Entrevista: Cannibal fala do projeto punk reggae da Devotos

entrevista por Bruno Lisboa

Com 32 anos de carreira, o Devotos é um dos maiores expoentes quando o assunto é arte e militância no Brasil. A maior prova é o fato de que para além da sonoridade punk, que lhe é peculiar e indissociável, a banda pratica diversas ações sociais em Recife, mais especificamente no bairro Alto José do Pinho. Essa atuação, inclusive, tem contribuído de maneira significativa para a transformação da realidade local.

Formada pelo trio Cannibal (baixo e voz), Neilton (guitarra) e Celo Brown (bateria), a Devotos construiu uma sólida discografia composta por sete álbuns de estúdio, um disco ao vivo (celebrando 20 anos de estrada) e duas compilações. Para além da sonoridade punk, a banda tem como marca letras afiadas (e dolorosamente atemporais) com forte apelo político/social.

Três anos após o último álbum de estúdio, “O Fim Que Nunca Acaba”, agora em 2021 o grupo decidiu estreitar de vez as relações com o reggae, gênero que já haviam flertado em produções anteriores, mas agora é o fio condutor de um novo disco a ser lançado neste semestre através do selo Estelita. O álbum trará 10 releituras e a inédita “Nossa História”, primeiro single do projeto, já disponível nas plataformas de música (e com clipe foi dirigido por Ricardo Leão abaixo).

Em inspiradora entrevista, Cannibal fala sobre a pandemia, a aproximação ideológica entre o punk e o reggae, a importância de um posicionamento antirracista, a atemporalidade do repertório, a influência da cultura local, o legado transmitido para as novas gerações, o papel da arte em tempos reacionários, a música em formato digital e seu caráter democrático, planos futuros e muito mais. Papo essencial!

Primeiramente gostaria de saber como vocês estão. O que tem feito nesse período de pandemia?
Estamos tentando manter a sanidade perante este momento de enfermidade e negacionismo no Brasil. Nesse período de pandemia, nos concentramos em alguns trabalhos sociais, nos envolvendo e criando. Projetos como SAS – Social Artistas Solidários que foi criado no começo da pandemia por nós três da Devotos, Maciel Salu, ong FASE, Dulce Reis, Priscila Moreira e Patrícia Correia. A ideia foi conseguir doação financeira e com essa ajuda compramos cestas básicas com materiais de higiene nos mercadinhos das próprias comunidades. Três comunidades foram beneficiadas, Alto José do Pinho, Morro da Conceição e Cidade Tabajara. No Instagram do SAS – Social Artista Solidário tem todos os detalhes dessa campanha.

Com a produção executiva do Selo Estelita produzimos o “Punk Reggae” com o incentivo da lei Aldir Blanc. Não foi fácil porque desde que começou a pandemia, a banda não se reunia nem para ensaiar. Quando o projeto foi aprovado e sentimos uma certa segurança, começamos a planejar como executaríamos.

Criei um projeto em 2016 chamado Jardim Sonante e convidei meu amigo Fabricio Nunes, da banda Plugins, para realizarmos juntos. A ideia do Jardim Sonante é um show sempre no último domingo do mês onde se apresentam quatro bandas, a maioria bandas iniciantes. A única exigência é que as bandas sejam autorais e a entrada é 1kg de alimento que doamos para ONGs e asilos. Com a pandemia o projeto parou e com a iniciativa da Lei Aldir Blanc e a entrada de Aline Sales, fotógrafa e idealizadora do Bonita de Corpo (um coletivo que luta contra a Gordofobia), conseguimos fazer o Jardim Sonante em Forma de Live durante uma semana, 20 bandas, 5 debates e 6 ONGs contempladas. Conseguimos 1 tonelada e meias de alimentos. Além dos envolvimentos em trabalhos sociais aqui em Recife – vale citar o Olhar Sincero – todas as segundas feiras faço uma live pelo meu Instagram tocando meus vinis e conversando com a galera. O projeto se chama: Trocando Ideia, Ouvindo Vinil. Começa às 20h e vai às 23h.

Também durante a pandemia tenho procurado vender meu livro, o “Música para o Povo que não Ouve”, que tem todas as letras da Devotos de 1997 a 2918. Para saber mais clique aqui.

No mais, estamos nos cuidando, cuidando da família, lendo, ouvindo música e pedindo a Deus pai Oxalá que nos dê saúde, sapiência e acabem com esse negacionismo, negacionismo mata!.

