CALMANTES COM CHAMPAGNE

Detalhes

por Marcelo Costa
Foto: Divulgação
28/07/2006

Uma das coisas que mais gosto na música é sua capacidade de improviso. Gosto quando o artista muda o ritmo, uma fraseado de guitarra, um trecho da letra, e recria algo que tínhamos como imutável em nossa mente. Até hoje não entendo as pessoas que vão a shows querendo ouvir as canções da mesma maneira que elas estão nos discos. Oras, fica em casa e ouve o disco. Não entendo pessoas que vão a shows e berram a plenos pulmões as letras, sobrepujando a voz do cantor e perdendo a magia do inusitado de se estar vendo e ouvindo aquela canção que tanto ama sendo despida ali na sua frente. Uma canção é mais que uma batida e uma voz. Há um lirismo na música que requer atenção aos detalhes. A magia está nos detalhes.

Da primeira vez que Robert Plant veio ao Brasil, em um destes Hollywood Rock, o silêncio que reinava na turma do gargarejo era algo quase religioso. Pessoas que não se conheciam escoradas umas nas outras, cantando baixinho canções como Going To California e Thank You, clássicos do Led Zeppelin apresentados pela primeira vez (na época) em terra tupiniquim. Quando alguém ameaçava soltar a voz e acompanhar o vocalista mais imitado do rock em todos os tempos, um outro alguém sussurava: "Silêncio, Deus está cantando". A frase traz tons exagerados, claro, mas plenamente verdadeiros. Pagamos para ir a um show ouvir o cantor ou o cara do nosso lado?

Sempre gostei mais dos shows do Ira! do que dos shows do Titãs. Embora perfeitos, os shows do Titãs eram como se um CD rodasse enquanto a banda se apresentava. Tudo que saia pelas caixas de som lembrava fielmente o que havia sido gravado em estúdio. Já o Ira! não. Edgard Scandurra, quando está afim, improvisa, sola, e faz o diabo com sua guitarra. Nasi não fica atrás e improvisa brincadeiras nas letras. Lembro de uma vez, em um show no extinto Aeroanta (SP), circa 91, que o vocalista (sãopaulino de carteirinha) tirou sarro dos torcedores adversários no clássico Núcleo Base cantando: "Você pensa que sou tolo, mas estou só te olhando / Você pensa que sou louco, mas não sou corintiano".

Dentre os que adora(va)m brincar com as palavras trocadas na música, atualizando a canção para aquele momento especifico em que ela está(va) sendo apresentada para você, ao vivo e a cores, destaco Humberto Gessinger, que canta a cada dia uma letra diferente para vários de seus sucessos, e Renato Russo. Este último, em um show da turnê do excelente V, em 1991, despiu toda a poesia da letra de Metal Contra as Nuvens, direcionando sem disfarces seus ataques para o então presidente Fernando Collor de Mello em vários trechos: "Reconheço o meu pesar, quando tudo é traição / O que venho encontrar é o governo em outras mãos" ou ainda "E por honra, se existir verdade / Existem os tolos e existe um presidente ladrão / Que se alimenta do que o roubo / E roubou todo o meu tesouro".

Pensei nessa coisa de improviso ouvindo Live At Earls Court, segundo disco ao vivo da carreira de Morrissey. Live At Earls Court perde em peso e dissonância para Beethoven Was a Deaf, ao vivo de 1992 pilotado pelo mestre Mick Ronson, mas ganha em melodia, repertório e... detalhes. Também, pudera: Das 18 canções, o repertório junta cinco cavalos de batalha dos Smiths (três deles clássicos incontestes de toda uma geração: How Soon Is Now?, Bigmouth Strikes Again e There Is a Light That Never Goes Out), sucessos da carreira solo do bardo (a versão de The More You Ignore Me, The Closer I Get é de arrepiar) e novas e fortes canções como First Of The Gang To Die e Irish Blood, English Heart, além da improvável cover de Redondo Beach, do clássico álbum Horses, de Patti Smith, e Subway Train, do New York Dolls, cantada quase inteirinha dentro do b-side Munique Air Disaster 1958.

A palavrinha que desencadeou todo esse texto é trocada em Bigmouth Strikes Again, que, você sabe caro leitor, é uma declaração de amor de Morrissey para a então primeira-ministra britânica Margareth Thatcher. Dizia o ex-vocalista dos Smiths na canção que abria o lado b do vinil The Queen Is Dead, que completou 20 anos dias atrás: "Doçura, doçura, eu estava só brincando / Quando disse que gostaria de arrebentar cada dente de sua boca // Doçura, doçura, eu estava só brincando / Quando disse que o certo era você ser coberta de cacetadas na sua cama".

Na segunda estrofe, Morrissey desenhava uma imagem surrealista e divertida, ao se imaginar como Joana D'arc devorada pelas chamas, com um assessório que ainda não existia na época: "Agora eu sei como Joana D'arc se sentiu / Enquanto as chamas subiam até seu perfil romano / E seu walkman começava a derreter". Na versão de 2005, Morrissey faz uma pequena troca e atualiza a canção 20 anos: "Agora eu sei como Joana D'arc se sentiu / Enquanto as chamas subiam até seu perfil romano / E seu iPod começava a derreter". Coisa boba, uma palavrinha de nada que pouca gente percebe, mas que dá sobrevida a um clássico. Nesta versão, ao seu final, Morrissey declara: "O passado é uma voz estranha".

Live At Earls Court está cheio de detalhezinhos como estes. A musicalidade perfeita que sai pelos fones faz duvidar da frase do encarte que diz que nenhum overdub de estúdio foi acrescentado na gravação. As guitarras, límpidas, passeiam pelas duas saidas. Backing vocals certeiros acompanham Morrissey, em plena forma, mastigando as palavras, como em There Is a Light That Never Goes Out, cujo verso "And if a double-decker bus" ganha um "craaaaaaaaaaaash into us" marcadérrimo para finalizar poeticamente: "To die by your side, such a heavenly way to die". Finada a canção, o bardo declara, sarcástico: "O tempo prova tudo". Após Shoplifters Of The World Unite, outra dos Smiths, quase no fim do show, o poeta crava: "Eu posso estar errado sobre tudo. Eu posso. É possível". E emenda Irish Blood, English Heart.

Um show é feito de detalhes. Gosto de imaginar que aquela apresentação que estou assistindo não é só mais uma cidade no roteiro do artista. Uma depois da anterior e uma antes da próxima. Gosto de cantores que conversam com o público. Gosto dessa relação de artista e audiência, desse calor. Da última vez que passou pelo Brasil, Evan Dando, do Lemonheads, estava tão baleado que mal conseguia falar as letras das canções. Musicalmente o show foi uma porcaria, mas valeu muito pela simplicidade de Evan ao pedir, por diversas vezes, desculpas ao público pela situação terrível de sua voz. Da mesma forma, o show que o Nirvana protagonizou no Rio de Janeiro foi zero no quesito musicalidade e dez no quesito espetáculo. Não basta tocar a música igualzinha ela foi gravada sei lá quando em um estúdio sei lá onde. Morrissey sabe disso. Em Buenos Aires, dois anos atrás, ele fez tanta piada com os portenhos que se o show tivesse sido ruim já tinha sido legal ter ido só por presenciar o bom humor do cantor. Mas poucos shows no mundo pop, hoje em dia, são garantia de entretenimento, diversão e boas canções como são os shows de Morrissey. Um exemplo é esse Live At Earls Court. Ouça. E se Morrissey passar por perto de você, não perca: é um show inesquecível, cheio de magia e... detalhes.


maccosta@hotmail.com


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