CALMANTES COM CHAMPAGNE
E o Oscar vai para a... homofobia?

por Marcelo Costa
07/03/2006

A coroação de Crash com o Oscar de Melhor Filme de 2005 está causando uma enorme polêmica no meio cinematográfico. Não pela questionável crítica de falta de méritos do filme. Crash é um excelente drama que analisa com sobriedade o racismo e o nervosismo em que vive a sociedade norte-americana nestes anos de governo George W. Bush. Porém, Crash era quase um azarão na disputa pela estatueta de Melhor Filme. Boa Noite & Boa Sorte corria por fora, mas o prêmio principal já tinha dono: Brokeback Mountain. Só que não foi bem assim, e até Jack Nicholson, que soltou um sonoro "wow", se surpreendeu ao anunciar Crash como Melhor Filme (e vamos combinar que poucas coisas no mundo devem surpreender Jack Nicholson).

Os pingos nos is, antes de qualquer coisa: numa análise cinematográfica, tanto Crash quanto Boa Noite & Boa Sorte e o não indicado Match Point, de Woody Allen, são "mais filmes" que Brokeback Mountain. Isto é dito juntando roteiro, atuações, cenografia, figurino, som, mensagem, tudo, tudo, tudo. Alguns argumentam não entender como um filme ganha o prêmio de Melhor Diretor e não o de Melhor Filme, mas se seguíssemos esse pensamento, os dois prêmios deveriam ser entregues em conjunto, não separados. E assim como Brokeback ganhou a estatueta de Melhor Roteiro (Adaptado), Crash ficou com a de Melhor Roteiro (Original), que tem apenas contra si o fato de se parecer muito com o de Magnólia, de Paul Thomas Anderson, mas isso já é uma outra história.

O que se discute aqui é que a estatueta de Melhor Filme era de Brokeback. A Academia já errou tanto - e tão grosseiramente - em premiações, que esta nem seria a pior. Brokeback é um belíssimo filme, com uma fotografia excelente, um ótimo roteiro, boa trilha sonora, atuações impecáveis do trio principal (Heath Ledger, Jake Gyllenhaal e Michelle Williams), e mão segura na direção de Ang Lee, reconhecido como Melhor Diretor. Então, se Brokeback, mesmo não sendo o Melhor Filme do ano, deveria ganhar, o que foi que aconteceu? Muita coisa, caro leitor, muita coisa.

O site do jornal Los Angeles Times exibe a chamada provocativa no caderno The Envelope: "And the winner is . . . homophobia?". Isso mesmo, caro leitor: homofobia. Embora o filme que tenha ganhado exiba as cicatrizes do racismo na sociedade norte-americana, o romance de dois caubóis que se apaixonam acaba saindo da batalha final (após ter vencido batalhas anteriores como o Globo de Ouro e o Bafta - o Oscar britânico) maculado por uma acusação de... racismo. Segundo o The Envelope, muitos dos votantes da Academia, antes mesmo de comentar seus votos, já antecipavam que não iriam votar em Brokeback. O pseudo-hype do público não funcionou bem com os velhotes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, que praticamente criaram um efeito anti-Brokeback no Oscar.

O pensamento, na verdade, já havia sido exposto pelo humorista Larry David, um dos mentores da série Seinfeld, em texto escrito especialmente para o jornal New York Times à época de lançamento do filme nos Estados Unidos, e traduzido pela Folha de São Paulo quando da estréia da película em terras brasileiras. Diz David: Não assisti a O Segredo de Brokeback Mountain e não tenho a menor intenção de fazê-lo. Mesmo que caubóis me laçassem e arrastassem ao cinema, ainda assim me esforçaria para manter os olhos fechados e tapar as orelhas. E eu adoro os gays. Ei, eu tenho até alguns conhecidos gays. Sou favorável ao casamento gay, ao isso e aquilo gay; só não quero ver dois homens heterossexuais se apaixonando, trocando beijos, caminhando de mãos dadas e sozinhos pela pradaria. É só isso."