Por mais que a Devotos seja naturalmente associada a cena punk / hardcore, imagino que o reggae seja um dos pilares que ajudaram a banda ser o que é hoje. E digo isso pensando não só na sonoridade, mas também na filosofia político / social que, historicamente, está associada ao gênero. Nesse sentido, como se deu a gênese e o processo de gravação do disco?
É bem isso mesmo… O punk e o reggae estão muito próximos, até no apartheid cultural que rola em Recife com esses dois ritmos. Não estou falando no caso do Devotos que, com muita luta e perseverança, conseguiu furar barreiras. Mas temos os pés no chão que ainda faltam muitas. Tem muita banda de reggae e punk aqui em Recife que não consegue se inserir nos grandes eventos, seja ele privados ou governamentais. O processo de gravação foi muito difícil pelo pouco tempo que tínhamos para desconstruir o que já havíamos feito. Mas com pessoas como Mathias, nosso técnico de som e produtor do nosso último disco, “O Fim Que Nunca Acaba” (um cara que entende muito bem o nosso som e sempre foi fã da banda) ficou mais fácil. A ajuda do Rodrigo Catita, produtor que também como Mathias tem uma grande experiência e também é fã da banda, é a cereja do bolo. Outro cara que ajudou nesse processo foi o Pedrinho. Esse cara é muito phoda. É um puta arranjador, ama o reggae e o mais foda de tudo, tem a mente aberta para outros ritmos. O que eles fizeram com a música “Nossa História” foi muito do caralho. Nós gostamos muito do resultado. Sem falar nos músicos convidados para que as músicas chegassem o mais próximo possível do reggae sem tirar nossa característica punk. João Zarai (backing vocals), Surama Ramos (backing vocals), Diego Drão (órgão, clarinete e piano elétrico), Henrique Albino (sax tenor), Jonatas Gomes (trompete) e Thiago Duarte (percussões). Não podemos deixar de destacar também a masterização feita por Buguinha Dub, um cara que temos maior respeito e consideração. Ele tem uma história muito forte na cultura jamaicana musical. Quando se escuta e se influencia em bandas que mudam sua história positivamente é muito provável que essas influências se incluam no seu som. Bandas como Bad Brains e The Clash eram as mais ouvidas. Tinham outras, mas essas ouvíamos muito. Assim como o Alto José do Pinho é uma rádio ligada em várias estações, aqui se toca e se escuta de tudo um pouco. A Devotos tem esse DNA no sangue porque somos nascidos e criados aqui no Alto José do Pinho.

“Nossa História” é o primeiro single deste novo trabalho. A faixa é um autêntico manifesto em prol da cultura negra, e toda a sua diversidade, em suas mais diversas esferas sociais. Historicamente, apesar de diversos avanços nesta seara, o combate ao racismo é uma luta secular que, infelizmente, continua em voga. Nesse sentido, qual é a importância para a banda de manter-se à frente nesse campo de batalha?
A Devotos é uma banda que foi criada dentro do movimento punk de Recife. A parada era fazer uma banda para falar do inconformismo da nossa comunidade perante os descasos do poder público, coisas como saneamento, segurança e outras mazelas que a política faz questão que as comunidades sofram. Essas mazelas viram promessas de votos. Falar sobre as lutas sociais e conquistas vai muito além do movimento punk. Essas lutas sociais e conquistas, infelizmente, não estão nos livros escolares, tudo isso foi muito bem invisibilizado pela sociedade. Mulheres que lutam e se impõe? Negros revolucionários lutando por sua liberdade e liberdade dos seus? Isso não seria uma coisa positiva para uma sociedade dominante. Esses livros estavam nas conversas com pessoas do movimento punk e, principalmente, simpatizantes que também frequentavam o point. O discurso de quem só queria reivindicar pela sua comunidade ia ficando mais forte, mais abrangente na medida que iríamos nos permitindo conversar, ler e debater sobre outros assuntos, alguns fora do nosso universo periférico. Debater em favor da homofobia dentro do movimento punk daquela época era praticamente impossível. Falar sobre gordofobia? Nem sabíamos que essa palavra existia e o que significava. Os tempos mudaram, a tecnologia veio como a teoria do kaos (onde se resolve um problema e dentro das coisas resolvidas aparecem outros problemas), mas o importante é que essa tecnologias uniu nossas lutas. Costumamos dizer que antes era cada um no seu quadrado lutando pelos seus direitos. Hoje estamos unidos. As manifestações não são só em prol de uma classe, as manifestações são sociais em prol de uma sociedade justa para todos. “O dever de um artista é refletir o tempo em que vive”. Essa frase é de Nina Simone e nós concordamos e fazemos questão de propagar! Não entra na nossa cabeça que o mundo está um Kaos e você não se manifestar de forma nenhuma. Se você tem o poder da música na sua mão, e sabemos que a música muda um quadro social em qualquer época, você tem que usar, e estendo isso para a literatura, cinema, artes visuais etc… Porque música transforma, arte transforma. Um artista que vê a sua sociedade enferma e não se manifesta é uma mentira, ele não está fazendo arte, ele só quer pagar suas contas!

