CALMANTES COM CHAMPAGNE

O local do rock é sobre um palco

por Marcelo Costa
10/05/2005

A maioria das pessoas que conheço e que gosta de música (99%) detesta bootlegs. Gravações piratas de shows e demo-tapes imperfeitas mostram uma faceta do artista que muito pouca gente se interessa. Me interesso, primeiramente, pelo fator palco: é ali que tudo se transforma em realidade. O rock, essa coisa de desajustados sociais que o novo Papa não aprova, encontra sua casa em um palco, de preferência de um boteco enfumaçado, com cerveja barata, drogados entupindo o banheiro e gente estranha conversando entre si como se fossem amigos de dez encarnações.

É no palco que descobrimos quem disfarça e quem realmente é foda. Jack e Meg White não mostraram muito charme pop no show que fizeram no Tim Festival em 2004, mas deixaram um rastro de blues sujo pairando pela atmosfera, que deve ter entorpecido muita gente. Foi estrranho. Porém, a passagem do Placebo por São Paulo foi uma grande decepção. Em um show burocrático, planejado nos detalhes, Brian Molko afundou as guitarras no lodo da mesa do som e preferiu destacar sua voz e seu jeitinho fofo. O rock ficou para os discos. Uma pena.

Por outro lado, ainda me arrepio hoje em dia quando ouço o bootleg que tenho da apresentação do REM no Rock In Rio 3. É quando o silêncio toma conta do palco, Barret Martin marca a contagem nas baquetas e Peter Buck dispara, no bandolim, o dedilhado inconfundível de Losing My Religion. Eu estava na frente do palco, com o set list nas maõs, e vi Buck pegar o bandolim. Mas na hora que aquele som adentrou o local, e as mais de 130 mil pessoas presentes fizeram aquele "uuuuuuuuu" de satisfação, foi único. E ainda é toda vez que ouço o CD do show.

Daria para enumerar centenas de momentos sensacionais passados nas pistas de um show de rock (não resisto: um beijo maravilhoso em uma garota linda ao som de Since I've Been Loving You com Page & Plant, no Pacaembu - o blues mais foda do velho Led; um amigo jornalista quase levando uma cotovelada na boca ao adentrar a pista de pogo do Mudhoney; dias de sono mal dormido querendo impedir que os olhos assistissem ao Sonic Youth), mas este texto não é apenas sobre isso.

Este texto é também sobre os defeitos que uma apresentação ao vivo demonstram daqueles que a gente admira, e muito (ver Ian McCulloch chutando bitas de cigarro e procurando por seu fio de voz em um show dos Bunnymen em 1999 foi um ato de extrema poesia roqueira tanto como não entender nada do que estava acontecendo no palco do show do Nirvana, naquele Hollywood Rock sensacional de 1993, ou presenciar Evan Dando pedindo desculpas pelo péssimo show que estava realizando no Directv Music Hall no ano passado). Roqueiro não é gente comum, como eu e você, meu caro. Roqueiro tem uma vida muito mais fodida que a nossa, por mais glamorosa que as coisas aparentem ser (tudo bem que eu esqueça de comer e de dormir quando quero escrever - como agora - mas não chega aos pés dessa turma) .

E os bootlegs são responsáveis por mostrar o roqueiro como ele é, ali, em cima de um palco, perfeitos em suas imperfeições. Um bom exemplo disso é Wander Wildner Ao Vivo no Café Camalehon, CDR que o bardo sulista está vendendo nos shows que está realizando no mesmo local no mês de maio, em São Paulo. Gravado em 7 de abril de 2005, Ao Vivo no Café Camalehon é um registro acústico emocionado e emocionante de Wander Wildner, voz e violão. O som é cristalino, gravado direto da mesa, melhor que o de muito disco ao vivo oficial que vendem por ai.

São 21 canções que passeiam pela carreira solo do roqueiro, pescam clássicos dos Replicantes e surpreendem por sua crueza e beleza. Wander rasga a voz, erra notas, o violão falha aqui, a microfone ali, ele brinca com as letras e o público, ao fundo, percebe que está vendo uma apresentação única e com pinta de antológica. Mais do que qualquer coisa, o show exibe a verve roqueira deste que é um dos nomes mais importantes da música brasileira na atualidade, e vive entregando seu repertório ao público em shows por todo o País, longe da mídia, e longe das grandes corporações (que de grande, mesmo, hoje em dia não têm nada).

Wander abre o show com Minha Vizinha, que ele mesmo recuperou do repertório do Replicantes e regravou para o álbum Buenos Dias. O clássico da Graforréia Xilarmônica Empregada, que Wander regravou no não mesmo clássico Baladas Sangrentas, vem na seqüência com gritos de "arriba" e coro ao fundo. A hilária Beverly Hills, outra do Buenos Dias, termina com Wander pedindo para que Darryl Hannah lhe traga uma água de coco. Maverikão, Rato de Porão e a "nova" Correndo por Correr (do ParaQuedas do Coração) mantém o clima da festa.

De uma tacada só, o bardo exibe duas de suas melhores canções: Eu Não Consigo Ser Alegre o Tempo Inteiro e Bebendo Vinho, que devem ter deixado muita gente sem voz no show (eu costumo sair rouco de suas apresentações). A bonita Ganas de Vivir abre caminho para a ótima Anjos e Demônios. Em Lugar do Caralho, Wander inclui na receita das coisas bacanas da letra de Jupiter Maça "um yakisoba barato". "Essa é do nosso tempo, quando a gente andava de skate", diz na introdução de Lonely Boy.

O Sol Que Me Ilumina cresce muito no formato voz/violão enquanto Eu Tenho Uma Camiseta Escrita Eu Te Amo arranca urros da platéia. Wander canta empolgado Rodando El Mundo, que surge dedicada a Tom Capone e Mauro Monzoli. On The Road traz citação de Metamorfose Ambulante e um tributo a Jack Kerouac no meio. Uma das melhores músicas de ParaQuedas de Coração, A Última Canção começa a encaminhar o show para o final. Wander dá a primeira parada mais longa antes da ótima Mantra das Possibilidades ("Eu queria ser bonito, mas eu não consigo, eu sempre volto atrás") e parte para a tríade final: a cover de Candy, de Iggy Pop, e versões fortes para as replicantes Surfista Calhora e Hippie-Punk-Rajaneesh.

O show acaba, mas algo fica revolvendo a mente. Voz e violão, Wander prova que tem um repertório forte. Desnuda sua musicalidade e brinca com algumas de suas dezenas de canções. Se sente tão livre para tocar que, na primeira (05/05) das quatro apresentações que realizará no mesmo Café Camalehon neste mês de maio (a saber: todas as quintas, 22h30, na Rua Piauí , 103, Higienópolis) muda praticamente todo o repertório, abre espaço para covers de Tercer Mundo, do Secos e Molhados e Dormi na Praça da dupla Bruno & Marrone, e continua a encantar os presentes.

Wander Wildner Ao Vivo no Café Camalehon é um bootleg autorizado e está sendo vendido apenas nos shows do bardo sulista. É uma apresentação antológica, bem gravada e de qualidade invejável, que exibe um típico show de rock do jeito que deve ser: desafinado em alguns momentos, praticamente perfeito em outros, mas emocionante em sua totalidade. O rock está vivo em bares movidos a álcool, frequentados por pessoas estranhas e legais, em qualquer local desse imenso Brasil.

maccosta@hotmail.com


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