Apesar do tom humorado do texto de Larry David, que pode ser lido na integra aqui, há sim um desconforto notório do público em relação ao homossexualismo. De uma maneira racional, acredito que o filme de Ang Lee é apenas um belo romance como vários outros do cinema. Robert Altman, em seu discurso como diretor homenageado pela Academia neste ano, foi mais longe: "Uma história homossexual não se diferencia de outra qualquer. Homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres. Ou uma mulher, um homem e uma mulher. Essa é minha fórmula preferida". No entanto, a pecha de favoritíssimo - os favoritos deste ano praticamente honraram seus nomes em 95% das outras categorias, excetuando filme estrangeiro - e a não confirmação das apostas planetárias fez com que a questão ganhasse contornos políticos/sociais. Brokeback não ganhou por ser um filme gay?

Pessoalmente acredito que sim. Mesmo opinando que tanto Crash quanto Boa Noite & Boa Sorte e o não indicado Match Point sejam filmes mais completos que Brokeback, a estatueta tinha um dono desde que a Academia anunciou os concorrentes, e esse vencedor era Brokeback Mountain. Não seria um erro, já que o filme é excelente, e ainda exibiria para o mundo que a Academia não é tão tradicional e parada no tempo como todos pensavam. Só o fato de diversos filmes politizados estarem entre os indicados já demonstra uma preocupação da Academia em usar as obras para retratar o mundo que nos cerca. Mas nem mesmo isso foi capaz de colocar a saga dos caubóis gays na linha de frente das premiações. Na minha opinião, venceu o melhor. O problema é que no Oscar nem sempre vencem os melhores. Neste caso, o melhor venceu não só por méritos seus, mas por racismo da Academia. E existem situações que tornam obras de arte retratos de um tempo. A derrota de Brokeback é um retrato do mundo atual, inseguro e assustado com as mudanças que acontecem aqui e ali.

Além deste fato polêmico de possível homofobia, a vitória de Crash - que havia passado desapercebido pelos cinemas brasileiros no fim do ano passado, e voltou às salas duas semanas antes do Oscar, empurrado por suas seis indicações (levou três: Melhor Filme, Roteiro Original e Montagem) - lança luz sobre a astronômica forma de divulgação do filme perante os votantes da Academia. Segundo o site da badalada Variety, em notícia divulgada no dia 11 de janeiro, enquanto a maioria das produtoras enviavam entre 12 mil e 15 mil cópias promocionais de seus filmes para os votantes, a Lionsgate (que representa Crash) distribuiu 150 mil DVDs (10 vezes mais!!!) para que eles vissem Crash em casa - e presenteassem os amigos. O site Defamer - em nota baseada em uma notícia do The Envelope, do jornal Los Angeles Times - advertia, em 13 de fevereiro: "O estúdio Lionsgate está disposto a comprar um Oscar", exibindo cifras de US$ 4 milhões apenas em divulgação do filme, contra R$ 6,5 milhões de seu custo total. Detalhe: US$ 3,5 milhões foram injetados na divulgação após as seis indicações que o filme recebeu da Academia, em 31 de janeiro deste ano.

Isso tudo diminui o valor cinematográfico de Crash? Não, nem um pouco. Crash é um filmaço urgente, necessário, que precisa ser visto - e entendido por todos. No entanto, a possível questão da homofobia, e as estratégias de marketing que envolvem uma grande premiação como o Oscar colocam em dúvida a validade artística dos vencedores. Muita gente irá dizer, neste momento, que nunca foi possível levar o Oscar à sério, e talvez não tenha sido mesmo. Porém, se entendermos que a premiação da Academia é um microcosmo do que acontece no mundo lá fora, é bastante interessante analisar os vencedores e os perdedores de cada ano. Neste ano, a derrota de Brokeback parece assinalar que o mundo não está pronto para os gays, ainda. Se consola, sua indicação e o imenso blá blá blá que as diversas premiações ao redor do mundo causaram podem ser entendidos como um passo à frente para a humanidade. E se, tendo Crash como vencedor, o mundo deixar de ser tão racista como é, até mesmo os gays saem vitoriosos do Oscar 2006. Porém, era para ser diferente, um pouquinho diferente. Cinema é só cinema, caro leitor?

Links
"Lionsgate gambles millions on Crash, site Defamer
"And the winner is . . . homophobia?", site Los Angeles Times
"A Crash course in hype", do site da Variety
"Não quero ver dois homens trocando beijos", Larry David na Folha

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