Meu disco favorito de 2023: J Noa, por Fernando Yokota

MEU DISCO FAVORITO DE 2023 #4
“Autodidacta“, J Noa
escolha de Fernando Yokota

Lançamento – 26/05/2023
Selo – Sony Music Latin
Ouça – Spotify / Youtube

Dada a minha ignorância, é bem possível que existam centenas de álbuns tão bons ou melhores. Ainda assim, e sem a ferramentaria correta para tal, tento aqui falar sobre os elementos que fizeram de “Autodidacta” meu álbum favorito do ano.

O disco é bem produzido e os arranjos são cheios de pequenos ganchos que prendem a atenção, mas os detalhes técnicos são pormenores que sustentam uma represa construída para ser engolida pelo flow enfurecido de J Noa.

Autointotulada “la hija del rap”, Nohelys Jiménez é uma musicista dominicana que, aos 17 anos, trouxe em seu full length de estreia uma coleção de canções que retrata um senso observador apurado. Negra, mulher, latina e periférica, J Noa traz a realidade que a entorna em destemidos e desenfreados vinte e três minutos de versos ininterruptos e inclementes.

A ansiedade

“Vou acelerar, não sou Luis Fonsi para ir Despacito”

O judô, a “arte do caminho suave”, é a arte marcial que ensina a usar a força do oponente contra ele próprio. Se a suavidade não é o forte em “Autodidacta”, a paralisia crônica causada pela ansiedade — em especial nos jovens — é revertida em torrentes incessantes de palavras onde cada milissegundo conta. Quando parece ter esgotado as marchas da caixa de câmbio de seu flow, J Noa afunda o dedo no botão no nitro para ter a certeza de que vai ganhar a corrida – como na faixa homônima.

O sofrimento

“assim se vive no barrio. A você surpreende, para mim é o normal”

Em “Betty” temos a ilustração da mãe solteira adolescente morando com a irmã que chega em casa depois de se vender na rua para encontrar o corpo num saco, “vítima de um acidente”. De San Cristobal a São Mateus, a violência, o abuso sexual, a dependência química e a falta de perspectiva é tema universal e abordado de forma visceral.

O “sincretismo musical”

Arranjos, instrumentações e referências musicais são costurados indiscriminadamente. Fugindo de dogmas e purismos, a colcha é tratada como maior que a soma dos retalhos. A incorporação de elementos em princípio estrangeiros ao hip hop é vista na música caribenha em “Betty” ou nas guitarras distorcidas intercaladas a stems de sintetizadores, que teriam tudo para dar errado mas cujo resultado em “No Me Pueden Parar” fariam Ernie C e Ice T abrirem um sorriso de orelha a orelha.

Em “La niña” a voz é super processada, mas o arranjo de piano aveludado nada contra a correnteza do trap. O contraste não só funciona como deixa o sabor agridoce semelhante à primeira vez que se ouve “Glory Box” e “Jorge da Capadócia”, o padrão-ouro do mashup estilístico.

Epílogo

Exagero descritivo à parte, o leitor mais versado vai perceber que este texto poderia servir para descrever incontáveis outros discos. De hip hop quase nada entendo, de música talvez um pouco, mas sei bem o que é raiva e ansiedade, o que torna “Autodidacta” uma audição irresistível. Mais do que se valer das minhas palavras, melhor é o leitor escutar o disco e concluir por si próprio. A fluência que aqui me falta é a mesma que sobra em “Autodidacta”.

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