Ao vivo em São Paulo, Pato Fu comprova que continua sendo uma banda que o Brasil (e o mundo) pode se orgulhar de ter

texto por Davi Caro
fotos por Fernando Yokota

Peço licença para iniciar este texto com uma confissão: o show realizado pelo Pato Fu no Sesc Pinheiros, no dia 05 de janeiro último, abrindo uma temporada sold out de três noites no charmoso Teatro Paulo Autran (de 1010 lugares), foi o primeiro show da banda visto por este que vos fala. Não que já não existisse um sentimento pungente de afinidade pela banda, produto de anos de audições da já extensa discografia acumulada por Fernanda Takai (voz, violão e guitarra), John Ulhoa (guitarra. programações e voz) e Ricardo Koctus (baixo e voz) – que eles comentaram nessa entrevista imperdível com Bruno Capelas – tampouco foi devido à falta de oportunidades. Neste último aspecto, havia um porém: cada vez que batia a chance de ver o grupo mineiro ao vivo sempre era uma apresentação de seu já célebre projeto “Música de Brinquedo”. Longe de mim desmerecer uma iniciativa com esse nível de esperteza, dedicação e, por que não, sucesso – tanto por parte dos músicos quanto da companhia Giramundo, que os acompanhava com fantoches nas apresentações. No entanto, sempre havia um empecilho que me impedia de ver a banda “para maiores”, como os conheci: vorazes, inteligentes, bem humorados e com uma certa acidez própria de clássicos do calibre de álbuns como “Isopor” (1999), “Ruído Rosa” (2001) e “Gol de Quem?” (1995). Assim, a noite da última sexta-feira foi mais do que uma chance bem aproveitada de tirar o atraso: era uma prestação de contas com uma das melhores bandas deste país.

O sentimento parecia permear o ambiente do Teatro Paulo Autran inteiro, e o entusiasmo no rosto dos fãs de todas as idades era perceptível. Claro, ajuda muito o fato de, em meio à sua turnê comemorativa de 30 Anos (ou 31, como Fernanda bem fez questão de comentar), o trio fundador vir acrescido não apenas do retornante baterista Xande Tamietti (presente desde 1995 e de volta ao grupo desde o ano passado após deixar o grupo em 2014) como também do multi-instrumentista Richard Neves (teclados, programações, acordeom, ukulele…). Também é importante salientar que, além de comemorar suas três décadas de atividades, a banda também lançou um dos melhores discos brasileiros do ano passado, “30” (o primeiro de inéditas desde “Não Pare Pra Pensar”, de um já distante 2014), no qual demonstra não ter perdido absolutamente nada em vitalidade.

É interessante, desde o primeiro número, perceber o respeito que os integrantes têm com seu próprio legado e a preservação de sua história sem se colocar como refém dela. Assim, por mais que se trate de uma turnê abertamente comemorativa, nada do que aconteceu ao longo das 1h15min subsequentes (após um compreensível e breve atraso) poderia ser chamado de “protocolar”. Pelo contrário: desde os primeiros acordes de “Spoc” (presente na primeira demo da banda, de 1992, e incluída três anos depois em “Gol de Quem?”), precedidos por uma projeção bacana no telão mostrando um sequenciador semelhante ao mítico 128 Japs (onde as percussões em estúdio e ao vivo eram programadas por John, antes da entrada de Tamietti), um espectador mais incauto poderia achar ter sido transportado de volta no tempo. Não era o caso, o que era mais espantoso: a dinâmica dos três membros centrais permanece espontânea e divertidíssima, com Takai esbanjando carisma e uma voz preservada de forma quase sobrenatural, trazendo o contrapeso para o bom humor do marido e guitarrista assim como para os breves, mas muito bem sacados comentários de Koctus, sempre sorridente.

Dali em diante, o que se seguiu foi um setlist até certo ponto cronológico ao qual a banda deu seguimento com uma potente “O Processo de Criação Vai de 10 Até 100 Mil”, pinçada de seu delirante debut, “Rotomusic de Liquidificapum” (1993) e a clássica “Sobre O Tempo” (do já citado “Gol de Quem?”, com Richard acrescentando um surpreendente acordeom). Na primeira intervenção da noite, Fernanda tomou um tempo para refletir sobre a maneira sublime com a qual as canções escritas ao longo da carreira do grupo ressoavam com sua audiência, que não parou de se expandir – o que deu a deixa para a dobradinha “Água”, de “Tem Mas Acabou”, e uma lindíssima “Antes Que Seja Tarde”, o mais soturno single de “Televisão de Cachorro” (1998).

De fato, o segredo da sonoridade do Pato Fu e, inclusive, de sua longevidade, permanece sendo o contraste entre a doçura dos vocais da frontwoman e os vários momentos de maior velocidade e peso, em que seu parceiro toma a frente nos vocais principais: basta olhar a sequência “Licitação” e “Depois” para perceber a importância e a relevância de um repertório deste quilate para o público, que cantou junto a plenos pulmões fosse nas cadeiras altas ou na pista – particularmente no caso desta última, um dos hits de “Isopor” e a primeira do disco a figurar na apresentação. “Menti Pra Você, Mas Foi Sem Querer” (de “Ruído Rosa”) precedeu a distinta interpretação de “Ando Meio Desligado”, originalmente gravada pelos Mutantes e modernizada pela banda já no novo século.

