".

Trecho do livro "O Chão Que Ela Pisa", de Salman Rushdie

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Lá na pré-história, quando não existia Internet, disc-man, Big Brother Brasil e outras maravilhas do mundo moderno, era bastante comum um cara querer impressionar uma menina com uma... fitinha cassete. Bem, fita cassete, segundo a Wikipédia (estou viciando nela), é um tipo de gravação de áudio lançado oficialmente em 1963, que era basicamente o mesmo que a gravação em bobinas, só que os carretos e todo o mecanismo de movimento da fita se encontravam dentro de uma pequena caixa plástica, facilitando o manuseamento e a utilização. É isso ai que está na foto de abertura da coluna. E isso tocava música.

Rob Fleming, personagem central do romance "Alta Fidelidade", do escritor britânico Nick Hornby, conquistou Laura com uma fita cassete. Na verdade, ela já estava interessada nele após vê-lo discotecando, mas a fita cassete foi o ponto marcante para que os dois passassem a ter um... relacionamento. Ela foi elogiar a discotecagem dele, ele curtiu o jeito dela, e prometeu gravar uma fitinha especial, que ela deveria pegar na semana seguinte. Ela foi, e se você leu o livro (se não leu, deve ler), já sabe tudo o que aconteceu. :)~

Outro personagem - quase famoso da cultura pop recente - apaixonado por fitas cassete é o senhor Melvin Udall. Ele é escritor, impaciente e grosseiro. Mas mesmo os escritores, os impacientes e os grosseiros têm coração. E Melvin acaba por se apaixonar por Carol Connelly, garçonete, mãe solteira e tudo aquilo que nosso amigo sonhou. Toda vez que ela entra no carro de Melvin, ele escolhe uma fitinha temática para confortar o ambiente; ou dar um clima. Melvin é Jack Nicholson; Carol Connelly é Helen Hunt. A história deste parágrafo acontece no filme "Melhor é Impossível", de James L. Brooks, que levou dois Oscars na cerimônia de 1998, para o casal de atores.

Gravar uma fitinha cassete para uma pessoa – ou pensando em criar climas, como Melvin Udall – não era a coisa mais simples do mundo, porque era preciso escolher as músicas certas, a seqüência certa, para que seu intento fosse alcançado. E mesmo que a pessoa não gostasse de todas as músicas, o fato dela gostar dessa ou daquela canção permitia análises subjetivas e apaixonadas sobre o futuro deste relacionamento. Como disse Bill Calahan, do Smog, certa vez, sobre como preparar um clima para um encontro em casa: "Coloque Smiths pra tocar. Se ela ficar, será sua. Se ela for embora, não era para ser mesmo".

Em tempos de CDR, a prática de gravar algo especial para outra pessoa saiu de moda, o que é especulável, pois o CDR é de manuseio mais simples e – hipoteticamente – deveria facilitar coletâneas de músicas, mas não é isso que parece acontecer. Quando escrevo "fazer uma coletânea para alguém", estou diferenciando este ato do simples fato de se jogar músicas num CD e entregá-los para alguém de qualquer maneira. Gravar uma fitinha cassete era uma arte. Era preciso se preocupar desde a seqüência de músicas até a capinha caprichada que iria embalar esse objeto especial. Especial porque a música aproxima pessoas.

Pensei em tudo isso porque, dia desses, minha namorada, no meio de uma ligação de telefone, comentou empolgadamente: "Como é bom esse disco (novo) do Wilco. Tem algumas coisas que lembram Beatles!". Eu havia acabado de baixar o "Sky Blue Sky", novo álbum da banda do genial Jeff Tweedy – que só chega às lojas em maio – e tinha deixado o arquivo no desktop do computador dela. Sorri com o comentário que ela fez (pois gostar de Wilco é algo que facilita demais a convivência – risos), e tentei lembrar quando foi que ela conheceu a banda. E isso aconteceu exatamente através de um CD que gravei especialmente para ela, ainda quando estava apaixonado sem que ela imaginasse que eu pudesse estar com segundas intenções (hehe).

O CD se chama "Rocket", nome de um b-side maravilhoso do Jesus & Mary Chain (incluso na seleção), uma canção que fala de foguetes disparados na chuva, e de sentimentos inexplicáveis, que era exatamente o que eu estava sentindo naquele momento. Porém, se eu dissesse que fiz uma seleção pensada para ela, com cada música trazendo um significado, estaria mentindo. O que fiz, na verdade, foi selecionar algumas das músicas que mais gosto, encaixar cada uma delas numa ordem que desse algum sentido para a coisa toda, colocar uma capinha tosca (minha impressora não ajudou), e presenteá-la com algo que me traduzisse/definisse de uma forma diferente daquela que estávamos travando em bate papo de MSN ou sessões de cinema, pensando: "Se ela gostar, ela pode ser minha. Se ela não gostar, não era para ser mesmo". Ela gostou.

Gravei 20 músicas em uma seleção de canções que – segundo soube depois, quando já estávamos namorando – foi entendida como uma seleção "pé na bunda", ou algo assim. Tinham coisas novas que haviam acabado de sair naquele momento ("Yeah Yeah Yeah Song", do Flaming Lips) como coisas mais velhas, tipo "Milez is Ded", do Afghan Whigs (a canção mais antiga do CD, de uma das minhas bandas preferidas de todos os tempos). Ela gostou de "All Because Of You Days", uma rock song belíssima da fase recente do Echo and The Bunnymen, de "Walk Away" do Franz Ferdinand (tive que dar esse CD deles depois), de "Devil's Waitn" do Black Rebel Motorcycle Club, e de... "A Shot in The Arm", do Wilco. Ela gostou de quase tudo, mais de algumas coisas, menos de outras (como de Devendra Banhart, que ela acabou conhecendo pessoalmente/rapidamente no Tim Festival). Ela gostou, e vive me cobrando quando vou gravar outro CD igual a esse (logo, prometo).

Desde as famigeradas fitinhas cassete até nossos práticos CDRs, presentear alguém com uma seleção de músicas é algo muito especial. Porque selecionar músicas para outra pessoa requer atenção e carinho. Você precisa estar pensando na pessoa na hora da gravação, no que ela gosta, em que tipo de música agradaria a ela, que tipo de mensagem você quer passar, coisas assim. Porque existem coisas que estão muito além das palavras. Porque a música pode tornar a vida mais interessante. Porque existem pessoas que não concebem viver sem música, pois a música, como escreveu Ana Maria Bahiana certa vez, é "a vida em código". Qual música te define, caro leitor?

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Ps 1. Texto dedicado a Lili, "a adorável menina que quer viver na montanha"
Ps 2. A música que me defíne é "Rust", do Echo and The Bunnymen

maccosta@hotmail.com


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