Acredito que a atemporalidade do repertório do Devotos seja um dos motivos que os levaram a trazer à tona as regravações que farão parte do novo disco. Olhando para trás, vocês imaginavam que canções compostas há décadas ainda dialogariam com a contemporaneidade?
Quando se fala de temas sociais no Brasil temos a certeza que esses temas vão durar séculos. Como você mesmo citou na pergunta anterior sobre o racismo, nós podemos incluir os massacres das comunidades indígenas e quilombolas. Esses dois exemplos até hoje são praticados. Índios lutando até a morte por demarcação de terras que, por direito, sempre foram suas. Assim como comunidades quilombolas que tem sua economia vinda do plantio, também sendo expulsos de suas terras. Governos que desde a época imperial lesam a sociedade com impostos e etc… Concordamos que estamos tendo grandes avanços de lutas sociais, inclusões e ocupações principalmente na política. Esse é o lugar de mudança. Nada vai mudar se não ocuparmos os órgãos que mudam as leis, nada vai mudar se as pessoas que sofrem no seu dia a dia, homofobia, racismo e discriminações não ocuparem cargos que mudam as leis. Esse lance de olhar para as músicas antigas e ver que a situação continua a mesma é muito triste e não imaginávamos que, décadas depois, aqueles temas ainda estão sendo debatidos ou tristemente exaltados.

Musicalmente a banda carrega as tradições universais do movimento punk, mas tem como diferencial a relação próxima com a cultura regional. Acredito que seja um exercício difícil traduzir em palavras, mas de que maneira viver em Alto José do Pinho (Recife) ajudou a formatar a identidade do Devotos?
Falamos sobre isso em uma das respostas anteriores. O Alto José do Pinho sempre foi uma comunidade muito efervescente culturalmente falando. O Maracatu Estrela Brilhante tem mais de 100 anos. O afoxé Ilê de Egba também é muito antigo. Os caboclinhos tupã e tapirapé e as escolas de samba Galeria do Ritmo e Gigante do Samba também. As duas foram formadas aqui do Alto José do Pinho. Aqui tem um clube chamado Bom Sucesso e nesse clube teve show de Nelson Gonçalves e Gretchen. Reginaldo Rossi era um desses artistas que sempre estavam se apresentando aqui no Alto. E ainda tinha a manhã de sol Cubana onde só rolava música caribenha. Depois do futebol sempre tinha uma roda de samba na resenha. Viver em uma comunidade tão plural, culturalmente falando, não tem como você crescer bitolado, mesmo quando você descobre seu estilo musical. No nosso caso, o punk rock / hardcore, nós descobrimos, trouxemos para o Alto José do Pinho e a semente germinou e gerou frutos como Faces do Subúrbio, Matalanamão, Nanica Papaya, B.U, O Verbo, A Ostenta, Inexistente, IIIº Mundo, Os Maletas, The Míopes. Apesar da influência do punk rock, todas essas bandas tinham suas identidades, nenhuma era igual a outra. Rap, reggae, pop, guitar band, todos esses ritmos eram a base dessas bandas, ou seja, continuávamos a ser plural dentro do universo de uma nova geração aqui. Nunca usamos instrumentos da cultura popular, mas estamos juntos no cotidiano e nas ações além da música.