A abordagem estritamente cronológica é deixada de lado pela primeira vez em favor de uma música nova – e que música: “Diga Sim” (de “30”) não só soa maravilhosa ao vivo como ajudou a esfriar os ânimos exaltados por um caminhão de hits, todos complementados por incríveis imagens de arquivo, cortes de videoclipes e artes novas. Aliás, interessante e surpreendente notar a integração entre a música do Pato Fu e os clipes realizados pela banda ao longo dos anos, que acabam por se tornar peças quase independentes e funcionam como gatilhos de memórias da juventude de muitos que os descobriram e acompanharam pela (M)TV. E o melhor exemplo disso talvez seja a versão para “Eu”, da Graforréia Xilarmônica, cujo vídeo é um dos mais memoráveis da carreira do grupo (e que no domingo contou com a participação surpresa de B Negão). Esta, inclusive (com uma performance furiosa de Xande), veio precedida pela divertida “Vida Imbecil” (introduzida por John como “a música mais besta que já fiz”), de 1995. Outra nova, mais agitada (a excelente “Fique Onde eu Possa Te Ver”, a vez do baixista Ricardo brilhar) deu o tom para “Gol de Quem?” e, naquele que foi um dos mais tocantes momentos da noite, a delicada “Canção Pra Você Viver Mais” (de “Televisão Pra Cachorro”, e feita para seu pai), que emocionou muitos dos presentes sendo entoada em uníssono.

A também nova “No Silêncio” (acompanhada de lindas ilustrações animadas que também se fizeram presentes nas capas dos singles mais recentes) e a mineiríssima “Simplicidade”, de “Toda Cura Para Todo Mal” (2005), mas em sua versão 2.0, acústica, encaminharam o primeiro bloco do show para o fim, mesmo que os momentos memoráveis não tenham parado por aí: com “Cego Para as Cores” representando o repertório de “Não Pare Pra Pensar” e “Anormal” (“um pedido especial de nosso baterista”, notou a frontwoman) dando uma chance de Ulhoa desfilar um de seus melhores e mais subestimados riffs, o Pato Fu tinha seus muitos espectadores na mão. E souberam aproveitar a oportunidade: guardaram a inesquecível “Perdendo Dentes” para o fim, apenas para pegar os desavisados no susto graças a uma junção improvável da sensacional “Made In Japan” com a inacreditável “Capetão 66.6 FM”, com direito a Takai usando chifres satânicos brilhantes e uma máscara, em combinação com o filtro endiabrado que usa em sua voz. A maneira perfeita de encerrar a primeira parte do show.

Aqueles que acreditavam ter escutado todos os hits da banda foram pegos, mais uma vez, de surpresa após um breve intervalo. Após iniciar o bis com a funesta “Silenciador” a apresentação seguiria com uma canção alheia que, pode-se dizer, o grupo “pegou para si”: trata-se de “Eu Sei”, da Legião Urbana (dona, inclusive, de um dos mais bonitos clipes já lançados pelos mineiros na opinião deste autor). Para não dizer que a noite passou sem percalços, a música também sofreu com problemas na guitarra de John, que contou com a ajuda dos roadies enquanto Neves e Koctus seguravam a onda – o guitarrista depois brincaria de forma bem humorada sobre como ninguém teria percebido sua ausência na canção, provocando risos por todo o teatro. Como uma conclusão lógica da montanha russa de partes pesadas de seis cordas e letras por vezes doces e outras macabras, “Rotomusic de Liquidificapum”, a música-título do primeiro álbum do Pato Fu lançado de forma independente pelo selo mineiro (especializado em metal) Cogumelo Records, foi executada na íntegra, e concluiu a apresentação sem deixar de lado suas vertiginosas mudanças de tempo e citação à “We Will Rock You” e “Meet The Flintstones”, além dos desorientantes backing vocals e efeitos sintetizados de tirar o fôlego.

É fácil concluir que poucas bandas no Brasil (quiçá, no mundo) conseguem equilibrar uma identidade musical ao mesmo tempo tão única e tão plural quanto o Pato Fu. Ou, como disse certa vez John Ulhoa aqui no mesmo no Scream & Yell: “Eu escuto os primeiros discos do Pato Fu com um sorriso meio maquiavélico, de “como essa porra deu certo?”. Nessa sexta-feira no Sesc Pinheiros, fosse no semblante grato de cada um dos músicos, fosse nos vários comentários elogiosos feitos uns aos outros (ou a si próprios, como fez John – de brincadeira, claro), fosse nas bem humoradas interjeições que faziam a ponte entre uma canção e outra, fosse na sinceridade genuína demonstrada nos momentos mais descontraídos (como a história contada por Koctus sobre uma moça “que devia estar com o celular na testa” o questionando nas redes sociais sobre o porquê de o músico vestir saias na idade que tem – com direito à uma resposta impagável), o fato é que mesmo uma ocasião que vem se tornando tão padrão e corriqueira – as tais “turnês comemorativas” não chegam nem perto de soarem padronizadas ou vazias.

Pelo contrário: em todos os momentos, musicais ou não, Fernanda, John, Ricardo, Richard e Xande entregaram exatamente o que sempre prometeram e fizeram de melhor, e continuam sendo uma das mais únicas agremiações musicais em atividade. A vitalidade do quinteto não passa despercebida a qualquer um daqueles dispostos a escutar seu material mais novo, e (parafraseando o guitarrista, em um de seus momentos mais hilariantes) não, eles não estão nem perto de estarem velhos demais para isso. Seja você um espectador antigo, como muitos dos que lotaram essas três apresentações no Sesc ou um marinheiro de primeira viagem, como este que vos fala: ver esta banda ao vivo é uma experiência única, seja no modo mais “calminho” ou em sua versão mais pesada e acelerada, estejam eles tocando com instrumentos “de gente grande” ou de brinquedo. Para a nossa sorte, eles devem continuar nos agraciando com grandes canções por muitos e muitos outros anos: o Brasil (e o mundo) tem muita sorte de ter uma banda como o Pato Fu.

Nota: o relato de Davi Caro é sobre o show do dia 05 / As fotos de Fernando Yokota são do show do dia 6

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/

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