CALMANTES COM CHAMPAGNE

Da Crítica da Música Pop

por Marcelo Costa
Foto: Divulgação Campari Rock
23/04/2006

A música pop sempre será levada com desleixo pela crítica musical séria. Muitos acreditam ser impossível ter um tratamento crítico a um disco popular semelhante ao tratamento que é dado a uma obra clássica. É óbvio que há um "grand canyon" separando Beethoven de Morrissey, o que não quer dizer, de forma alguma, que o segundo precisa ser tratado com desleixo crítico. Nem ele, nem Madonna, Arctic Monkeys ou o pueril Bonde do Role. A música pop é uma ferramenta para se entender o mundo que nos cerca. Ela reflete a sociedade de sua época. Não são apenas melodias e idéias. A crítica deve (ria) estar atenta a isso.

Por outro lado, a popularização da Internet como ferramenta de divagação de idéias, isso de cinco anos para cá, principalmente com blogs e afins, abriu espaço para que uma centena de milhares de pessoas buscassem o seu direito à opinião própria, rabiscando através de teclas uma maneira bastante pessoal de ver (e ouvir) o mundo. A Internet é o movimento punk da crítica musical. Qualquer um com acesso a grande rede pode dizer se isso ou aquilo é bom ou ruim. Nada contra. A democracia é boa, e eu gosto. No entanto, e sempre existem os "no entanto", essa facilidade em se divagar também diminuiu a qualidade das análises. Mais: mostrou que existe muita gente despreparada achando que analisar um lançamento musical é baixar o MP3, ouvir as canções e dizer se é bom ou ruim. Não é bem assim, e dois casos recentes me fizeram debater tudo isso.

O primeiro caso foi o lançamento do novo álbum do cantor Morrissey, Ringleader Of The Tormentors, que ainda não ganhou edição nacional e nem deverá sair no País tão cedo, devido a incompetência das gravadoras brasileiras. Ponto 1: se Ringleader Of The Tormentors ainda não foi lançado no Brasil, só é possível fazer um texto crítico sobre o álbum tendo acesso ao original importado ou "baixando" o disco pela Web. Em tempos de Real falido, nada mais óbvio que optar pela segunda opção, se atentando que realizar uma crítica sobre um álbum é mais do que ouvir as canções. Um disco é um projeto fechado, influenciado pelas pessoas (músicos) que participaram da gravação, por quem produziu, cujo invólucro (capa + encarte) completa uma idéia que o título geralmente explicita. Seria possível fazer uma crítica do álbum Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band sem se atentar ao seu título (e a tudo que ele simboliza) e sua capa (e a tudo que ela simboliza)? Não.

No caso de Stephen Patrick Morrissey e Ringleader Of The Tormentors, 90% dos textos publicados em sites nacionais não prestou atenção às letras do disco. "É música pop", diria outro. Ok, é música pop, mas desde que surgiu, Morrissey (assim como Bob Dylan, Lou Reed e Patti Smith, só para citar três) foi reverenciado pelo seu texto afiado, que junto à guitarra de Johnny Marr, construiu obras primas irretocáveis com a alcunha The Smiths. Porém, inevitável dizer, a força de Morrissey são suas letras aliadas a sua interpretação totalmente pessoal e seu carisma singular. Negar essa faceta do cantor ao analisar um lançamento assinado por ele é não saber do que se está falando. Se prender apenas ao quesito musical, é mostrar desinformação e desleixo crítico. Os textos de Morrissey são bem diferentes dos de Jack White e Julian Casablancas (só para citar dois), e mesmo estes precisam ter seus escritos analisados, mas a força de ambos resulta na novidade de suas canções, mais urgentes pelo frescor juvenil do que pela qualidade literária/musical.

