Literatura: “O verão selvagem dos teus olhos”, de Ana Teresa Pereira

texto de Gabriel Pinheiro

Em “O verão selvagem dos teus olhos”, a escritora portuguesa Ana Teresa Pereira dá corpo e voz a um fantasma. Seu espectro ocupa a imensidão de vazios de uma imponente mansão na costa britânica, enquanto observa a vida ao redor seguir sob o peso de sua influência, mesmo após a morte. “Digo baixinho o meu nome, muitas vezes seguidas, o que também me tranquiliza um pouco. Rebecca. Rebecca de Winter”. O romance da autora vencedora do Prêmio Oceanos é um lançamento da Todavia Livros.

Rebecca é a personagem que dá nome ao romance de Daphne Du Maurier, publicado em 1938, e adaptado pela primeira vez ao cinema por Alfred Hitchcock dois anos depois. Interessante exercício narrativo, Ana Teresa Pereira retoma o livro de Du Marier, construindo um novo ponto de vista para a mesma história. Se dá nome ao romance original, Rebecca existe lá apenas como memória – um fantasma que sobrevive a partir das marcas indeléveis que deixou naqueles com quem se relacionou em vida. Marcas estas que, então, alcançam a nova Mrs. de Winter, recém-casada com o viúvo Max de Winter.

A personagem ganha, agora, uma presença física, corporificada, nas páginas do romance de Ana Teresa Pereira. Ela é a narradora de parte de “O verão selvagem dos teus olhos”, onde acompanhamos suas reflexões sobre sua vida pregressa e sua nova existência como um fantasma, enquanto observa as transformações na residência de Manderley com a chegada da nova esposa de seu marido. “É estranho, mas ainda não ouvi seu nome, Max chama-lhe minha querida ou não lhe chama nada, os criados tratam-na por Mrs. de Winter. (…) é estranho quando chamam alguém pelo nosso nome, é terrível quando chamam alguém pelo nosso nome”.

Intercala-se com sua voz a de um narrador observador que descreve o passado da personagem. Desde a juventude – um primeiro encontro com o futuro marido – até a vida matrimonial e as circunstâncias que levaram à sua morte misteriosa. Sua figura ganha camadas e mais camadas pela habilidosa prosa de Ana, que foge de uma dicotomia entre bem e mal, para construir uma personagem complexa, marcada por suas contradições e, sobretudo, seus desejos.

Rebecca é um ser indomável, como o mar pelo qual se sentia atraída. Ela se recusa, internamente, a seguir os papéis pré-concebidos a uma mulher na época em que ação narrativa ocorre. Seja o de esposa perfeita ou de dona de casa exemplar. Apesar disso, interpreta tais papéis com maestria, na medida em que estes vão ao encontro de seus próprios objetivos. “Vamos voltar, e vai ser como se nada tivesse acontecido, continuaremos a ser o casal mais belo, mais rico e mais feliz da Grã-Bretanha, e eu farei de Manderley a casa mais conhecida.”

Corajoso, “O verão selvagem dos teus olhos” ganha vida própria nas mãos de Ana Teresa Pereira. Se é escrito a partir de personagens pré-existentes, não parece depender do material original para existir como um romance singular. Tanto pela elegante construção narrativa quanto pela investigação psicológica – os fantasmas que assombram o eu – na qual Ana investe ao longo de suas páginas.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.

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