Recentemente entrevistei a galera do Black Pantera para o Scream & Yell e durante o papo você e a Devotos foram citados como uma das principais referências para a banda. Como vocês lidam com esse fato de que, passado tanto tempo, a banda segue sendo influente para diversas gerações?
Ficamos muito felizes. Somos de uma geração que a influência por nossos ídolos ficava só na música, principalmente porque tínhamos poucas informações sobre o cotidiano deles. Quando descobríamos algo a mais a admiração era bem maior. Quando se pensava em punk, se comparava com destruição e era praticamente um fato. Hoje as palavras mudar, inserir, reivindicar, envolver, engajar, estão muito dentro do punk. Atitude não é só subir o moicano e vestir uma jaqueta. Em outra época se tinha o discurso, mas não se tinha tanta prática. Hoje até quem é das antigas está mais envolvido em causas sociais. Antes essas manifestações estavam só nas músicas. Essa referência que somos para o Black Pantera é muito recíproco. Eles também nos influenciam e nos representam pra caralho com suas músicas e seus engajamentos com a cultura black punk, afro punk. Temos uma safra de bandas punk novas muito inteligentes e inclusivas como a Black Pantera, a Punho de Mahin, que tem suas letras e influências na negritude, comportamento, lutas e ações. A longevidade de 32 anos da Devotos junto com nossa história de transformação social através da música, fato que aconteceu com o Alto José do Pinho, que antes era visto nas páginas policiais, mas com a ascensão da Devotos aproveitando os meios de comunicação daquela época, apresentamos para a sociedade um outro Alto José do Pinho: o Alto José do Pinho dos grupos populares e das bandas de rock, rap e reggae. Assim colocamos o Alto José do Pinho nas páginas culturais e até hoje a comunidade é lembrada por sua musicalidade, sua arte, sua cultura e ações sociais. Isso dá uma outra visão para que curte a banda, curte nosso som, e contagia as outras bandas e fãs levando ao engajamento em ações sociais.

A banda sempre teve como essência um discurso social potente, marca que o Devotos nunca abandonou. Em tempos em que o discurso e ações fascistas ganham corpo, qual é o papel da arte neste contexto?
Estar cada vez mais informando a verdade ao povo, seja através da música, dos livros, dos filmes, de uma entrevista, num post nas redes sociais. Estamos vivendo um tempo que não tem como você não opinar, não tem como você ficar em cima do muro e, sinceramente, se você abre um Instagram de um artista e não tem nenhuma opinião sobre essas tragédias que estão acontecendo no Brasil e no mundo, pode crer, que esse artista não está em cima do muro!

Dias atrás me deu vontade de rever o icônico vídeo para o hino “Vida de Ferreiro”. Assisti-lo me remeteu à época, fim dos anos 90 / início dos 2000, em que o mercado da música vivia um outro momento de popularidade e acesso devido ao apoio da MTV e das rádios. De lá para cá, o que vemos é uma autêntica transformação, em vários sentidos, em especial no modo como o público se relaciona com a música. Como vocês lidaram / lidam com essa transição? Acreditam que a música em seu formato digital se tornou mais democrática quanto ao acesso?
Sim, acreditamos que a música hoje é bem mais democrática. Antes ficávamos dependendo das gravadoras para nossa música chegar nos lugares. Hoje com a tecnologia a música chega em qualquer lugar. O artista pode estar começando ou já ter uma estrada. Mas nunca abandonamos aquele gostinho de pegar no CD, folhear o encarte, admirar o vinil. Isso para nós é muito importante, mesmo porque a parte gráfica da Devotos, que sempre foram feitas por Neilton, são verdadeiras obras de arte, com muita força visual. Inclusive em 2018 Neilton fez uma exposição aqui em Recife no MAMAM (Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães). Tem pessoas que, como nós, gostam de pegar na arte, seja ela livros, CD ou vinil. Aliás o vinil está voltando com tudo. Nunca vai ter as mesmas proporções de discos fabricados em outras épocas, mas mata uma saudade do som mais orgânico e do ritual de admiração de toda obra, capa, bolacha e encarte.

Por fim, falar de planos futuros talvez seja um exercício dos mais complicados nesse período em que estamos, mas o que o Devotos planeja fazer neste segundo semestre? Já há alguma data de lançamento prevista para o novo disco?
Nosso planejamento principal é se manter vivo, tomar todas as doses da vacina e seguir as normas do SUS. Não temos ideia quando voltaremos a fazer shows, mas estamos com uma esperança muito grande que está mais próximo que distante. Enquanto isso não acontece, estamos produzindo. Esse projeto do “Punk Reggae” foi aprovado pela lei Aldir Blac e teve a produção executiva do Selo Estelita. O projeto está no início de sua difusão. A ideia é ter um lançamento com show/live mas ainda não batemos o martelo. Se rolar esse show faremos uma grande divulgação. 😉 Outro planejamento é lançar o “Punk Reggae” em vinil. Já estamos conversando com possíveis parceiros. Assim que batermos o martelo divulgaremos.

– Bruno Lisboa  é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.

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