É mais grave, ainda, quando o texto crítico não se aprofunda nos detalhes cujo brilho destaca a obra, e se propõe a manter uma relação de continuidade temática inserida na carreira do artista. Desta forma, muitos textos sobre Ringleader Of The Tormentors garantem que o novo disco de Morrissey é triste, pois Morrissey sempre foi triste, e como sua linha musical se manteve a mesma, natural que a temática tenha seguido o mesmo caminho. Grande engano. Ringleader Of The Tormentors é um álbum de transição, de quem descobriu a felicidade, mas ainda não sabe direito o que fazer com ela. Por isso, o cinismo de frases como "eu te daria o meu coração, se eu tivesse um". Ou o atestado de que "eu cansei de fazer as coisas certas", que remete a um tempo em que seguir o rebanho não bastou para se alcançar o nirvana espiritual. Morrissey está feliz, e é preciso ler e entender suas letras para perceber isso, já que melodicamente é o mesmo Morrissey de sempre destilando acidez e cinismo. Para o letrista, não basta ter o coração livre, como ele canta em Dear God Please Help Me, para se sair saltitando achando que este é o melhor dos mundos. Existem bombas explodindo, ele lembra em I Will See You In Far Off Places.

A falta de atenção de 90% das pessoas que escreveram sobre Ringleader Of The Tormentors denota despreparo crítico e falta de observação da obra como um todo. Não basta dizer se o disco é bom ou ruim. É preciso encaixa-lo no tempo/espaço. É preciso entender o que há do mundo em que vivemos nesta obra que a faça ser relevante ou não para as pessoas. Contextualizar. Argumentar. Analisar. Volto a repetir: dizer se um disco é bom ou ruim até minha mãe e minha sobrinha de cinco anos dizem, de acordo com o gosto pessoal de cada uma delas. A crítica é o encontro do gosto pessoal da pessoa que analisa a obra com tudo aquilo que esta pessoa traz de conhecimento sobre o objeto a ser analisado pelo prisma de sua vivência. Um amante do samba, por exemplo, não veria com muitos bons olhos (e ouvidos) uma canção como You Have Kill Me, pois seu foco é diferente. Sua vivência é diferente. Ele pode até opinar de forma isenta a obra, mas sempre trará consigo a falta de encadeamento teórico que compreenda em sua totalidade o objeto analisado.

Da mesma forma, o julgamento crítico deverá, sempre, estar acima da média do público. Uma análise crítica séria têm amplo domínio sobre o material analisado, algo que falta ao público, quase sempre absorto na questão do entretenimento de massa. Para o público pouco importa quem produziu o disco, se foi Tony Visconti, Mick Ronson ou Stevie Lillywhite. O que importa é o som que saí pelas caixas após o laser refletir na parte metálica do disco os dados que estão gravados na parte plástica da bolachinha prateada. Balizada pelo gosto intrinsecamente pessoal, a relação do público com um objeto de arte é muito mais pessoal do que crítica. E dá-lhe fanatismo. A paixão, tão bela, cega. A crítica não pode se apaixonar. Ela admira.

O segundo caso tem relação com a observação de que o crítico precisa, sempre, ter um conhecimento acima do público. Como exemplo, a grande maioria dos textos sobre o show do quarteto britânico Supergrass no 2° Campari Rock, acontecido em Atibaia, 08 de abril, corroboravam uma opinião pública de que o show havia sido lento e "folk" demais. Que o público faça uma observação dessas é até esperado. A relação que o capitalismo sempre propôs (e é necessário incluir a arte no pacote) é a de você pagar para que uma pessoa faça algo que você não consegue fazer. Por isso quando temos problemas na rede elétrica, chamamos um eletricista (após alguns choques, desisti do "faça você mesmo"), e por ai vai. Na música, pagamos para que um artista suba ao palco e nos entretenha por um certo período de tempo, o que não nos dá o direito de exigir muitas coisas. Há uma linha de pensamento que diz que se você "pagou, levou", que não condiz com a arte. E muito menos com o rock. O rock, por definição, é (ou ao menos deveria ser) a quebra de paradigmas. Tendo o rock como veículo, o artista pode fazer o que quiser em um palco, e essa plena liberdade é que deveria ser admirada, não o simplesmente tocar o último hit igualzinho está no disco, uma reprodução amparada muito mais na reprodução cultural da indústria de massa do que em preceitos meramente artísticos de tempo/espaço.

No caso Supergrass, é inadmissível que um jornalista diga - criticamente - que o show foi lento e "folk", com o enfoque negativo dos dois adjetivos. É inadmissível porque um jornalista bem informado saberia que os atuais shows do Supergrass são lentos e "folk" porque essa é a fase atual da banda, amparada no lançamento mais recente do combo britânico, Road To Rouen, um disco lento e "folk". Mostrar-se surpreso e não entender as nuances que tais novas canções possam ganhar sendo apresentadas em um show é um grande erro analítico da crítica. Pois o público não é obrigado a conhecer discos que nem foram lançados no Brasil, mas o jornalista que vai escrever sobre o assunto é. O crítico que irá analisar o show precisa de suporte teórico para balizar sua tese que ditará se a apresentação foi boa ou ruim. Como alguém pode balizar algo se não tem conhecimento de causa? Como alguém ousa escrever um texto falando que um show foi assim ou assado, incluindo nos parágrafos observações pessoais, se nada entende daquilo que está observando? Veja bem: crítica é diferente de relato. Criticar é abraçar o objeto de estudo como um todo e entende-lo. Relatar é observar um fato para reconta-lo depois. Na crítica é necessária e obrigatória a posição pessoal. No relato, a observação pessoal não deve existir, prendendo-se apenas à observação de um fato. Misturar um com o outro é um dos grandes erros de muita gente que se arrisca a escrever hoje em dia.

Isso tudo quer dizer que a opinião de quem acha que o show do Supergrass foi monótono e lento é errada? De forma alguma. Desde que haja um argumento que sustente a crítica, tudo é possível. Só não dá para dizer que só porque a banda tocou dois números ao piano o show foi ruim. Se Paul McCartney interpretasse Let It Be e The Long And Winding Road ao piano, seguidamente, em um show, o público (e a crítica) iria ao delírio, e o termo monótono e lento não seria usado para analisar o momento. Porque ambas são canções conhecidas pelo público. São canções que causam reações na platéia. Já as baladas Low C e Roxy não tem este mesmo apelo, pois são duas canções de um álbum (Road To Rouen) do Supergrass que não havia sido lançado no país até a semana do show da banda britânica. Se o público, que se acalmou após canções mais "nervosas", desconhecia as baladas, o jornalista - que estava fazendo uma cobertura do show - era obrigado a conhecer e perceber as nuances que a canção ganhava em uma representação ao vivo. Essa falta de base para se realizar uma análise crítica justa e correta é outro dos grandes erros de quem se arrisca a escrever sobre algo que não conhece.

Aos dois exemplos acima poderiam ser acrescentados outros mais, estendendo os problemas do que se poderia ser chamado de "novo jornalismo" (blergh) a aqueles que antes de escrever um texto crítico, "conferem" o que anda sendo escrito na imprensa estrangeira sobre o seu objeto de estudo, e acabam por fim "mudando de opinião" e seguindo uma linha de pensamento que não tem nenhuma relação com o que a própria pessoa pensava. Falta de personalidade, em qualquer área, não só no jornalismo, é um grande defeito. Uma dica? Assumir suas próprias opiniões, mas estudar sobre o que se vai escrever, já que um texto crítico (seja uma resenha sobre um disco, um filme, um livro, um show, uma peça de teatro, etc...) é simplesmente argumentação com base em teorizações fundamentadas. Digitar um texto de três mil toques sobre Morrissey sem falar uma linha sequer das letras que este homem escreve é um erro imperdoável e infeliz, que exibe as fraquezas profissionais de quem dissertou sobre o tema. É observar desleixadamente, externamente algo. A música pop merece uma análise séria. A crítica deve (ria) estar atenta a isso.


maccosta@hotmail.com


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